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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

sexta-feira, 26 de maio de 2017

Epa! Estou sendo vigiado: por editoras e livrarias... Tudo bem? Ou tudo mal?

Sensação de que somos frágeis em face dos algoritmos implacáveis dos sistemas de busca a serviço de corporações. Como eu postei, abaixo, a resenha, que havia feito em 2006, do livro de Guilherme Fiuza, que deu origem ao filme "Real", e fui buscar, no site da Saraiva, uma imagem da capa do livro para ilustrar a minha postagem, acabo de receber estas "sugestões" da própria Editora, ou Livraria. E até me chamam pelo nome!!
Será que tenho motivos para virar, ou ficar, paranoico?
E a minha privacidade? Não vale nada?
Parece que não...
Paulo Roberto de Almeida

Olá, Paulo

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3.000 Dias no Bunker - Um Plano na Cabeça e um País na Mão




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Real: o livro de Guilherme Fiuza, antes de ser o roteiro de um filme - resenha de Paulo Roberto de Almeida

Ainda não reli, para verificar o que escrevi, mais de dez anos atrás, quando li o eletrizante livro do jornalista Guilherme Fiuza, autor deste livro (que já era um bom roteiro de filme) que serviu de base ao filme recém lançado nos cinemas.
Ainda não vi o filme, mas preciso achar o livro, entre milhares de outros em minha kit-biblioteca, para reler, antes de ver a obra filmada.


O bunker voador: a aventura eletrizante do Plano Real

Paulo Roberto de Almeida
  
Guilherme Fiuza:
3.000 dias no bunker: um plano na cabeça e um país na mão
Rio de Janeiro: Record, 2006, 331 p.; ISBN: 85-01-07342-3

