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domingo, 3 de dezembro de 2023

Expulsão de palestinos não foi planejada por Israel - Leonardo Avritzer (FSP)

 Réplica: Expulsão de palestinos não foi planejada por Israel

Artigo de professora da USP apresenta narrativa unilateral, ignora evidências e apaga papel de britânicos e países árabes

FSP, 2.dez.2023 às 23h00

Leonardo Avritzer

Professor titular do Departamento de Ciência Política da UFMG


[RESUMO] Em resposta a artigo que sustenta que a expulsão de palestinos de suas terras em 1948 foi um objetivo deliberado do então recém-criado Estado de Israel, pesquisador escreve que a autora, Arlene Clemesha, seleciona unilateralmente episódios do período, ignora o papel da rejeição do plano de partilha da ONU por árabes e busca atribuir ao establishment sionista todos os eventos relacionados à Nakba, constituindo uma má historiografia que não dá conta da complexidade do êxodo palestino.

O artigo "Historiadores veem expulsão de palestinos em 1948", de Arlene Clemesha, professora de história árabe da USP, publicado na Ilustríssima no último domingo, tem a Nakba, ou a "catástrofe", como temática. A autora defende uma visão bastante nítida, mas equivocada dos acontecimentos que fizeram com que 750 mil palestinos se tornassem refugiados ao final da guerra de 1948.

Segundo Clemesha, existe uma Nakba contínua e "o processo de expulsão, que teve seu auge naquele 1948, continua até hoje". O argumento é que se estabeleceram consensos a respeito do problema dos refugiados palestinos: o primeiro deles é que a velha historiografia israelense não retratou o episódio adequadamente ao argumentar que a guerra de 1948 foi uma guerra de defesa e que os palestinos teriam fugido a mando de seus líderes.

Concordo integralmente com a autora. Daí a centralidade da obra do historiador israelense Benny Morris na revisão da historiografia israelense clássica.

O segundo consenso, muito mais frágil e polêmico, é que Morris não teria ido suficientemente longe em sua crítica à historiografia israelense tradicional, "uma vez que reconhecia a expulsão, mas negava a motivação". A partir daí, Clemesha cita equivocadamente ou, no mínimo, unilateralmente os episódios que levaram ao problema dos refugiados palestinos.

Para a historiadora, o objetivo israelense em 1948 foi, desde o início, a expulsão dos palestinos da região que veio a se tornar o Estado de Israel. 

Clemesha menciona apenas secundariamente a rejeição da partilha por árabes e palestinos, mas, ao que parece, não estabelece qualquer relação entre a não aceitação da partilha do território do mandato britânico na Palestina, aprovada pela Assembleia Geral da ONU em novembro de 1947, e os acontecimentos de 1948.

Neste artigo, apresentarei três críticas ao texto publicado nesta Folha. Em primeiro lugar, não há como discutir Nakba e 1948 sem abordar a rejeição de palestinos e países árabes da resolução de partilha.

Em segundo lugar, a discussão realizada pela autora sobre o êxodo palestino de Haifa vai completamente contra a historiografia estabelecida. Esse é um dos casos em que há provas contundentes, a partir de fontes independentes, de que houve tentativas tanto dos israelenses quanto dos britânicos de convencer a população palestina a não deixar a cidade.

Não se trata de um assunto menor, uma vez que aproximadamente 75 mil palestinos deixaram Haifa em 1948, pelo menos 10% do número total de refugiados.

Por fim, a tentativa de atribuir ao establishment sionista — especialmente a Haganá, a entidade que se tornaria a IDF (Forças de Defesa de Israel) depois de maio de 1948 — todos os episódios relacionados ao êxodo palestino parece constituir uma má historiografia, cujo objetivo aparenta ser o de colocar todos os israelenses em um mesmo plano, sem diferenciar as nuances políticas que foram e continuam sendo fundamentais para entender o conflito com os palestinos.

Neste artigo, utilizarei em parte a mesma bibliografia de Clemesha, atribuindo peso diferente às obras dos autores elencados acima.

Comecemos pelos acontecimentos de 1948, gestados em novembro de 1947. 

A resolução 181 da Assembleia Geral da ONU, de 29 de novembro de 1947, encontrou a oposição dos países árabes ao longo de todo o processo de discussão da partilha. O comitê designado pela ONU que trabalhou entre maio e agosto de 1947 recomendou, por maioria, a divisão do território da Palestina.

