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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

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segunda-feira, 22 de agosto de 2022

Como a esquerda pode apoiar o fascista do Putin? O antiamericanismo é maior que o antifascismo? - Demetrio Magnoli

 Creio que a esquerda tem, sim, um antiamericanismo tão anacrônico, míope e torpe, que o seu anti-imperialismo se esgota no antiamericanismo, e aceita qualquer coisa que tenha tido sabor de antiamericanismo, mesmo se é o fascismo de esquerda, de uma Venezuela chavista, de uma Nicarágua orteguista, de uma Rússia putinesca.


Stalingrado, versões de uma batalha!

Demétrio Magnoli, sociólogo, doutor em geografia humana pela USP

Folha de S.Paulo, 19/08/2022

 

No 23 de agosto de 1942, 80 anos atrás, começou a Batalha de Stalingrado, ponto de inflexão da guerra mundial no teatro europeu. Desde 2013, Volgogrado reverte a seu antigo nome nos aniversários da batalha crucial. O culto a Stalingrado descortina a evolução do nacionalismo russo, de Stálin a Putin.

 

A primeira versão sobre a batalha fixou-se em 1943, na Conferência de Teerã, quando Churchill passou às mãos de Stálin a Espada de Stalingrado, oferenda do rei George 6º à cidade heroica. Originalmente, a URSS traduziu a vitória como marco da unidade das potências aliadas contra o nazifascismo.

 

Durou pouco. Desde 1947, Stálin ergueu uma segunda versão, adaptada à nova rivalidade da Guerra Fria. Os antigos aliados foram reinterpretados como herdeiros do nazifascismo e a batalha transformou-se na certidão de batismo da Grande Rússia soviética. Duas décadas depois, numa cidade já renomeada, Kruschev inaugurou A Pátria Convoca, a estátua de 85 metros de altura, no estilo do realismo socialista, de uma mulher guerreira empunhando uma espada.

 

Putin, que qualificou a implosão da URSS como "a maior catástrofe geopolítica do século 20", conserva a versão grão-russa sobre a batalha, mas a recobre com uma tintura especial. A sua Grande Rússia substitui as referências comunistas por uma pasta ideológica inspirada no fascismo. No salto, ocupa lugar destacado o filósofo político cristão Ivan Illyn (1883-1954).

 

Illyn foi expulso da Rússia soviética em 1922. No exílio, em Berlim e depois na Suíça, conectou-se aos emigrados russos contrarrevolucionários e abraçou o pensamento fascista. Em 1950, escreveu um ensaio que viria a ser repetidamente citado por Putin. Nele, identificava um "experimento hostil", urdido pelas potências ocidentais, de fragmentação da Rússia num "gigantesco Bálcãs", que seria "enganosamente exibido como supremo triunfo da ‘liberdade’ e da ‘democracia’...".

 

"A propaganda alemã investe dinheiro e esforço singulares no separatismo ucraniano", alertava Illyn. Em 2005, ano do primeiro levante popular ucraniano contra um governo pró-russo, Putin obteve a transferência dos restos mortais do pensador fascista para a Rússia e, quatro anos mais tarde, depositou flores em sua tumba, no monastério Donskoy. Em 2013, o Kremlin indicou o livro "Nossas Tarefas", no qual encontra-se o ensaio, como leitura fundamental para os altos funcionários russos.

 

Segundo Illyn, Hitler cometera o equívoco fatal do ateísmo. As impurezas da modernidade –isto é, o pluralismo e o advento da sociedade civil– teriam exilado Deus e precisariam ser purgadas pela restauração do mundo antigo. A missão redentora caberia a uma nação justa (a Rússia) disposta a seguir um líder descomunal engajado na criação de uma nova totalidade política. Putin tem bons motivos para recomendar a seus cortesãos o estudo da obra de Illyn.

 

Otan? O pretexto inicial para a invasão da Ucrânia sobrevive apenas no discurso do "anti-imperialismo" ocidental. As vozes ligadas ao Kremlin empregam a linguagem exterminista típica do fascismo. Margarita Simonyan, chefe da rede estatal RT, explica que "a Ucrânia não pode continuar a existir. O ex-presidente Dmitri Medvedev refere-se aos ucranianos como "bastardos e degenerados". Vladimir Soloviov, âncora de TV premiado por Putin, prefere a palavra "vermes": "Quando um veterinário desparasita um gato, para ele é uma operação especial, para os vermes é uma guerra e para o gato é uma limpeza".

