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terça-feira, 12 de novembro de 2024

A Rússia é culturalmente imperialista - Rodrigo da Silva

 Thread de Rodrigo da Silva

A Rússia é o maior país do mundo. 11% de toda a área terrestre do planeta pertence à Rússia – a mesma área da superfície de Plutão. Quando o sol nasce no leste da Rússia, se põe no oeste.

Mas este país nem sempre teve esse tamanho.

Nos seus primeiros séculos, a Rússia possuía um território de 1,3 milhão de km², o equivalente ao estado do Pará.

No auge da União Soviética, esse espaço chegou a atingir 22,4 milhões de km².

Como isso aconteceu? A resposta parece estar no solo desse lugar.

No passado distante, os primeiros eslavos que se estabeleceram na Rússia encontraram terra fértil para a agricultura, mas tiveram que enfrentar um problema bastante sério: as invasões.

A Rússia foi fundada numa região da Europa sem grandes rios, montanhas e desertos, em que a média de altitude é de míseros 170 metros. Nós chamamos essa região de Planície Europeia Oriental, e ela se estende da França até os Montes Urais.

. O leste deste continente é plano.

Justamente porque é muito fácil colocar grandes exércitos para invadir os países dessa região que, ao longo da história, a Rússia sofreu diferentes invasões – e não apenas de povos nômades, como os mogóis e os tártaros. Os poloneses invadiram a Rússia em 1610; seguidos pelos suecos, em 1707; os franceses, em 1812; e os alemães – duas vezes, em ambas as guerras mundiais – em 1914 e 1941.

Só que nenhum país abocanha o maior território da Terra apenas se defendendo de ameaças externas. Os russos não demoraram para entender que a melhor estratégia para se proteger contra invasões hipotéticas é invadindo outros países e aumentando o seu próprio território.

Foi exatamente o que eles fizeram. Por séculos, os czares dedicaram um esforço monumental para atingir esse objetivo. E essa demanda obsessiva por terra como proteção foi, com o tempo, criando na Rússia uma cultura política intrinsecamente imperialista.

Os soviéticos não romperam com essa tradição. Pelo contrário: eles se empenharam em construir uma zona tampão entre o coração da Rússia e as grandes potências europeias. Nós conhecemos esse espaço como Cortina de Ferro.

Para os líderes soviéticos, controlar essas extensões de terra ao redor das suas fronteiras dava à Rússia uma profundidade estratégica; um colchão geográfico entre potenciais invasores ocidentais e os centros de poder do país.

A União Soviética era composta por 15 repúblicas que, embora na teoria gozassem de alguma autonomia, na prática, estavam sob o controle centralizado de Moscou.

Dessas 15 repúblicas, além da própria Rússia, 6 estavam no leste da Europa, ajudando a construir uma zona tampão: Ucrânia, Bielorrússia, Moldávia, Lituânia, Letônia e Estônia.

Mas a zona de influência russa não se limitava a esses países. Moscou também tinha os seus estados-satélites na Europa Oriental – Polônia, Alemanha Oriental, Tchecoslováquia, Hungria, Romênia e Bulgária. Quando nós consideramos esses lugares, no auge da União Soviética, os russos exerciam controle e influência sobre um território de 23,3 milhões de km².

Foi exatamente para combater essa política de expansão da Rússia na Europa – num momento em que este era um continente devastado pela maior guerra de todos os tempos – que a OTAN foi fundada, em 1949.

No auge da União Soviética, no pós-guerra, enquanto Moscou controlava ou influenciava 23,3 milhões de km², os outros países da Europa, somados, tinham um território de míseros 3,5 milhões de km².

Através do Pacto de Varsóvia, Moscou exercia poder sobre 61% do território europeu – quase dois de cada três metros de terra do continente.

E esses não eram os únicos países controlados ou influenciados por Moscou.

Durante a sua existência, a União Soviética patrocinou diferentes revoluções no mundo, além de dezenas de movimentos e partidos políticos que, mesmo quando não conseguiram uma revolução, alteraram radicalmente o cenário político de seus países. Alguns deles estão no poder nesse exato momento.

É por isso que o fim da União Soviética (1989-91) não representou apenas a dissolução de um estado, mas a fragmentação de um bloco que havia projetado poder global e sustentado uma identidade política homogênea para milhões de pessoa.

Vladimir Putin chama esse episódio de “tragédia genuína” – “a maior catástrofe geopolítica do século vinte”.

Hoje, três décadas após o fim desse bloco, o território russo ainda é grande o suficiente para colocar a Rússia no topo dos maiores países do planeta (com quase o dobro do território do Canadá, o segundo maior país do mundo). Mas Putin entende que a queda da Cortina de Ferro foi “uma desintegração da Rússia histórica sob o nome de União Soviética”:

“Nós nos transformamos em um país completamente diferente. E o que foi construído ao longo de mil anos foi em grande parte perdido.”

O que o líder da Rússia planeja fazer para corrigir esta “catástrofe”? Aquilo que os russos passaram os últimos séculos fazendo: expandir o território do país. O objetivo é reconstruir a União Soviética/Império Russo.

Na Guerra na Ucrânia, os russos nem fazem questão de esconder isso.

Os Estados Unidos desempenharam um papel indispensável para o colapso da União Soviética.

Mas isso não aconteceu porque os americanos têm um compromisso moral com a proteção da humanidade. Isso aconteceu porque os americanos – sobretudo os conservadores – sempre entenderam que o expansionismo russo desafia o American way of life. Os Estados Unidos não estão imunes ao que acontece no leste da Europa porque os americanos dependem visceralmente das instituições e do comércio internacional para sustentar os seus padrões de vida

Nesse momento, os Estados Unidos são a maior economia do mundo, com um produto interno bruto que ultrapassa os US$ 29 trilhões. Este é um país que nunca foi tão rico e poderoso.

Washington gasta anualmente uma fração disso, US$ 916 bilhões, nas suas forças armadas – um valor equivalente à soma dos gastos de China, Rússia, Índia, Arábia Saudita, Reino Unido, Alemanha, Ucrânia, França e Japão (os 9 países seguintes, dos 10 com os maiores gastos militares).

Os Estados Unidos são o lar de 4% da população mundial, mas 1/4 da riqueza mundial está sob controle americano.

Ao mesmo tempo, 3,4% da riqueza americana é gasta com as suas forças armadas, mas 37% do gasto mundial com forças armadas está concentrado nos Estados Unidos.

Ninguém gasta tanto com defesa quanto os Estados Unidos porque nenhum outro país tem a posição dos Estados Unidos no mundo. E o desenvolvimento dos Estados Unidos – o país mais poderoso e desenvolvido da Terra – está umbilicalmente ligado a esse poder.