Como o antigo refrigerante Grapette ou o atual achocolatado Nescau, este livro tem sabor de aventura. Uma aventura que se prolonga no tempo e que ainda não acabou. Marcos Sá Corrêa, na orelha, resume a trajetória do Plano Real: “Começa num governo desmiolado e sem rumo, o do presidente Itamar Franco. E não acabou ainda em outro governo desmiolado e sem rumo, o do presidente Lula”. O mesmo jornalista também registra que se trata de um livro de repórter, com nenhuma fórmula e muita intriga: “Tem pouco mercado e muito ringue de luta livre. Nenhuma tabela e rasteira de ponta a ponta”. Da maneira como está construído e redigido, o livro daria um bom filme, se planos de estabilização fornecessem roteiros interessantes para a sétima arte.
De fato, a reportagem de Guilherme Fiuza se aproxima mais de um roman à clefs do que de uma história linear do Plano Real, ao estilo, por exemplo, da Real História do Real, de Maria Clara do Prado. O jovem jornalista carioca do NoMínimo retraça, em estilo cinematográfico, as diferentes etapas da concepção, implementação e defesa da nova moeda, sem fazer, em nenhum momento, história monetária. São incursões propriamente teatrais aos episódios mais relevantes de um processo que transcendeu, na verdade, a simples introdução de um novo meio circulante no Brasil, para expor, de maneira viva, toda a trajetória macroeconômica do Brasil nas últimas décadas. Trata-se de uma inside story, que se insere numa great history, cujo cenário principal é dado pelo próprio substantivo que fornece o título ao livro: um bunker.
O conceito militar de bunker é, obviamente, o de uma posição ou posto defensivo, não necessariamente fortificado, mas isolado ou protegido dos ataques inimigos pela sua estrutura de aço e concreto, geralmente escondido ou subterrâneo. Meu adjetivo “voador” se deve a que a capa do livro é a de uma planície desolada com o perfil de Brasília ao fundo e um avião solitário num imenso céu em tonalidade ocre. O bunker a que se refere Fiuza foi de fato voador, ou móvel, e é aplicado à pequena equipe de valorosos combatentes da estabilidade macroeconômica que tomou forma a partir da assunção de FHC como ministro da Fazenda, em maio de 1993. “Como era uma metáfora”, explica o autor, “o bunker podia ser em qualquer lugar. E durante um bom tempo a equipe de Fernando Henrique trabalhou de forma totalmente subterrânea...” (p. 44).
O grupo se decompôs ao longo do tempo, mas seu legado, inegavelmente positivo, está conosco ainda hoje, sob a forma de uma economia menos esquizofrênica do que aquela que conhecemos ao longo das últimas décadas do século passado. Os economistas Pedro Malan, Gustavo Franco, Winston Fritsch, Edmar Bacha, André Lara Resende e Persio Arida, mais o administrador Clovis Carvalho foram os integrantes mais intimamente ligados ao poder político do novo ministro da Fazenda. Eles conceberam, implementaram e defenderam o novo plano de estabilização contra os ataques de vários exércitos inimigos, geralmente políticos fisiológicos, economistas românticos, sindicalistas corporativistas (mas isso é uma redundância) e industriais protecionistas.
Existem vários outros personagens, evidentemente, que interagiram a diversos títulos e em diferentes momentos com o bunker, dentre os quais poderiam ser citados: Sérgio Besserman Vianna, o “comunista” do BNDES convertido às virtudes de uma economia competitiva; Marcelo de Paiva Abreu, que entrou e saiu do governo Collor logo no primeiro dia, ao descobrir que o seu chefe de gabinete, já designado, era um homem de PC Farias; David Zylbersztajn, outro antigo comunista que aprendeu que o socialismo não funcionava e montou o esquema paulista das privatizações e o modelo federal das agências reguladoras; Murilo “Mãos de Tesoura” Portugal, o homem que fechou o caixa do Tesouro ao apetite voraz de gastadores contumazes; José Serra, que chegou, viu, mas não se convenceu, sobretudo pelo lado cambial; além de vários outros, economistas de passagem ou funcionários da burocracia permanente do Estado.
Ator central nessa trama, além de Pedro Malan – o mais longo ministro econômico da história do Brasil, com exceção de Souza Costa, que serviu à ditadura Vargas –, foi o jovem economista da PUC Gustavo Franco, sucessivamente Secretário Adjunto de Política Econômica, diretor de Assuntos Internacionais e presidente do BC. Estrategista econômico, articulador das principais medidas que estiveram na base do lançamento da URV, operador prático – e defensor corajoso – da nova moeda, Gustavo Franco representou, por assim dizer, a verdadeira alma do Plano Real, o que está refletido em seus muitos livros de ensaios e crônicas, desde O Plano Real e Outros Ensaios (1995), até o mais recente Crônicas da Convergência (2006), passando por O Desafio Brasileiro: ensaios sobre desenvolvimento, globalização e moeda (1999), além de várias outras contribuições a livros coletivos ou artigos em periódicos de grande tiragem.
Ademais de um gosto incomum pela história, para um economista, Gustavo Franco tem um dom também incomum para a polêmica e o debate de idéias, este, infelizmente, muito pouco cultivado no Brasil, reduzindo-se, na maior parte das vezes, a uma troca ácida de acusações entre os contendores. Conhece-se, aliás, no Brasil, a ofensiva invulgar deslanchada pelos economistas ditos desenvolvimentistas contra os fundamentos do plano de estabilização, que foi por eles equiparado a nada menos do que uma operação de rendição ideológica e de submissão prática aos ditames de Washington, aos cânones de neoliberalismo e a não se sabe qual, exatamente, das regras do chamado Consenso de Washington, tão desprezado quanto desconhecido nessas hostes. Fiuza reproduz parte da crítica de uma conhecida professora da USP, marxista, a um artigo de Gustavo Franco sobre as virtudes da abertura comercial para o crescimento econômico: ela parte do “capital mundializado” para condenar o “absoluto domínio do credo liberal”, entre outras bobagens. Franco, em resposta, perguntou apenas por que a professora estava tão zangada: ela “fala da ‘atual etapa do sistema capitalista’ com um verdadeiro nojo, como se estivesse segurando um rato nas mãos” (p. 214). Em outros artigos, ele não deixava de fustigar os “parnasianos” da Unicamp, com sua prosa rebuscada, plena de fetichismos e de financeirização.
Mas, esse é o lado prosaico, digamos assim, do combate diário pela sobrevivência da nova moeda, atacada à direita e à esquerda com igual desenvoltura e inacreditável insensibilidade em relação aos cofres públicos. Havia outros aspectos, preocupantes, da sabotagem, consubstanciada, justamente, na gastança generalizada das estatais e das agências públicas de modo geral. Fiuza relata o caso ocorrido com David Zylbersztajn, levado à direção da Eletropaulo: encontrou um fabuloso contrato com uma empresa de vigilância no qual cada hora de trabalho de um vigilante representava o inacreditável valor de 28 dólares. “O responsável explicou-lhe que, infelizmente, não existiam no mercado seguranças confiáveis por um valor inferior àquele. Zylbersztajn não prolongou a conversa: ‘— Não tem mais barato? Ok, então rescinde todos os contratos. Acabou a segurança. Por esse preço, prefiro o ladrão’” (p. 170).
O essencial da reportagem de Fiuza está voltado aos ataques especulativos ao real, no bojo das crises financeiras internacionais. Esses ataques tinham pouco a ver, no entanto, com alienígenas de Wall Street, como gosta de acreditar a esquerda, e sim com os espertos capitalistas nacionais, sempre prontos a arbitrar as pequenas diferenças de cotação no valor da moeda, como resultado das suas próprias operações concertadas. Gustavo Franco, atento ao jogo pesado desses brokers, comandou pessoalmente, das mesas de câmbio do BC, operações defensivas e ofensivas, dobrando o mercado com lances ousados e algumas táticas inesperadas. O real sobreviveu a esses ataques especulativos “clássicos”, mas não foi capaz de resistir a uma operação mais singela, consistindo na suspensão do pagamento, em janeiro de 1999, da dívida estadual de Minas Gerais, determinada pelo então governador, e ex-presidente, Itamar Franco: no espaço de poucos dias as reservas se tinham volatilizado, resultando na saída de Gustavo Franco da direção do BC e na própria mudança do regime cambial. Vários lances dramáticos desses dias estão perfeitamente reconstituídos no livro de Fiuza, numa espécie de crônica dos eventos correntes em tempo real. 
Ainda segundo a orelha, 3.000 dias no bunker foi escrito em três meses, quase sempre de madrugada, às vezes virando a noite. Acredito: eu também passei uma madrugada inteira lendo este livro, sem o largar um minuto, com a boca seca e os olhos piscando, impossível largar. A história é muito importante: ela fala do nosso país, como ele foi reconstruído em sua dignidade monetária, que há muito tinha deixado de existir. E não se trata de história documental, insossa, em economês ou juridiquês: é uma história real do real, feita por homens em carne e osso, idéias e sentimentos, conquistas e frustrações. Uma história que estava esperando ser contada.
Poucos sabem, por exemplo, que a inspiração para a URV foi retirada por Gustavo Franco da experiência do rentenmark, a moeda indexada com a qual o “mago das finanças” Hjalmar Schacht salvou a Alemanha da hiperinflação nos anos 1920. Fiuza conseguiu traduzir muito bem os sentimentos do enfant terrible do BC na concepção, montagem e defesa da nova moeda brasileira. Sua obra, o real, ainda está de pé. Seus inimigos de outrora devem a ele o atual sucesso eleitoral. Uma simples palavra de agradecimento, por essa obra de estadista, não seria descabida. Este livro dá todas as razões para esse beau geste...