No dia 30 de novembro, às 8h, ou seja, poucas horas depois da votação da ONU, dois ataques foram realizados contra ônibus israelenses na planície costeira (Morris, 1948, p. 76). Poucos dias depois, a Liga Árabe, então constituída por Arábia Saudita, Egito, Iêmen, Iraque, Líbano, Síria e Transjordânia, rejeitou a partilha (Ben-Dror, 2007).

Nesse ponto, o trecho do artigo da autora que resgata um acontecimento controverso em Haifa em 30 de dezembro daquele ano está equivocado em identificá-lo como o primeiro ato de violência depois da partilha. 

Está errada também a própria descrição do evento, na qual a autora ignora um massacre de trabalhadores judeus no episódio da refinaria de Haifa, como ficou conhecido. Não houve êxodo palestino após o episódio relatado pela autora.

Assim, a rejeição da partilha pela Liga Árabe e pelos líderes palestinos jogou a questão das fronteiras políticas dos dois Estados para o campo militar, decisão pela qual o líder palestino Mahmoud Abbas expressou arrependimento mais de 60 anos depois.

A guerra de 1948 teve duas fases: a primeira, de novembro de 1947 até a retirada dos britânicos da região, em 14 de maio de 1948; a segunda, posterior a essa data, contou com o envolvimento dos exércitos egípcio, jordaniano, sírio e libanês.

Na primeira fase, conhecida como uma guerra civil, o padrão fundamental foi o mesmo: tanto os judeus-israelenses quanto os palestinos tentaram homogeneizar etnicamente as áreas que lhes haviam sido concedidas pela partilha das Nações Unidas. Até mesmo os britânicos atuaram na mesma direção, cedendo fortes e postos militares para cada um dos dois grupos, conforme as indicações da partilha (Morris, 2008, p. 76-80).

Porém, à medida que 14 de maio de 1948, data marcada para a retirada dos britânicos da região, se aproximava, começaram a surgir movimentos de ambas as partes, sobretudo nas cidades mais populosas e com populações mistas. Entre essas cidades, se destaca Haifa, sede da central sindical israelense, a Histadrut, e na qual emergiram alianças entre árabes. Em diversas oportunidades, foram criadas na cidade associações entre árabes e judeus, até mesmo durante o atual conflito em Gaza.

Diferentemente do que alega Clemesha, os eventos que marcaram o primeiro êxodo palestino em uma grande cidade durante a guerra de 1948 ocorreram em 21 e 22 de abril daquele ano, portanto, ao final da primeira fase da guerra civil. Os choques militares entre israelenses e palestinos em Haifa aconteceram a partir de uma reorganização da posição das tropas britânicas na cidade naqueles dias.

De acordo com Morris, o então comandante britânico em Haifa, Hugh Stockwell, chamou israelenses e palestinos às 10h do dia 21 em seu escritório e pediu que ambos os lados evitassem conflitos (1987, p. 75). As hostilidades começaram quando a Haganá tomou alguns alvos militares na região central da cidade.

Stockwell convocou uma reunião na prefeitura de Haifa às 16h de 22 de abril de 1948. Essa reunião, decisiva para o começo do êxodo palestino, tem diversas versões: segundo Morris, Stockwell pediu moderação, o que foi aceito pela delegação da Haganá presente, e propôs um armistício.

No entanto, depois da derrota militar sofrida pelos palestinos no dia anterior, a delegação palestina afirmou "que eles não estavam em posição de assinar um armistício; que eles não tinham controle sobre as forças militares árabes... Então eles apresentaram a alternativa da população árabe deixar a cidade" (Stockwell, citado em Morris, 1987, p. 82).

De acordo com relatos dos observadores britânicos, houve a tentativa por parte dos judeus de pedir aos palestinos que não se retirassem: "Os judeus estão fazendo um grande esforço para prevenir uma evacuação em massa, mas os seus esforços estão tendo pouco efeito" (Stockwell, citado em Morris, 1987, p. 82).

Walid Khalidi, em um artigo que permaneceu obscuro por muito tempo, oferece uma interpretação muito menos favorável, mas que não conseguiu se firmar na literatura especializada sobre o assunto. Para o historiador, Haifa seria a primeira etapa de implementação do chamado Plano Dalet ou Plano D, tido como um plano da Haganá para a retirada dos palestinos da área costeira — a única evidência apresentada por Khalidi (2008).