Washington sustenta algo próximo de 750 bases militares em pelo menos 80 países. Todo esse poderio militar não caiu do céu. Ninguém forçou o Pentágono a construir essa estrutura.

Os Estados Unidos não gastam esse dinheiro todo porque desejam proteger o mundo da ação dos homens maus. Essa estrutura só é sustentada – com apoio bipartidário nas últimas 7 décadas – porque os ganhos que Washington alcança com essa posição são imensos.

É por isso que, nesse momento, só um cínico diria que os Estados Unidos não têm a obrigação de “proteger” a Ucrânia – como se os Washington alocasse dinheiro nessa região do mundo por altruísmo.

Não é o Ocidente quem está protegendo a Ucrânia da Rússia. É a Ucrânia quem está protegendo o Ocidente da Rússia. E quem ainda não entendeu isso, não entendeu nada sobre esse conflito.

Não é difícil prever o que acontecerá se a Ucrânia ceder um milímetro de terra para Moscou: a Rússia terá incentivos para continuar expandindo o seu território em direção ao Ocidente, mesmo que um “acordo de paz” gere uma falsa sensação momentânea de estabilidade.

Num primeiro momento, a Rússia não precisará atacar a Bielorrússia, a Geórgia e a Hungria para melhorar a sua posição porque esses países já sustentam governos fantoches, profundamente influenciados por Moscou (é verdade que a questão da Geórgia é um pouco mais sensível por conta das regiões de Ossétia do Sul e Abecásia, dois territórios disputados por Moscou).

Mas dá para prever os próximos alvos desse expansionismo: a Moldávia (provavelmente a próxima vítima russa, justificada pela proteção da população da Transnístria), a Estônia, a Letônia e a Lituânia, além da própria Ucrânia (ou o que terá sobrado dela).

A partir disso, a Rússia será uma ameaça constante para a Polônia – país que desempenha um papel crucial como ponto de trânsito para a ajuda militar e humanitária do Ocidente para a Ucrânia.

Também dá para dizer que a República Tcheca e a Eslováquia – que formavam a antiga Tchecoslováquia – viverão sob ameaça.

Para alcançar esses objetivos, a Rússia não usará apenas a carta da expansão militar. O Kremlin acelerará a sua guerra híbrida na região. Esses países continuarão sendo alvos da interferência política russa subterrânea – como vêm sendo, com sucesso para Moscou, desde 2014.

Os russos terão um papel cada vez maior:

- na política alemã, através da AfD (da direita radical) e da BSW (da esquerda radical);

- da política francesa, através do Rassemblement National;

- da política britânica, através do Reform UK;

- da política holandesa, através do PVV;

- da política austríaca, através do FPÖ;

- e da política italiana, através do Lega.

Essa ameaça contínua russa à segurança da Europa criará um ambiente de alta tensão no continente – e sem o apoio dos Estados Unidos, produzirá incentivos para que a União Europeia recorra ao pragmatismo chinês para controlar os ímpetos do imperialismo russo; o que melhorará o status da China no mundo (foi o que aconteceu entre 2017 e 2020, quando os chineses viraram os maiores parceiros comerciais da União Europeia – posição que os Estados Unidos só recuperaram sob o governo Biden, em 2022).

Essa reconstrução da ordem mundial impactará profundamente o desenvolvimento político do mundo – inclusive do Brasil, que até hoje vive as consequências da Guerra Fria: da forma como acessamos às redes sociais à maneira como compramos na internet.

O fortalecimento político da Rússia poderá aumentar o capital político e militar dos seus aliados no mundo – incluindo a China (o que ameaçará Taiwan), o Irã (o que ameaçará Israel), a Coreia do Norte (o que ameaçará a Coreia do Sul) e a Venezuela (o que ameaçará a Guiana).

Este não é um mundo mais estável e pacífico. Apaziguamento não é paz. Neville Chamberlain, ex-primeiro-ministro do Reino Unido, não era um pacifista porque assinou o Acordo de Munique, em 1938, cedendo a região dos Sudetos da Tchecoslováquia à Alemanha Nazista. Negociar com Adolf Hitler em busca de uma paz hipotética e estratégica não colaborou para tornar o mundo mais seguro – pelo contrário: tornou o mundo mais violento, instável e inseguro.

Esse cenário poderia levar 5, 10 ou 15 anos até ser deflagrado. Por um tempo, os atores políticos do Ocidente poderiam até se convencer de que um apaziguamento temporário significaria um controle da situação. Os líderes desse acordo poderiam até concorrer ao Nobel da Paz por tamanha benevolência. Mas isso seria apenas ingenuidade.

Não há um único serviço de inteligência ocidental que não aponte para o mesmo cenário. A Rússia está em expansão e não tem pressa. Qualquer metro de território ucraniano conquistado será uma vitória para Putin. Essa é a estratégia russa. Como dizia Andrei Gromiko – Ministro das Relações Exteriores da União Soviética, e uma das figuras centrais da política russa no século 20 – Moscou utiliza três regras básicas para negociar com o Ocidente:

“Primeiro, exija o máximo, não peça humildemente, mas exija. Segundo, apresente ultimatos. E, terceiro, não ceda um centímetro de terreno porque sempre haverá alguém no Ocidente que lhe oferecerá algo, talvez metade do que você não tinha antes.

É assim que nasce aquela expressão que a direita tantas vezes usou nas últimas décadas – uma nova ordem mundial.

É dessa forma que você perde a Guerra Fria.

Não será por falta de aviso.


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Comentários;

Mestre:

Gostei! De fato, a história é cíclica e o ocidente começa a entender um pouco mais sobre o imperialismo real.

A China, por exemplo, não ostenta suas ligações e parcerias estratégicas, nem age de maneira linear para alcançar seus objetivos, como fazem os ocidentais, que olham apenas para o futuro e por isso nunca sabe para onde vai, nem quem são os seus inimigos, muito menos como eles agem.

Observar a história da China é crucial para entender como ela avança, sempre com cercos duradouros, algo absorvido dos antigos mongóis. Outro ponto a se entender olhando o passado da China é a sua tendência para a boa diplomacia com povos expansionistas sanguinários, visto que mantinham grande parceria com o Império Sassanida, chegando a abrigar dezenas de embaixadas em seu território, que geograficamente eram distente na época.

E ambos se fortaleciam com métodos e estratégias de guerra que vemos até hoje, por exemplo, usando a propaganda para demonizar seus inimigos e justificar suas ações, bem como a diplomacia com inimigos estratégicos. Tanto a China quanto a Dinastia Sassanida ofereciam presentes e vantagens aos países que lhes ofereciam resistência, ou os que possuiam riquezas naturais, como bom solo, acessos ao mar, enfim. Sempre aqueles que estavam no caminho para os seus objetivos. 