 

A versão antiocidental da Batalha de Stalingrado contada por Stálin celebrava uma Grande Rússia destinada pela história a ser a URSS. A retificação emanada de Putin glorifica uma Grande Rússia eterna: a espada purificadora que Deus cravará num mundo pecaminoso. A adoração devotada pela extrema direita a Putin é normal. Já a simpatia da esquerda solicita investigação.


sexta-feira, 29 de março de 2019

Nazismo e fascismo como fenomenos de "esquerda", segundo chanceler atual

Não deveria surpreender, depois de tantos absurdos lidos, ouvidos, registrados, falados, externados, extravasados, gaguejados pelo chanceler acidental, ou olavista (para os mais íntimos).
Acontece que neste caso, essa posição causou estranheza em historiadores reconhecidos, que apontam o quase consenso historiográfico em torno do que poderia ser de esquerda, no fascismo e nazismo (o socialismo, aparente) e o que é efetivamente de direita (a defesa de privilégios e divisão da sociedade em estratos rigidamente hierárquicos).
Em todo caso a postura do chanceler chamou a atenção, e a maior parte dos observadores são extremamente críticos da sua postura, que só pode ter sido externada por absoluto conformismo e subserviência às ideias estapafúrdias dessa nova direita estúpida e reacionária.
Triste fim...
Paulo Roberto de Almeida

Ernesto Araújo diz a canal de YouTube que nazismo foi movimento de esquerda

Tese é considerada um disparate por acadêmicos e diplomatas; canal Brasil Paralelo propaga ideias de Olavo de Carvalho