Diversos problemas parecem permear a visão do historiador, que tem constituído objeto de discussão ao longo das últimas décadas. 

Em primeiro lugar, a negação da neutralidade dos britânicos na guerra de 1948: as evidências apontam que eles, de fato, obedeceram à orientação do gabinete do então primeiro-ministro britânico, Clement Attlee, de reforçar a divisão territorial.

Ainda que os britânicos não fossem neutros, como argumenta Khalidi, isso não significa que o relato de Stockwell para Londres (o chamado Relatório Stockwell, escrito em 24 de abril de 1948) não fosse fiel aos acontecimentos, uma vez que ele não tinha qualquer motivo para não relatar os dados corretamente.

Assim, temos um primeiro caso de êxodo palestino absolutamente nuançado em relação aos argumentos daqueles que supõem que houve um plano preconcebido de expulsão da população palestina. Além de Haifa, os resultados foram controversos em outras cidades: em Tiberíades, não houve expulsão de palestinos; em Acre, os palestinos permaneceram na cidade; em Safed, depois de um ataque do Palmach, a então força de elite da Haganá, os palestinos saíram da cidade. Houve expulsão em Lod.

Desse modo, temos uma série de situações ligadas às decisões de um conjunto variado de atores: a não aceitação da partilha, algumas derrotas militares dos palestinos e as relações entre árabes e judeus, ou entre palestinos e israelenses, em cada um dos momentos da guerra civil que se estendeu de novembro de 1947 a maio de 1948.

O ponto importante, que procuro deixar nítido aqui, é que houve, sim, um êxodo da população palestina de algumas cidades, mas esse êxodo, que gerou o problema dos refugiados palestinos, não foi planejado e não foi resultado de uma concepção política da liderança sionista. 

Pelo contrário, é decorrente da militarização provocada pela rejeição da partilha e pelas ações de três atores diferentes: os israelenses, os palestinos e os demais países árabes.

No que diz respeito ao papel dos demais países árabes, em especial a atual Jordânia, que tinha o melhor exército, treinado pelos britânicos durante a Segunda Guerra Mundial, Clemesha parece ter uma posição contraditória. 

Em seu artigo, ela afirma: "A monarquia hachemita tinha o maior exército árabe da época e, na avaliação de Walid Khalidi, não fosse por ela e pela participação do Egito, os palestinos teriam perdido todas as suas terras em 1948".

Algumas correções são necessárias. A Transjordânia ocupou as terras destinadas ao Estado palestino pela resolução de partilha da ONU, e, em dezembro de 1948, na Conferência de Jericó, foi votada a anexação do território palestino ao Reino Hachemita da Transjordânia. A partir de então, todos os prefeitos das cidades palestinas foram nomeados pelo rei Abdullah, e Jerusalém foi designada capital alternativa do reino hachemita.

A Jordânia reconheceu o direito do povo palestino ao território da Cisjordânia em 31 de julho de 1988, apenas cinco anos antes de Israel fazê-lo através das cartas de reconhecimento mútuo que precederam os Tratados de Oslo. Assim, não é possível eximir a Jordânia, como tampouco é possível eximir o Egito, de responsabilidade na gestação do problema palestino tal como ele se expressa nos tempos atuais.

Os palestinos se tornaram refugiados em regiões originalmente reservadas para um Estado palestino pela ONU, em parte devido a projetos alternativos de ocupação e gestão de Jerusalém, especialmente pela Jordânia, em parte pelo resultado de um conflito armado no qual alguns grupos defenderam sua expulsão.

Surpreendentemente, a autora deixa de mencionar que o êxodo palestino levou a fortes protestos dos partidos de esquerda em Israel, especialmente pelo Mapam, que tinha vínculos com a ex-União Soviética, cujos apoio e influência em Israel em 1948 têm sido intensamente subestimados pela literatura (sobre o partido, consultar "Freud no Kibutz", de Guido Liebermann).

O Mapam protestou contra a expulsão de palestinos de Lod e chamou uma reunião ministerial sobre o assunto (Segev, 2019). Em algumas oportunidades, até mesmo o então primeiro-ministro de Israel, David Ben-Gurion, afirmou que suas ordens foram desrespeitadas na expulsão de palestinos de Lod (Segev, 2019, p. 450), ainda que ele tenha tido posições ambíguas em relação ao problema ao longo do ano de 1948.