Entrar nesses países tinha método: eles buscavam, principalmente, homens poderosos e corruptíveis, potenciais traidores de suas pátrias e/ou aqueles com grande ambição de poder,.

Porém, por trás dessa linda amizade, o que de fato acontecia era o início do plano tático de infiltração. Pois a partir dos acordos de intercâmbio, tanto os Sassanidas quanto os Chines, ou ambos, empregavam nesses países um grande número de espiões e agentes, que agiam para abastecer a rede de informação e, o mais crucial para eles, esses exércitos invisíveis garantiam muitas vezes aos generais uma vitória a necessidade da guerra.

Como faziam isso? Gerando caos com desinformação, estimulando conspirações, assassinatos sem explicação e tudo o que podiam fazer para drenar a força dos alvos, incluindo colocar esses alvos em guerras diversas e, durante as campanhas, iniciavam uma escala de sabotagem em tantas áreas dispersas que o Rei, Governador Susserano caia em desgraça.

Puxa, ainda poderia falar mais, como a perseguição religiosa é a opressão, mas acho que deu para entender mais um pouco da China, do Iran e sobre quem abastece os imperialistas sanguinários no mundo... a saber: o comunismo e os seus idiotas úteis, adeptos da ideologia ou da religião baseada no zoroatrismo reformado.

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Bruno Souza:

Rodrigo, bons pontos, mas acho que faltou um importante: pro Putin se aventurar um pouco mais a oeste, forçosamente entraria em choque direto com um país-membro da OTAN, e aí o cenário é bem diferente. Que há uma intenção expansionista é claro - mas daí a presumir que qualquer perda na Ucrânia significa carte blanche pra festa do caqui do Putin eu considero um salto. Parte central da discussão aqui na Europa é justamente o risco de escalada incontrolável em torno do Ucrânia que leve a um conflito direto da OTAN com a Rússia, e é o que todos querem evitar. Pragmaticamente: preferem entregar um pedaço da Ucrânia pra evitar um risco de conflito nuclear agora.

sábado, 9 de novembro de 2024

A decisão geopolítica mais relevante deste século - Paulo Roberto de Almeida

 A decisão geopolítica mais relevante para o resto deste século é a decisão de Trump se ele forçará, ou não, a Ucrânia a capitular em face de Putin. Se o fizer, estaremos de volta aos anos 1930. No comércio internacional já é o caso, aliás direto ao mercantilismo. 

Paulo Roberto de Almeida 

Brasília, 9/11/3024

Rússia: “Vamos fazer Ciência, não a guerra” - Glauco Arbix

From: Glauco Arbix (Linkedin)

Putin conseguiu degradar uma ciência outrora pujante. Vigiados e amordaçados, pesquisadores de todas as áreas procuram outros países e ambientes para gerar conhecimento. Fora do complexo militar, que concentra o interesse do governo, os laboratórios se degradam e manifestações críticas à guerra são duramente reprimidas. A revista Science trouxe uma sequência de depoimentos de cientistas que, ainda na Rússia, mas protegidos pelo anonimato, relataram a censura e a vigilância sobre as universidades e a pesquisa. Cientistas, ainda na Rússia, na condição de anonimato, falaram da mordaça e do controle que constrange hoje a ciência russa. Mesmo assim, contra o medo, uma carta aberta com mais de 4 mil assinaturas de cientistas e estudantes contra a guerra conseguiu circular. E foi reprimida com milhares de prisões. Essa resistência é exemplo para quem acha que a ciência é neutra e nada tem a ver com a política. Ciência não floresce em torres de marfim. Precisa de liberdade e da troca de conhecimento. Seria oportuno que, no G20, a ciência brasileira se manifestasse contra a guerra da Ucrânia e repetisse a exclamação dos cientistas russos gravada na carta aberta: ‘Vamos fazer ciência e não a guerra!'.

https://lnkd.in/dmDxvgy3 


segunda-feira, 21 de outubro de 2024

Certas quedas são extremamente bem-vindas... - Lula ausente da reunião do Brics - Igor Gielow (FSP)

Certas quedas são extremamente bem-vindas... Ausência de Lula na cúpula do BRICS evita possíveis tensões diplomáticas com os EUA Igor Gielow Folha de S. Paulo, 21/10/2024 - 09h36 A ausência do presidente Luiz Inácio Lula da Silva na 16ª Cúpula do BRICS, realizada em Kazan, Rússia, pode ter evitado um cenário diplomático delicado para o Brasil, de acordo com especialistas em relações internacionais. Leonardo Trevisan, professor da ESPM, destacou que um encontro presencial entre Lula e o presidente russo Vladimir Putin poderia ter gerado tensões com os Estados Unidos, considerando o atual contexto de conflitos globais. Em análise publicada no Estadão, Trevisan afirmou que, diante das crescentes tensões entre o Ocidente e a Rússia, uma imagem de Lula ao lado de Putin poderia ser interpretada de forma negativa pelos Estados Unidos. “O aperto de mãos com Putin seria visto como um sinal de alinhamento em um momento de confronto entre o Ocidente e a Rússia”, explicou Trevisan. Segundo o especialista, isso poderia resultar em pressões diplomáticas adicionais para o Brasil, especialmente em sua relação com Washington e outros aliados ocidentais. A cúpula do BRICS, que reúne Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, discute uma série de temas, incluindo a desdolarização das economias do bloco. Essa pauta já provocou reações nos Estados Unidos, particularmente de Donald Trump, ex-presidente e atual candidato à presidência pelo Partido Republicano. Trump tem sido categórico em suas declarações sobre o tema, afirmando que, se retornar ao poder, buscará punir países que optarem por seguir esse caminho. Além disso, Trevisan comentou que outro aspecto sensível seria a possibilidade de um encontro entre Lula e o presidente do Irã. Para o professor, tal reunião poderia ser vista como um distanciamento do Brasil em relação a aliados tradicionais no Oriente Médio, como Israel. Embora o Brasil tenha mantido uma postura crítica em relação a Israel em diferentes ocasiões, uma reunião com o Irã, neste momento, poderia ser interpretada como uma mudança significativa na política externa brasileira. “Isso ultrapassaria um limite que o governo brasileiro tem evitado até agora”, destacou o especialista. Outra questão em debate na cúpula é a proposta de China e Índia de incluir a Nicarágua e a Venezuela no BRICS, uma ideia que, segundo Trevisan, não é vista com bons olhos pelo Brasil. Ele apontou que o governo brasileiro considera que essas inclusões não trariam benefícios estratégicos. “O Brasil não tem interesse em fortalecer suas relações com a Nicarágua, e a reaproximação com a Venezuela ainda é um processo delicado”, afirmou. Em meio a esses contextos, o Brasil será representado na cúpula pelo ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira. Fontes diplomáticas indicaram que a ausência de Lula foi justificada como “força maior”, em razão de um acidente doméstico sofrido pelo presidente no fim de semana. O ministro Vieira, de acordo com essas fontes, terá plenos poderes para negociar e representar o Brasil em todas as discussões. A presença de Vieira na cúpula reflete a importância dada pelo governo brasileiro ao BRICS, ao mesmo tempo que busca evitar a associação direta de Lula com Putin, em um momento em que as relações entre Rússia e países ocidentais estão especialmente tensas. A participação do Brasil no BRICS é vista como uma oportunidade para fortalecer laços econômicos e políticos com outras potências emergentes, mas também exige cuidados na condução das relações internacionais, especialmente com os Estados Unidos. A estratégia de Lula parece ter sido calculada para manter o equilíbrio entre diferentes interesses geopolíticos. O Brasil, como membro do BRICS, está engajado nas discussões do bloco, que busca reduzir a dependência do dólar nas transações internacionais. Contudo, o país também mantém relações importantes com os Estados Unidos e a União Europeia, e um alinhamento explícito com a Rússia e a China poderia comprometer esses laços. A ausência de Lula, portanto, pode ser vista como uma medida preventiva para evitar confrontos diplomáticos que poderiam surgir em meio ao cenário internacional volátil. Embora o Brasil busque ampliar sua influência no BRICS, o governo parece estar ciente dos riscos de ser associado de forma muito próxima aos interesses de Rússia e China, especialmente em um momento em que os Estados Unidos demonstram grande sensibilidade em relação à postura de seus aliados em temas globais. Com isso, o papel do Brasil na cúpula do BRICS ficará nas mãos do ministro Vieira, que terá a tarefa de conduzir as negociações sem comprometer a posição de neutralidade que o país tem procurado manter. A decisão de Lula de não participar pessoalmente do encontro em Kazan pode ter sido um movimento estratégico para proteger a diplomacia brasileira de um embaraço internacional.