Uma recente declaração do ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, sugere que uma tese tida como absurda e desonesta por acadêmicos e diplomatas europeus se incorporou ao discurso oficial do governo Jair Bolsonaro: a de que o nazismo foi um movimento de esquerda.
A declaração, dada em longa entrevista a um canal simpático à extrema direita no Youtube, repete um discurso que esteve em alta nas mídias sociais brasileiras durante as eleições, mas que jamais foi levada a sério por acadêmicos na Alemanha. A posição de Araújo impressionou historiadores.
Na entrevista, questionado sobre a diferença entre o nacionalismo que defende e o pregado pelos regimes autoritários passados da Alemanha, Itália e Rússia, o ministro respondeu que o sentimento nacional teria sido distorcido por grupos que o utilizaram para chegar ao poder.
"Uma coisa que eu falo muito é dessa tendência da esquerda de pegar uma coisa boa, sequestrar, perverter e transformar numa coisa ruim. É mais ou menos o que aconteceu sempre com esses regimes totalitários. Isso tem a ver com o que eu digo, que fascismo e nazismo são fenômenos de esquerda", destacou Araújo, na entrevista divulgada em 17 de março pelo Brasil Paralelo, grupo que propaga a linha de pensamento do ideólogo Olavo de Carvalho.
Foi a primeira vez que Araújo, como ministro, classificou o nazismo como um suposto movimento de esquerda —ele já o fizera em um texto publicado em 2017 em seu blog. A teoria vai contra o amplo consenso acadêmico e político sobre o tema na Alemanha, onde a disputa sobre a classificação da ideologia nazista é inexistente entre historiadores renomados.
"Quando um ministro do Exterior faz esse tipo de afirmação, considero altamente problemático diplomaticamente e um absurdo cientificamente", afirma a historiadora Stefanie Schüler-Springorum, diretora do Centro para Pesquisa sobre Antissemitismo da Universidade Técnica de Berlim.
O historiador Wulf Kansteiner, da Universidade de Aarhus, deixa claro que os nazistas jamais seguiram políticas de esquerda. "Ao contrário, propagavam valores da extrema direita, um extremo nacionalismo, um extremo antissemitismo e um extremo racismo. Nenhum especialista sério considera hoje o nazismo de alguma forma um fenômeno de esquerda. Por isso, da perspectiva acadêmica histórica, essa declaração é uma asneira", afirma.
Segundo Kansteiner, tanto o entrevistador quanto o ministro jogam com a palavra totalitarismo e, durante sua argumentação, Araújo tenta com ela traçar uma fronteira entre o nacionalismo, que seria algo bom, e o socialismo, que seria algo ruim. "Historicamente isso é um disparate", ressalta o especialista, que também é autor do livro "In Pursuit of German Memory" (em busca da memória alemã, em tradução livre).
Peter Carrier, coordenador de um projeto de pesquisa da Unesco sobre o ensino do Holocausto, promovido pelo Instituto alemão Georg Eckert, acrescenta que o ministro comete erros ao fazer referências à teoria do totalitarismo.
"Se Araújo tivesse lido precisamente os teóricos do totalitarismo e fosse fiel a suas teses, ele deveria condenar tanto a direita quanto a esquerda, pois o totalitarismo implica que regimes autoritários de direita e de esquerda são igualmente ruins", afirma.
A estratégia de tentar classificar o nazismo como uma ideologia de esquerda não é nova e chegou a ocorrer no passado em vários países. Mas nunca chegou a virar um debate sério entre especialistas.
Na Alemanha, durante as pesquisas e debates sobre o Terceiro Reich, iniciadas nos anos 1960, chegou a haver tentativas de classificar esse regime como um movimento socialista, no entanto, há décadas não restam mais dúvidas, nos âmbitos acadêmico, social e político, sobre a natureza de extrema-direita do nazismo.
Segundo Schüler-Springorum, essa estratégia era uma posição clássica da extrema-direita após a Segunda Guerra Mundial, numa tentativa de proteger o "verdadeiro nacionalismo" e se distanciar do nazismo: "Na política e ciência, porém, está mais do que consolidado que o nazismo é um movimento de extrema-direita, porque rejeita a democracia e os direitos humanos, além de dividir pessoas em grupos e hierarquizá-las".
O debate sobre o nazismo como uma ideologia de esquerda foi levantado no Brasil a partir dos anos 2000 por Olavo de Carvalho. A visão rapidamente se espalhou por páginas de direita brasileiras, ganhando adesão também entre contas de viés liberal que adotaram posições conservadoras. Entre os adeptos está o deputado Eduardo Bolsonaro, filho do presidente da República e atual presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara.
No país, os atuais defensores da visão "nazismo de esquerda" costumam se basear no nome oficial da agremiação nazista, chamada de Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães, ou NSDAP. A presença da palavra "socialista" revelaria a linha ideológica do regime. Historiadores internacionais de renome, porém, destacam que essa nomenclatura e a inclusão de políticas tidas como de esquerda no programa de governo apresentado antes das eleições de 1933 não passaram de uma estratégia eleitoral para atrair a classe trabalhadora.
"Na prática, isso não teve significado algum. O partido nazista se associou rapidamente e de maneira efetiva com as forças de direita da República de Weimar e, depois da tomada do poder, se juntou com as forças de direita da sociedade. Hitler nunca seguiu uma política socialista", destaca Kansteiner, lembrando o episódio que ficou conhecido como Noite das Facas Longas, em junho de 1934, quando integrantes de uma ala mais à esquerda do NSDAP foram mortos.
Apesar de circular há algum tempo entre grupos de direita, essa distorção histórica chamou a atenção na Alemanha apenas no ano passado, quando um vídeo publicado pela embaixada alemã em Brasília no Facebook sobre como a sociedade alemã lida com o nazismo e o Holocausto virou alvo de ataques de militantes direitistas brasileiros. 
Em entrevista à DW, o embaixador da Alemanha no Brasil, Georg Witschel, afirmou na época que a discussão sobre o "nazismo de esquerda" não tinha uma base honesta.
"Há muitas pessoas que não sabem muito sobre o nazismo. E nós queremos informar. Uma pessoa informada vai fazer de tudo para evitar uma volta do nazismo. Mas parece que há outros que têm um interesse político de reinterpretar o nazismo para encaixá-lo de acordo com seus objetivos imediatos. Esses grupos políticos fazem tentativas desonestas de mover a responsabilidade do Holocausto para o colo de outros", disse então Witschel.