Portanto, quando falamos do êxodo e do problema dos refugiados palestinos em 1948, estamos diante de um fenômeno muito mais complexo do que sugere o artigo de Arlene Clemesha. 

Termino esta crítica parafraseando o final do seu artigo, quando a autora afirma que "somente o reconhecimento dos sofrimentos mútuos [...] poderá gerar a reparação e os elos necessários para uma vida em comum". Para isso, é necessário que as narrativas não sejam unilaterais.

OBRAS PARA APROFUNDAR O DEBATE

"The Birth of the Palestinian Refugee Problem, 1947-1949" (1988; Cambridge University Press), de Benny Morris

"1948: a History of the First Arab-Israeli War" (Yale University Press, 2009), de Benny Morris

"Why Did the Palestinians Leave, Revisited" (Journal of Palestine Studies, 2005), de Walid Khalid

"The Fall of Haifa Revisited" (Journal of Palestine Studies, 2008), de Walid Khalidi

"The Arab Struggle Against Partition: The International Arena of Summer 1947" (Middle Eastern Studies, 2007), de Elad Ben-Dror

"A State at Any Cost: the Life of David Ben Gurion" (Farrar, Straus and Giroux, 2019), de Tom Negev

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2023/12/replica-expulsao-de-palestinos-em-1948-nao-foi-planejada-por-israel.shtml

Arnaldo Godoy examina a obra de Alberto da Costa e Silva sobre a Africa e a escravidão brasileira

 

EMBARGOS CULTURAIS

A manilha e o libambo, de Alberto da Costa e Silva

Conjur, 3 de dezembro de 2023, 10h28

Editorias:  Sem categoria

Os títulos que os autores dão a seus livros compõem um universo fascinante para pesquisas interessantes. Há aspectos formais. Há dilemas psicanalíticos. Há razões mercadológicas. Há jogos de palavras. Há pistas (inclusive falsas), e há também uma chave interpretativa para o que espera o leitor.

Spacca
Caricatura: Prof. Arnaldo Godoy

“O nome da Rosa”, de Umberto Eco, por exemplo, não é referência a personagem com esse nome, que não se encontra no livro, obviamente. Eco contava com um outro título, “A abadia do crime”; a opção, no entanto, “O nome da Rosa”, remete o leitor a um dos problemas centrais do romance: o tema do nominalismo.

O próprio Eco lembrava-se de Dumas (que contou a história de D’Artagnan, que não era um dos “Três Mosqueteiros), além de outros títulos labirínticos (“O vermelho e o negro”, “Guerra e Paz”). Eu acrescentaria “Esaú e Jacó” (argumento bíblico que Machado de Assis transpôs para Pedro e Paulo, com a paisagem do Rio de Janeiro na passagem do Império para a República como pano de fundo) ou, ainda mais objetivamente, “Dois Irmãos”, de Milton Hatoum, no contexto da perturbadora tensão entre Uaqub e Omar.

Uma lista de títulos intrigantes contaria também com “A manilha e o libambo”, de Alberto da Costa e Silva. Diplomata, poeta, africanólogo, memorialista, historiador, faleceu neste último 26 de novembro, aos 92 anos de idade. Uma rápida olhada sobre um de seus livros principais, cujo título também é prova inconteste de sua inventividade, é o tema dos embargos culturais dessa semana, que seguem em forma de homenagem a esse grande intelectual.

“A manilha e o libambo” é um portentoso estudo sobre a escravidão e o comércio de escravos, sob uma inusitada perspectiva de historiador brasileiro que conhece profundamente a história africana, inclusive sob uma miragem local. Uma abordagem raramente enfrentada com sucesso na tradição historiográfica brasileira.

Sobre o título. O autor (no prefácio) faz uma referência a um conto de Machado de Assis, “Pai contra Mãe”, cujo tema é a violência da escravidão. Machado de Assis registrava que a escravidão levara consigo ofícios, aparelhos e instituições sociais. Exemplificava com a máscara da folha de Flandres, símbolo dessa ignominia. O assunto — escravidão — é um dos temas do mencionado contopublicado em “Relíquias da Casa Velha”, na edição de 1906. Raimundo Faoro também comenta esse conto na parte 7 do capítulo III de “Machado de Assis, a pirâmide e o trapézio”.