domingo, 6 de outubro de 2024

Pessoas cometem erros, países cometem erros: uma análise histórica - Paulo Roberto de Almeida

Pessoas cometem erros, países cometem erros: uma análise histórica Paulo Roberto de Almeida, diplomata, professor. Sobre como se aprende melhor com erros do que com acertos, a partir de exemplos nacionais. Nenhuma trajetória, individual ou coletiva, é isenta de desvios, de percalços, de erros ou de desastres. Erros individuais são, aparentemente, mais fáceis de corrigir, dado que eles podem ser objeto de recriminações, de alertas, de recomendações de terceiros, geralmente os mais próximos, ou seja, familiares ou amigos, o que pode (nem sempre o faz) induzir o sujeito equivocado – por ignorância, ingenuidade, ambição ou alienação temporária – a tentar retificar suas ações e retomar um caminho, senão virtuoso, pelo menos mais adequado às circunstâncias e limitações da vida prática. (...) Brasil e Argentina talvez estejam ainda sob o domínio excessivo dos “instintos primitivos” de seus animais políticos. Provavelmente já é mais do que tempo de se livrar das oligarquias regressivas e abrir espaços para a energia dos empreendedores individuais. O senso comum considera que a China é uma ditadura comunista, o que é apenas meia verdade. Se consultarmos os indicadores setoriais de liberdade econômica, constataríamos que a China é mais livre, economicamente, do que Brasil, Argentina e a maioria dos países. Paulo Roberto de Almeida Brasília, 4751, 6 outubro 2024, 8 p. Disponível na plataforma Academia.edu; link: https://www.academia.edu/124475398/4751_Pessoas_cometem_erros_paises_cometem_erros_uma_analise_historica_2024_

segunda-feira, 23 de setembro de 2024

ONU adota 'Pacto para o Futuro' com 56 medidas para enfrentar desafios da atualidade (Oposição da Rússia da Venezuela e Nicarágua)

ONU adota 'Pacto para o Futuro' com 56 medidas para enfrentar desafios da atualidade

Críticos alegam que, apesar de conter boas ideias, documento fica aquém das necessidades para mudanças reais.

Em um mundo ameaçado por "riscos catastróficos crescentes" como guerras, mudanças climáticas e pobreza, os líderes dos 193 países da ONU adotaram neste domingo um "Pacto para o Futuro" da Humanidade, apesar da oposição de alguns países como RússiaVenezuela Nicarágua. A iniciativa foi lançada na Cúpula para o Futuro, evento paralelo à Assembleia Geral das Nações Unidas, que se desenrola na próxima semana em Nova York.

— Convoquei esta cúpula porque os desafios do século XXI devem ser resolvidos com soluções do século XXI — firmou o secretário-geral da ONU, António Guterres, após a adoção deste texto com 56 medidas para enfrentar os "maiores desafios do nosso tempo". 

Estes desafios vão desde a reforma do Conselho de Segurança da ONU, a arquitetura financeira global, a manutenção da paz e as mudanças climáticas, até questões mais inovadoras, como a Inteligência Artificial.

Guterres lançou a ideia da chamada Cúpula do Futuro em 2021, mas nos últimos dias não escondeu sua frustração diante das dificuldades de chegar a um consenso para um texto ambicioso, para o qual pediu aos Estados que mostrassem "visão", "coragem " e "ambição".

 

"Acreditamos que existe um caminho para um futuro melhor para toda a Humanidade, incluindo para aqueles que vivem na pobreza e na exclusão", diz o texto, ao qual se opuseram Rússia, Venezuela, Nicarágua, Coreia do Norte e Bielorrússia. 

Apesar da oposição dos países liderados pela Rússia, o pacto e os seus anexos (Pacto Global Digital e Declaração para Gerações Futuras) foram adotados por consenso, mas não são vinculantes.

 

Esta nova "caixa de ferramentas" define novos compromissos, abre "novos caminhos para novas possibilidades e oportunidades”, lembrou Guterres, que prometeu trabalhar "para sua concretização até ao último dia" de seu mandato.

 

— Abrimos a porta, agora todos nós devemos passar por ela, pois não se trata apenas de nos entender, mas de agir. E hoje os desafio a agir — disse Guterres. 

Presente na cúpula, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva defendeu, na manhã deste domingo, o maior engajamento dos líderes mundiais em termas da agenda global considerados críticos. Ao discursar na sessão de abertura da Cúpula do Futuro, Lula afirmou que "faltam ambição e ousadia" no cenário atual. 