O problema da escravidão é um dos mais intricados na obra de Machado de Assis, além, evidentemente, de ser o mais vergonhoso de nossa história. Pode-se atribuir à ironia machadiana uma crítica à mais sórdida fórmula de exploração que o Brasil conheceu, que muito nos envergonha, e que nos choca, sempre e sempre; e que deixou reflexos que até hoje são assustadores. Condições desumanas de trabalho e exploração superlativa da força humana são desdobramentos modernizados dessa condição odiosa.

A manilha, explica-nos Alberto da Costa e Silva, é um instrumento de metal, quase uma pulseira, em forma de C. O libambo evoca uma sequência de ferros que prendia escravos, comum nas caravanas de cativos. Manilha e libambo reportam-se, assim, à escravidão africana, que o autor identificou como forma de “iniquidade, violência, humilhação (e) sadismo”. Ainda que “toda história tenha um lado de sombra e um lado de sol”, o autor, após indicar várias contribuições africanas, registra que o livro enfatiza a escravidão e o comércio de escravos na África subsaariana, de 1500 e 1700.

São quase 1.000 páginas. Um texto elegante, culto, manifestadamente preparado, estudado, esquadrinhado. Uma leitura que exige tempo, dedicação e interesse pelo assunto. O último capítulo “Escravo igual a negro” retoma que também houve escravidão de eslavos (e o nome da instituição vem daí), gregos, turcos, árabes, armênios, berberes, búlgaros, circassianos. O autor lembrou que Américo Vespúcio tinha em sua casa cinco escravos: “dois negros, um guancho e dois mestiços de canários”. O guancho, encontrei no Aurélio, era um habitante do Tenerife. Alberto da Costa e Silva refere-se também ao fato de que “(…) não era invulgar encontrar-se em cativeiro árabes, berberes e turcos (…) ainda que em número bem menor, indianos, malaios, chineses e ameríndios”.

Nessa parte final do livro retoma o papel dos jesuítas no Brasil, quanto ao problema da escravidão, sob a luz da intrincada questão da oitiva de confissão, por parte dos inacianos, em relação a proprietários de escravos. A questão é intricada justamente porque à escravidão de indígenas (que os jesuítas abominavam) opunha-se a escravidão de africanos, o que teria provocado, segundo o autor, reprimendas do Papa II, que teria se insurgido contra a dominação de africanos convertidos ao catolicismo.

Alberto da Costa e Silva, também na parte final, refere-se ao escravo como tema e argumento literário. Evoca Bernardo de Guimarães (Isaura) e Coelho Neto (Lúcia, de “Rei Negro”), a par do próprio Machado de Assis, que é o ponto de partida do livro. É só um estudo aprofundado dos porquês dessa opção (tema de crítica genética) que poderia esclarecer se não há na referência uma leitura radical sobre um problema que a historiografia literária ainda não resolveu. Remeto o leitor ao primeiro capítulo de “Machado de Assis Historiador”, de Sidney Chalhoub, e o problema pode ser melhor compreendido.

Em “A manilha e o libambo” o leitor insere-se em uma viagem histórica pela Costa do Ouro, pelo reino do Congo, pela região dos Grandes Lagos, por Madagáscar, por Angola, pelo Chade, sobe e desce o Nilo, percebe a Etiópia, o Mali, o Benim. Um desfile de nomes diferentes e de regiões distantes e de personagens inesperadas. O autor trata desses assuntos com competência historiográfica, desarmado de qualquer apelo ao exótico, e no contexto de uma perspectiva humana e esforçadamente compreensiva.

Ao mesmo tempo, o leitor interessado em Alberto da Costa e Silva deve correr para ler “Invenção do Desenho”, o segundo livro de memórias desse exuberante autor (o primeiro foi “O espelho do príncipe”). Conhecerá (ou revisitará) provavelmente um de nossos maiores intelectuais; um pensador de cultura enciclopédica (para usar um chavão) com a alma aberta para o inusitado, o que me parece uma imagem cheia de metafísica e, paradoxalmente, carregada de realismo, condições e circunstâncias que marcam escritores que, ao mesmo tempo, enxergam a pureza putativa do céu e consideram a realidade angustiante da terra.

Alberto da Costa e Silva ocupava a cadeira número 9 da Academia Brasileira de Letras.

O Capitólio como ringue de luta livre - Le Figaro

 Donald Trump prépare un programme musclé en vue de sa réélection

Le Figaro, 2/12/2023

Le Projet 2025, élaboré avec des cercles de réflexion conservateurs, orchestre la « revanche » de l’ex-président.
À LA MI-NOVEMBRE, au beau milieu
d’une séance en commission
du vénérable Sénat américain,
Markwayne Mullin, sénateur de
l’Oklahoma et trumpiste convaincu,
a failli en venir aux mains avec
Sean O’Brien, le patron d’un syndicat,
venu témoigner sur des
questions économiques. Depuis
des mois, les deux hommes se bagarraient
sur les réseaux sociaux.
Après avoir lu à haute voix les
tweets injurieux du syndicaliste
qui le mettait au défi de se battre, le
sénateur Mullin, un ancien lutteur,
lui a lancé : « C’est ici et maintenant
! » « OK, parfait », a rétorqué
O’Brien, ajoutant qu’il « adorerait
» régler sur le champ leur différend.
« Eh bien, debout ! Remue
tes fesses », lui a lancé le sénateur
en se levant. Bernie Sanders, le
président de la commission, a essayé
en vain de rétablir l’ordre,
avant de hurler : « Vous êtes sénateur
des États-Unis, comportezvous
en tant que tel ! » Le même
jour, Kevin McCarthy, l’ex-speaker
républicain de la Chambre, a
été accusé d’avoir donné, dans un
couloir du Congrès, un coup de
coude bien senti dans le dos de son
collègue Tim Burchett qui avait
voté son limogeage en octobre.
Kevin McCarthy a nié l’avoir fait
exprès.
Il y a toujours eu des altercations
au Congrès. La plus mémorable
s’est produite en 1856, lorsqu’un
anti-abolitionniste a frappé sauvagement
à coups de canne un sénateur
opposé à l’esclavage. Ces
derniers temps, cependant, les républicains
font assaut de virilité.
C’est à celui qui se montrera le plus
bravache, le plus belliqueux, le
plus macho. « Cette hypermasculinité
n’est pas nouvelle, mais elle est
aujourd’hui plus fréquente, plus
forte et plus débridée que dans le
passé », affirme l’historienne
Kristin Kobes Du Mez. Dans son livre
Jesus and John Wayne (1), elle
fait remonter la glorification du
cow-boy rugueux et sans état
d’âme à l’idéologie évangélique
conservatrice.
Les femmes aussi
Ces dernières années, Donald
Trump a popularisé la testostérone
en politique et normalisé l’usage
des menaces, des déclarations incendiaires,
des attaques humiliantes
contre ses ennemis… Il a qualifié
récemment l’un de ses
adversaires de « fils de p… », un
autre de « gros porc ». Il porte une
admiration sans borne aux dirigeants
à poigne, de Vladimir Poutine
à Kim Jong-un. En juillet, ce
grand amateur de boxe s’est fait
photographier avec des combattants
d’arts martiaux mixtes
(MMA) lors d’un match à Las Vegas.
Tout un symbole !
Cela ne dérange pas sa base, loin
de là. Selon un sondage récent, un
tiers des conservateurs n’exclut
pas le recours à la violence en politique
et estime que « de vrais patriotes
» pourraient s’en servir s’il
s’agit de « sauver » le pays. « Donald
Trump a fait émerger quelque
chose », jusque-là « maintenu derrière
les normes et la civilité », estime
le sénateur républicain Mitt
Romney.
Conscients du succès politique
de la formule, nombre de conservateurs
la copient sans vergogne.
Sur le réseau X, la représentante
Marjorie Taylor Greene a traité un
collègue de « lopette ». Nikki Haley,
ex-ambassadrice à l’ONU et
candidate aux primaires, a qualifié
à la télévision l’un de ses rivaux de
« raclure ». Ron DeSantis, le gouverneur
de Floride, a défié Donald
Trump « d’avoir assez de couilles »
pour participer à un débat télévisé.
Sa porte-parole a ensuite tweeté
élégamment une photo de balles de
golf en suggérant à l’ancien président
de s’en acheter « une paire ».
Tous les prétendants aux primaires
se présentent aussi comme
des John Wayne modernes, partisans
d’un retour à la loi du Far
West. Donald Trump veut revenir
au peloton d’exécution, tirer sur
les individus qui dévalisent en
bande les magasins, et il « regrette
» de ne pas avoir fait exécuter
son ex-chef d’état-major des armées…
Ron DeSantis, diplômé de
la fac de droit de Harvard, parle de
« zigouiller net » les trafiquants de
drogue à la frontière mexicaine,
sans autre forme de procès. Il a
promis également de « couper la
gorge » des fonctionnaires fédéraux,
avant de préciser qu’il
s’agissait « d’une figure de style ».
Quant à l’homme d’affaires Vivek
Ramaswamy, il rêve de mettre
« sur des piques les têtes des
100 leaders du Hamas ». Et bien
sûr, tous se disent prêts à envahir
militairement le Mexique pour
écraser les cartels de la drogue.