— Vamos recolocar a ONU no centro do debate econômico mundial — afirmou, reconhecendo que houve alguns avanços, como as negociações para um Pacto Digital. 

— Todos esses avanços serão louváveis e significativos. Mas, ainda assim, nos faltam ambição e ousadia. 

Lula criticou a falta de dinheiro dos países desenvolvidos para mitigar os efeitos do aquecimento global. Disse que os recursos para financiar projetos ambientais são insuficientes e alertou que os chamados Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) podem se transformar em um grande fracasso coletivo.

 

As críticas também foram feitas por outros participantes e observadores. Embora existam algumas "boas ideias", "não é o tipo de documento revolucionário" para reformar o multilateralismo que Guterres gostaria, disse à AFP Richard Gowan, pesquisador do International Crisis Group, um dos mais importantes centros de estudos internacionais e avaliação de riscos. 

A opinião é compartilhada entre diplomatas dos Estados-Membros: "morno", "o menor denominador comum", "decepcionante" são os adjetivos mais frequentes. 

O combate ao aquecimento global foi um dos pontos mais sensíveis da negociação, em particular a "transição" das energias fósseis para as mais limpas. Os países em desenvolvimento exigem compromissos concretos relacionados às instituições financeiras internacionais, para facilitar o acesso preferencial ao financiamento de medidas para enfrentar as mudanças climáticas. 

 

Para a ONG Human Rights Watch, o projeto inclui alguns "compromissos importantes" nessa área, e também acolhe os elementos importantes sobre "direitos humanos". Mas "os líderes mundiais devem demonstrar que estão dispostos a agir para garantir o respeito pelos direitos humanos", insiste Louis Charbonneau, especialista da ONG na ONU. 

— Este é um sinal positivo para o caminho a seguir, mas o verdadeiro trabalho está na implementação, e os líderes políticos devem transformar esta promessa em ação — reagiu o diretor-executivo do Greenpeace Internacional, Mads Christensen.

 

— Este pacto deve realmente oferecer um futuro que as pessoas desejam: livre de combustíveis fósseis e um clima seguro.

 

 

segunda-feira, 2 de setembro de 2024

Apenas uma expressão de horror - Paulo Roberto de Almeida

Apenas uma expressão de horror

  

Paulo Roberto de Almeida, diplomata, professor.

Nota sobre o morticínio sendo conduzido por Putin na Ucrânia, na indiferença dos demais Estados membros da ONU.

  

Estou tão horrorizado quanto qualquer pessoa bem-informada pelo tremendo recuo civilizatório experimentado pela Rússia de Putin desde o início de seu neoczarismo retardatário e pelo sofrimentos que ele vem causando desde 2008 aos seus vizinhos, renovados em 2014 e com maior amplitude a partir de 2022, em escala praticamente mundial.

Estou horrorizado pela incapacidade da maior parte das lideranças dos Estados membros da ONU, da própria ONU, de respeitarem os preceitos da Carta quanto ao Direito Internacional.

Estou horrorizado quanto à postura dos governos brasileiros, desde 2014, novamente em 2022, e continuando ainda em 2024, numa demonstração cabal de indiferença aos horrores perpetrados pelo Estado russo sob Putin na manutenção de contínuas violações do Direito humanitário, das leis da guerra, na prática constante de crimes contra a Paz e contra a humanidade.

Não disponho de nenhum outro recurso contra as desumanidades correntes a não ser a expressão impotente de meu horror em face do mal absoluto. Apenas um registro para a História.

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4723, 2 setembro 2024, 1 p.


domingo, 25 de agosto de 2024

O novo ordenamento internacional: China e Rússia; os chineses do Sudeste Asiático e os russos do “exterior próximo - Paulo Pinto (Linkedin)

 

O NOVO ORDENAMENTO INTERNACIONAL -CHINA E RÚSSIA Os chineses do Sudeste Asiático e os russos do “exterior próximo

Embaixador do Brasil aposentado. Percursos diplomáticos diferenciados.

São frequentes as referências a novo ordenamento internacional, seguidas de menções a formas de governança vigentes na China e Rússia, bem como à possível influência que estas poderiam exercer em outras partes do mundo.

Nesse contexto seria oportuna a reflexão sobre diferenças entre a evolução das formas de convivência entre a RPC e os chineses que incluem significativa população no Sudeste Asiático (overseas chinese), e as dificuldades nas relações da Rússia, com países vizinhos onde vivem, como herança da União Soviética, russos do “exterior próximo”.

Isto é, a interação conquistada na antiga área periférica da China aconteceu através de sucessivas formas de articulação entre sociedades civis de identidades culturais variadas. No caso dos países que compunham a ex-URSS, desde sua extinção, deixou de ocorrer o mesmo tipo de relacionamento entre as nações que foram então emancipadas, oprimidas por regimes opressivos impostos por Moscou. A questão da Ucrânia, como consequência deste sistema disfuncional será mencionada, com referências às tentativas de negociação, na moldura dos Acordos de Minsk, na parte final deste artigo.

I

Assim, o sistema de governança no Sudeste Asiático absorveu influência chinesa, com base em tradições confucionistas. Não se buscou a segregação ou mesmo a eliminação de uma ou outra etnia. Assistiu -se, ao contrário, a uma organização regional, não ao redor de blocos ou polos alternativos, mas em redes concomitantes de cooperação, rivalidades e, por vezes, conflito.

Muitos tópicos da agenda de preocupações, daquela região, então vigentes, têm influência no papel agregador que a ASEAN exerce, agora, entre o Sudeste Asiático e demais países da Ásia Pacífico. Recorro, a propósito da evolução do relacionamento entre os países daquela região, a conversa que mantive, em Jacarta, com o Professor Jasuf Wanandi, então Diretor do Instituto de Estudos Estratégicos Internacionais da Indonésia, em 1994 – período durante o qual a ASEAN começava a consolidar seu papel de força motora e moderadora no Sudeste Asiático.

Naquela ocasião, ouvi longa e prazerosa explicação a respeito do conceito regional sobre resiliência, que predominava nas discussões entre centros de estudos naquela parte do mundo. Wanandi me explicou que: “Resiliência nacional, no plano interno, significa a habilidade de uma nação assegurar a evolução social necessária, enquanto mantém uma identidade própria. No plano externo, é expressa na capacidade de encarar ameaças com características diversas.”

A resiliência nacional, portanto, comporta o fortalecimento de todos os elementos que compõem o desenvolvimento de uma nação, incluindo os setores ideológico, político, econômico, social, cultural e militar. Se cada nação, de um grupo geográfico determinado, desenvolver sua própria resiliência nacional, gradativamente, uma resiliência regional emergirá.