Tant pis si la plupart de ces promesses
sont clairement en infraction
avec la loi… « Historiquement,
la masculinité agressive va de pair
avec l’autoritarisme. Et l’on voit en
ce moment des attaques sans précédent
contre la démocratie américaine
», note Kristin Kobes Du Mez.
Se démarquer
des démocrates
Les candidats républicains ne se
contentent pas de propos musclés.
Ils vantent aussi leur forme physique.
Robert Kennedy, qui se présente
sous la bannière d’un indépendant,
s’est filmé torse nu en
train de faire des pompes. Vivek
Ramaswamy a exhibé ses abdominaux
à deux reprises dans des vidéos,
sur un court tennis et au volant
d’un Jet-Ski, pour illustrer sa
« préparation » au débat télévisé.
Nikki Haley, elle, se prend pour une
James Bond Girl: «Quand vous donnez
des coups, ça fait plus mal si vous
portez des talons », assure-t-elle.
Jouer les machos musclés a le
mérite d’attirer l’attention, particulièrement
des jeunes conservateurs
sur les réseaux sociaux. C’est
également une façon de se démarquer
des démocrates défenseurs
des transgenres et des gays. À
quand un Donald Trump torse nu
et en short sur un ring de boxe ? ■
H. V. (À WASHINGTON)
(1) «Jesus and John Wayne. How
White Evangelicals Corrupted a Faith
and Fractured a Nation », Liveright
Publishing.
Rouler des mécaniques est à la mode chez les républicains
HÉLÈNE VISSIÈRE £@hvissiere
WASHINGTON
ÉTATS-UNIS Il y a un point positif
dans la campagne de Donald
Trump : il ne cache pas ses intentions
et parle ouvertement des
mesures qu’il prendra, une fois
réélu. Le côté plus négatif, c’est
qu’il propose un programme bien
plus radical que celui de son premier
mandat. Sa réélection « serait
la fin de notre pays tel qu’on le
connaît », prophétise Hillary
Clinton. Joe Manchin, sénateur
démocrate de la très conservatrice
Virginie-Occidentale va plus loin :
« Il va détruire la démocratie en
Amérique. »
L’ex-président a manifestement
adopté les thèmes et la rhétorique
des autocrates pour lesquels
il a un faible. Dans un
rassemblement électoral, il a vanté
les mérites de Viktor Orban, le
dirigeant de Hongrie, et se présente
comme un leader à poigne :
« On va éradiquer la racaille communiste,
marxiste, fasciste et gauchiste
qui vit comme de la vermine
» dans le pays, a-t-il clamé. Un
terme utilisé avant lui par la propagande
nazie.
Les États-Unis sont loin de ressembler
à l’Allemagne des années
1930. Mais un second mandat serait
« désastreux », estime George
Edwards, professeur de sciences
politiques à l’université Texas
A&M. « En 2016, Donald Trump
avait autour de lui des adultes qui le
canalisaient un peu. Cette fois, il va
s’entourer de loyalistes et il n’y
aura personne pour lui résister. »
Et comme il maîtrise désormais les
rouages de la Maison-Blanche, il
lui sera plus facile de contourner
les obstacles.
En 2016, il n’avait pas préparé
son arrivée au pouvoir et avait recruté
une équipe disparate sans
expérience. Ses premiers mois
avaient été chaotiques et nombre
de ses réformes furent bloquées
par des recours en justice. Cette
fois, l’ex-président et ses alliés
n’entendent pas faire les mêmes
erreurs. En coulisses, The Heritage
Foundation, un cercle de réflexion
très à droite, a concocté,
en collaboration avec des dizaines
de groupes conservateurs, un
grand plan d’action baptisé
« Projet 2025 », qui ne laisse rien
au hasard. Cette vaste opération
élabore des réformes, planche sur
la mise en oeuvre de décrets que le
nouvel élu pourra signer dès son
arrivée, examine les contre-attaques
légales possibles…
La priorité de Donald Trump, à
l’entendre, c’est de « se venger ».
Il prévoit de forcer le ministère de
la Justice à mettre en examen ses
ennemis politiques, dont William
Barr, son ancien Attorney General
(ministre de la Justice), et le général
Mark Milley, ex-chef d’étatmajor
des armées. Il nommera
« un procureur spécial » pour
poursuivre Joe Biden et sa famille
et s’attaquera à « tous les procureurs
marxistes » (comprendre,
nommés par les démocrates).
Sa vengeance passe également
par une purge massive de l’Administration
fédérale qui, selon lui, a
freiné ses réformes. Il entend remettre
en vigueur un décret, signé
juste avant son départ, qui élimine
les protections sur l’emploi des
fonctionnaires. Il pourra ainsi limoger
jusqu’à 50 000 employés,
pense-t-il, et les remplacer par des
vrais trumpistes. Une des missions
du Projet 2025 est de constituer
“Lors de son premier
mandat, les garde-fous
ont fonctionné, mais
ils ont été affaiblis