Isto é, os países membros desenvolverão a habilidade de resolver, em conjunto, seus problemas em comum, bem como criarão uma visão de futuro e bem-estar compartilhada.

Esse esclarecimento me foi transmitido por ocasião de périplo que realizei por centros de estudos estratégicos em capitais do Sudeste Asiático (Manila, Bangkok, Kuala Lumpur, Singapura e Jacarta), Pequim e Hong Kong, de primeiro a 25 de março de 1994, por proposta minha e patrocínio do Itamaraty (então sob o comando do Embaixador Celso Amorim, em sua primeira encarnação como Chanceler, durante a Presidência de Itamar Franco).

O objetivo do esforço de estabelecimento de vínculos com essas instituições acadêmicas foi o de criar canais de interlocução com aquela parte do mundo, onde acontecia, no final do século passado, evolução econômica e política acelerada.

Nesse processo, desenvolvia-se reflexão sobre estratégia própria, com a utilização crescente de núcleos de pesquisa específicos, como os visitados. Isso acontecia, fosse como reação a desafios de seu próprio desenvolvimento autônomo, fosse como resposta a questões impostas do exterior.

Propostas semelhantes, a propósito, constam de discursos recentes do presidente chinês Xi Jinping, no que diz respeito a forma de governança “com características chinesas”, como o que consta do enunciado de uma Comunidade de Nações com Destino Comum.

II

A Comunidade de Nações com Destino Comum

O conceito da comunidade de destino comum da humanidade, que Xi Jinping tem proposto, articularia a experiência chinesa de convívio pacífico e solução negociada de conflitos internos e externos com sua própria concepção de cooperação econômica.

Em seus pronunciamentos, Xi ressalta que “a China, nação com mais de cinco mil anos de história, enfrentou conflitos diversos ao longo dos tempos. A pacificação do Império só foi possível pelo estabelecimento de acordos entre a China e os povos que conviviam no mesmo território. Como resultado, hoje convivem, na China, mais de 50 etnias, 24 idiomas e cinco sistemas de escrita. Há ainda templos budistas, igrejas cristãs e mesquitas por todo o território.”

Ainda segundo o dirigente da RPC, “essa experiência aplicou-se também no nosso tempo, especialmente na questão dos territórios de Hong Kong e Taiwan, onde funcionam sistemas diferentes do restante do país, mas mantém-se a unidade nacional por meio de negociações”.

“A fórmula “um país dois sistemas” vem permitindo o convívio pacífico apesar das diferenças e de alguns retrocessos, como a atual hostilidade de autoridades de Taiwan, eleitas pelo “Partido Democrático Progressista”. É certo que a parte continental da China teria meios suficientes para submeter as ilhas pela força. Mas essa via não é do interesse do Estado chinês, que mantém o entendimento de que a ação militar é sempre a pior solução.”

A economia tem papel destacado no conceito de comunidade de destino da humanidade: “ao contrário dos países imperialistas” (uma vez que a China sofreu, no século 19 e primeiras décadas do século 20, com a ação imperialista de europeus, japoneses e estadunidenses, que invadiram e dividiram seu território para explorar seu povo), que impõem seus próprios termos para o comércio entre as nações, o gigante asiático propõe a cooperação econômica de tipo ganha-ganha com países em desenvolvimento.

No momento, a China está expandindo seus interesses por acesso a recursos naturais e a novos mercados, ao Pacífico Ocidental, ao redor da periferia dos países do Sudeste Asiático, e ao sul da Ásia, bem como em direção à Ásia Central e crescentemente sobre o “continente eurasiano”.

Com respeito ao relacionamento da RPC com o Sudeste Asiático, Pequim formula discurso com o realce de laços históricos que têm sido capazes de garantir a inserção internacional chinesa atual em universo de influência cultural do antigo Império do Centro.

Procura, então, dar versão benigna às viagens do Almirante Zheng He, ocorridas há 600 anos, aos mares austrais do continente asiático. Quanto à Ásia Central e Eurásia, registram-se formulações quanto ao ressurgimento de uma Nova Rota das Sedas. Assim, a China está empenhada na frenética construção de ferrovias, estradas e dutos para a importação de recursos energéticos, através da Eurásia. Tais vias de transporte substituirão as caravanas de camelos da antiga Rota das Sedas. Da mesma forma, a moderna Marinha da RPC substitui a frota de Zheng He, nas costas da África e do Mediterrâneo.

O objetivo – segundo Pequim - é estabelecer um fluxo de livre comércio e futura integração internacional de mercados. Com essa iniciativa, a China almeja novas oportunidades de comércio, estabelecendo “network” de integração e cooperação (conectividade, para empregar o termo preferido de seu governo atual) com vários países que se dispuserem a participar.

Assim se materializaria a iniciativa de um cinturão e uma rota, lançada por Pequim, em 2013, ambicionando a modernização da massa terrestre eurasiana, onde vive (incluindo chineses e indianos) cerca de sessenta por cento da população mundial. Ademais, tendo em vista a fragilidade do sistema de poder internacional vigente, o projeto de “Belt and Road” poderia indicar um novo ordenamento nas relações entre os países a serem incluídos.

Os dirigentes chineses pretendem, de qualquer forma, resgatar as referidas expedições marítimas históricas como registro de suas intenções pacíficas e exemplo da permanente busca de harmonia – em oposição a hegemonia – nas relações da China com seus vizinhos ao sul de suas fronteiras. O Partido Comunista Chinês (PCC), portanto, se esforça, tanto no plano interno, quanto no das relações com o exterior, no sentido do convencimento de que, em todos os momentos de emergência do país – há 600 anos, como agora – a China pode ser forte, sem representar ameaça ou interferência regional ou mundial.

III

Moscou e os Russos do Exterior Próximo

São distintas da situação dos “overseas chinese”, no entanto, as relações entre Moscou e pessoas que conservam a identidade cultural russa, em países vizinhos, ex-integrantes da URSS. Desnecessário lembrar que, ao contrário do deslocamento de chineses para o Sudeste Asiático, resultado de ações da sociedade civil e ocorrido há centenas de anos, os russos do exterior próximo foram estabelecidos por decisão do Governo em Moscou, no século passado, a partir da criação da União Soviética.

Existiria, a propósito, uma visão de futuro que sugeriria novos vínculos para um espaço pós-soviético, seguindo caminho no sentido de uma União das Repúblicas do Exterior Próximo. Isto é, o Presidente Vladimir Putin, em documento publicado em 2008, propôs “Um novo projeto de integração para a Eurásia: o futuro que nasce hoje”. Sugeria, em suma, algo mais parecido com roteiro de um bem-organizado retorno a passado saudoso (para ele) do que movimento em direção a objetivo inovador.

Como se sabe, durante a existência da URSS, Moscou dirigia todos os detalhes da organização político-socioeconômica das Repúblicas Soviéticas. A réplica desse mesmo projeto permeia a referida proposta do Presidente da Federação Russa. Assim, Vladimir Putin retomava, com o conceito da União Eurasiática, a defesa da fusão de mecanismos de integração existentes, com vistas à criação de um polo de poder no mundo contemporâneo, com sede na capital russa, situada cartograficamente entre a Europa e a região da Ásia e do Pacífico.

O líder russo revelava que a meta era chegar a patamar superior de integração. Na prática, isso significaria a reconstrução de relações com países do exterior próximo, que integraram tanto o Império Russo, quanto a União Soviética.

O processo desordenado e irresponsável como foi dissolvida a União Soviética, em 1991, a propósito, provocou turbulências além das ora sofridas na Ucrânia, bem como temidas em outras ex- Repúblicas que pertenceram à URSS, como a Moldova, Lituânia, Estônia e Letônia. Em todos esses Estados que se emanciparam de Moscou, permaneceram cidadãos que utilizam o idioma russo e são chamados, pelo Presidente Putin, como exterior próximo.

A forma de governança adotada a partir da criação da União Soviética, como se sabe, não favoreceu o florescimento de ideologias em competição entre si, no âmbito de fronteiras definidas no período pós-independência, em 1991. Havia que prevalecer, segundo essa maneira de pensar, apenas o conjunto de ideias-forças definidas pelas autoridades centrais. Esse processo facilitaria o congelamento de lideranças que, à maneira antiga de pensar, não admitiam contestação.

Como resultado, esse sistema autoritário permeou as estruturas básicas desses novos Estados, ainda sob influência do estilo de governança soviético, e facilitou, em certa medida, que projetos de poder pessoais viessem a ser consolidados. Lembra-se que, durante a existência da URSS, enquanto novas Repúblicas, traçadas a partir de Moscou, foram se consolidando, classes dirigentes fortaleceram-se com métodos de governança soviéticos, tais como julgamentos e execuções sumários, e desaparecimentos.

Na medida em que essas modalidades de controle social iam se incorporando aos hábitos locais, vínculos de cumplicidades congelavam elites que se mantinham no poder, às custas do emprego da violência contra seus próprios nacionais e minorias de russos do exterior próximo (inclusive na Ucrânia, conforme será mencionado na sequência deste artigo).

Crises atuais, como a da invasão militar da Ucrânia e o conflito congelado no Cáucaso (entre Armênia e Azerbaijão), têm sua origem na forma desordenada como ocorreu o processo de desintegração da União Soviética. Na medida em que o mecanismo ideológico que a sustentava desapareceu, sobreviveram rivalidades criadas e consolidadas pelo modelo de governança stalinista.

Este privilegiava lideranças das chamadas repúblicas soviéticas que, após o desaparecimento da URSS, insistem em defender prerrogativas próprias que lhes foram outorgadas pelo velho regime.

Tais privilégios diziam respeito, principalmente, ao conceito de autodeterminação, que veio a provocar o surgimento de repúblicas soviéticas –etapa intermediária para a consolidação do socialismo – com capacidade de decisões próprias, com o emprego, até mesmo, de forças armadas a sua disposição. O objetivo final, após aquele período, seria a inserção de todos esses minis governos na moldura de governança maior da então poderosa União Soviética. A etapa posterior ocorreria com a universalização do poder do proletariado.

A dialética marxista garantiria que, com o desaparecimento da luta de classes, as referidas repúblicas se dissolveriam, em favor do interesse maior compartilhado por todos, “ansiosos por serem conduzidos ao comunismo”. Nessa perspectiva, a origem dos problemas que ainda permanecem nas antigas Repúblicas Soviéticas encontra-se na complexa interpretação stalinista sobre o significado de nação.

Em termos reconhecidamente simplificados, é possível entender que, para aquele líder soviético, caberia distinguir nação de raça, tribo, grupo linguístico ou pessoas que simplesmente habitassem o mesmo território. A nação, segundo Stalin, seria uma comunidade que teria “evoluído historicamente e se tornado estável”. Tal conceito poderia ser definido em termos de uma cultura comum, a incluir “idioma, território, vida econômica e características psicológicas semelhantes”.

Coerente com o raciocínio do materialismo histórico, Stalin identificaria, como contradição principal, o surgimento do nacionalismo, principalmente como resposta à opressão por algum outro grupo social. Isto é, a consciência nacional – da mesma forma que a de classe – surgiria em função da circunstância de que uma comunidade nacional se encontrasse subordinada a outra.

A diferença entre o conceito stalinista de nação e o pensamento burguês sobre o tema seria, que, para este “o nacionalismo seria o caminho para a guerra e o imperialismo”. Para os seguidores do líder soviético, no entanto, apenas um sistema político, que permitisse a nações exprimirem seu desejo de autodeterminação evitaria conflitos e eliminaria a burguesia do poder. Tal autodeterminação, contudo, deveria ser claramente percebida como sendo “em benefício dos interesses do proletariado”.

Dessa forma, por exemplo, não seria permitido a líderes religiosos reivindicarem autodeterminação de uma área, apenas para satisfazer anseios de muçulmanos ou cristãos. “Os interesses dos trabalhadores, como um todo, deveriam ser levados em conta para obter o benefício em questão.”

Seria a conveniência da promessa de estabilidade – cabe ressaltar – oferecida pela proposta de Putin que agradaria autoridades dessas ex-Repúblicas Soviéticas. Afinal, acena-se com um patamar superior de integração com a reconstrução das relações com os países do exterior próximo, que integravam o Império Russo e a URSS.

O encanto desse projeto vem sendo diluído pela intervenção russa na Ucrânia. Outros países que integraram a URSS passaram a temer o mesmo destino. Assim, cabe não esquecer quais eram os objetivos originais de Moscou, no sentido de projetar imagem positiva de uma Federação de Nações do Exterior Próximo. Na prática, tratava-se de reviver o antigo Império Russo.

IV

A Questão da Ucrânia e os Acordos de Minsk

A atual questão da Ucrânia é o exemplo maior de tragédia criada em país vizinho da Rússia, como resultado da forma desordenada como aconteceu, em 1991, a implosão da União Soviética e da presença de russos do exterior próximo, em território ucraniano.