GEORGE EDWARDS, ”
PROFESSEUR DE SCIENCES POLITIQUES
À L’UNIVERSITÉ TEXAS A & M
Quand vous
donnez des
coups, ça fait
plus mal
si vous portez
des talons» NIKKY HALEY,
DIPLOMATE,
CANDIDATE
À L’INVESTITURE
RÉPUBLICAINE
POUR L’ÉLECTION
PRÉSIDENTIELLE
DE 2024

A trajetória do Brasil para o gasto infinito - Paulo Roberto de Almeida

A trajetória do Brasil para o gasto infinito

  

Paulo Roberto de Almeida, diplomata, professor.

Nota sobre as políticas econômicas do Brasil na pós-democratização e o aumento de gastos. 

 

Desde a redemocratização, a qualidade da política econômica da nação tem sido tão errática quanto o foi sob a ditadura e, anteriormente, sob a República oligárquica. 

O projeto militar do Brasil Grande Potência levou o Brasil a dez anos de estabilização com crescimento, seguidos de dez outros anos de gastança desenfreada, inflação e dívida externa. 

Os militares abriram as portas para um longo declínio, com estatismo exacerbado e o mesmo protecionismo renitente desde os tempos do mercantilismo colonial.

O inflacionismo de Sarney foi o resultado do aventureirismo econômico e da pesada herança deixada pelo regime militar.

Collor foi um turbilhão econômico com amadores no comando da economia, a despeito da vontade de modernizar um país acostumado ao voluntarismo.

O aumento de gastos reais sob FHC foi obra de uma Constituição generosa demais, mas pelo menos legou um plano de estabilização que ainda se sustenta precariamente, a despeito das bobagens estatizantes que vieram em seguida.

Os déficits de Temer foram consequência do desastre econômico mais do que previsível sob Dilma: ela conseguiu produzir uma mega recessão, que superou a crise de 1929-1931. Ainda assim, Temer começou um ajuste fiscal mais do que necessário, infelizmente descontinuado.

Os orçamentos fictícios do Bozo foram o efeito do seu puro desespero eleitoral e uma enorme irresponsabilidade política de um psicopata desvairado, apoiado pelos milicos vingativos da ditadura, drogados em sinecuras corporativas. 

Já a gastança instintiva do lulopetismo é a tradicional deformação populista de esquerdistas que detestam os limites impostos pela dura realidade dos mercados: acham que a vontade política deve predominar sobre a cupidez de um “capitalismo” imaginário.

Resumindo: todos os governos acabaram tungando os cidadãos, em especial os pequenos e médios empresários e os trabalhadores em geral. 

E todos eles tiveram um comportamento predatório no tocante à opção sensata de uma sólida política macroeconômica voltada para o crescimento, desde que respeitada a responsabilidade fiscal. 

O estamento político oligárquico do Centrão sempre ajudou a esquerda e a direita a concentrar ainda mais a renda e a aumentar a desigualdade social.

O Brasil, finalmente, não mudou tanto assim: acabou acomodando-se ao atraso e à mediocridade!

Alguma possibilidade de melhoria?

Sempre existe, mas ainda não se encontra no horizonte previsível das opções políticas: a baixa educação política, a péssima qualidade da educação tout court são dois óbices ao progresso da nação.

Os avanços, modestos, são feitos aos trancos e barrancos, como diria Darcy Ribeiro, mais um desses visionários que acreditam ter a chave de um país sempre surpreendente na repetição do mesmo.

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4522, 3 novembro 2023, 2 p.