Para a solução do conflito, foram concebidos os Acordos de Minsk. Assinados em 2014 e 2015 por representantes de Ucrânia, Rússia, França, Alemanha e das chamadas Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk, onde predominavam russos do exterior próximo. Os referidos documentos não conseguiram solução pacífica para o conflito em Donbass, na fronteira russo-ucraniana.

Em 22 de fevereiro de 2022, dois dias antes de começar sua operação militar especial, Moscou reconheceu a independência de Donbass e Putin esclareceu que a medida fora adotada porque Kiev afirmara publicamente que não cumpriria os Acordos de Minsk. Lembra-se que, em fevereiro de 2014, o governo democraticamente eleito da Ucrânia fora derrubado pelo chamado movimento Euromaidan, que teria sido apoiado por potências ocidentais.

O golpe desencadeou um conflito sangrento nas regiões orientais do país, onde parte da população – predominantemente de expressão russa – recusou a nova liderança de Kiev. Formaram-se, então, as Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk (RPD e RPL, respectivamente). Kiev, então, tentou subjugar rapidamente as repúblicas recém-formadas por meios militares, sem sucesso.

Não tendo conseguido vitória decisiva no campo de batalha, visto o apoio militar da Rússia aos dissidentes e o apelo das potências europeias por uma solução pacífica para o conflito, a Ucrânia recorreu a negociações. Estas foram dificultadas pela relutância do governo ucraniano em falar diretamente com os líderes da RPL e RPD. Foram, então, formados o Grupo de Contato Trilateral sobre a Ucrânia, composto por Kiev, Moscou, Organização para Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) e o Formato Normandia, incluindo Ucrânia, Rússia, Alemanha e França.

Chegou-se, assim, ao que ficou conhecido como os Acordos de Minsk, por terem as negociações sido realizadas na capital bielorrussa, considerada, então, um terreno neutro. O primeiro desses acordos, o Protocolo de Minsk, foi assinado em 5 de setembro de 2014. Diante da ausência de resultados positivos, foi realizada nova versão, conhecida como Acordos de Minsk-2, assinada em 12 de fevereiro de 2015. O acordo Minsk-2 foi firmado durante uma reunião do Formato da Normandia, que incluiu o presidente russo, Vladimir Putin, a então Chanceler alemã Angela Merkel, o então presidente francês, François Hollande, e o então presidente ucraniano, Pyotr Poroshenko.

As partes prometeram: cessar-fogo e retirar suas forças da linha de contato; a presença de armas pesadas na área da zona-tampão foi estritamente proibida; os sistemas de foguetes de lançamento múltiplo Uragan e Smerch, bem como o sistema de mísseis balísticos de curto alcance Tochka, deveriam ser retirados a 70 km da linha de contato; observadores da OSCE deveriam monitorar a implementação dessas regras; além da troca de prisioneiros de acordo com o princípio “todos por todos”, os lados foram obrigados a realizar a anistia dos capturados durante os confrontos armados; o lado ucraniano também deveria adotar a lei sobre o status especial dos distritos separados de RPL e RPD e realizar eleições locais, levando em consideração o posicionamento dos representantes de ambas as repúblicas de Donbass.

No dia seguinte às eleições, Kiev deveria assumir o controle total da fronteira estatal ucraniana; além disso, os Protocolos de Minsk estipulavam a implementação de uma reforma na Ucrânia, que previa a introdução de um conceito de descentralização na Constituição do país, que deveria ter levado em consideração as especificidades de “certos distritos das regiões de Donetsk e Lugansk”. Segundo Moscou, contudo, durante os cinco anos seguintes, “o lado ucraniano simplesmente se absteve de implementar as cláusulas políticas dos Acordos de Minsk, exigindo, em vez disso, que o controle da fronteira entre os territórios da RPL e RPD fosse entregue primeiro a Kiev”.

Essas exigências, no entanto, foram rejeitadas pelas autoridades das ditas repúblicas e por Moscou, que suspeitava que, uma vez que as forças ucranianas assumissem o controle da fronteira e isolassem efetivamente as repúblicas do mundo exterior, Kiev poderia então tentar esmagar toda a oposição por meios militares. A RPD e a RPL, assim como a Rússia, também acusaram o governo ucraniano de ocupar assentamentos ilegalmente na zona-tampão e de colocar equipamento militar pesado na região.

A situação foi ainda mais agravada pelo fato de que as potências ocidentais repetidamente fecharam os olhos à recusa de Kiev em aderir aos Acordos de Minsk, ao mesmo tempo em que repreendiam constantemente a RPD e a RPL por supostas violações dos mesmos acordos. Em 21 de fevereiro de 2022, Putin assinou um decreto para reconhecer a independência das repúblicas de Donbass, que mais tarde “se tornaram parte da Rússia”. A iniciativa resultou em ataques ucranianos crescentes de bombardeios e sabotagem contra a RPL e a RPD. O decreto foi seguido por anúncio de Putin quanto ao início de uma “operação militar especial russa” na Ucrânia em 24 de fevereiro.

V

Experiências pessoais

Durante os nove anos em que servi no Sudeste Asiático (1986 a 1995), sucessivamente, em Kuala Lumpur (Malásia), Singapura, e Manila (Filipinas), notei que eram cordiais as relações sociais entre pessoas de origem chinesa e malaios e hindus (outros grupos predominantes). Mesmo diante do conceito de resiliência, explicado acima, verificava-se, contudo, uma certa tensão latente, quando um grupo ou outro sentisse que sua identidade cultural fosse ofendida.

Como Embaixador em Baku, Azerbaijão (entre 2009 e 2012), registrei, em diferentes ocasiões, que após reuniões tensas e agressivas, entre representantes oficiais armênios e azeris sobre disputas territoriais herdadas da ex-URSS, havia aparente confraternização entre os delegados dos dois países. Isso porque, tratando-se de povos originalmente voltados para atividades pastoris (criação de ovelhas), houvera interação frequente entre os habitantes das regiões em conflito, em virtude de deslocamentos de seus rebanhos ao território vizinho. As disputas armadas por território, na verdade, eram impostas pelos dirigentes de seus respectivos países.

Daí as pessoas se conhecerem, possuírem laços familiares e terem cultivado parcerias. A criação das Repúblicas Soviéticas, conforme se procurou demonstrar, os separou, com o fortalecimento de elites, que herdaram privilégios, concedidos pelo período de dominação da URSS.

De qualquer forma, proponho um ganbei (saúde, em chinês) aos que se expressam nesse idioma no Sudeste Asiático e uma nasdrovia, (em russo) como forma de brindar e preservar sua convivência ou encerrar conflito com a potência maior de suas respectivas regiões. Conversar é preciso.