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 10 dezembro 2006

quinta-feira, 25 de maio de 2017

Quinze anos de politica externa: ensaios sobre a diplomacia brasileira, 2002-2017 - um livro de Paulo Roberto de Almeida

Acabo de disponibilizar uma série de artigos, selecionados entre meia centena de outros (e ainda assim seletivamente a partir da lista geral de trabalhos), sobre a política externa e a diplomacia brasileira, como registrado abaixo:


3121. Quinze anos de política externa: ensaios sobre a diplomacia brasileira, 2002-2017; Brasília: Edição do Autor, 2017, 366 p. Volume de ensaios compilados para o curso na Unifor. Disponibilizado na Academia.edu (link: https://www.academia.edu/33186849/QUINZE_ANOS_DE_POLITICA_EXTERNA_ENSAIOS_SOBRE_A_DIPLOMACIA_BRASILEIRA_2002-2017 ).



Minh frase em epígrafe: 

A melhor diplomacia não se sustenta sem uma boa governança doméstica.

Seria a diplomacia brasileira um ponto fora da curva?


Paulo Roberto de Almeida
 

O sumário dessa compilação é o seguinte: 


Índice


Apresentação: Das vantagens de ser um diplomata acidental11

1. As relações internacionais nas eleições presidenciais de 1994 a 2002 (2002)15
2. A política internacional do Partido dos Trabalhadores (2003),   51
3. Uma política externa engajada: a diplomacia do governo Lula (2004),   77
4. Políticas de integração regional no governo Lula (2005)97
5. A diplomacia do governo Lula: balanço e perspectivas (2006)129
6. A diplomacia do governo Lula em seu primeiro mandato, 2003-2006 (2007)145
7. Bases conceituais de uma política externa nacional (2008)161
8. Sucessos e fracassos da diplomacia brasileira: uma visão histórica (2009)183
9. Pensamento e ação da diplomacia de Lula: uma visão crítica (2010)187
10. A questão da liderança regional do Brasil (2011)205
11. Processos decisórios no âmbito da política externa (2012)233
12. As relações Sul-Sul: um novo determinismo geográfico? (2012-2013)251
13. A política externa companheira e a diplomacia partidária (2014)267
14. Contra as parcerias estratégicas: um relatório de minoria (2015)277
15. O renascimento da política externa (2016) ,  295
16. A política externa e a diplomacia brasileira no século XXI (2017)309

Apêndices
17. Relações internacionais do Brasil: perspectiva histórica (2001) ,   325
18. Diplomatas que pensam: qual é a nossa função? (2017)339
19. Relação cronológica seletiva de ensaios diplomáticos, 2002-2017345
20. Livros de Paulo Roberto de Almeida361
21. Nota sobre o autor, 365

Extrato da Apresentação: 

"... muitos dos ensaios aqui coletados não brotaram, originalmente, de trabalhos de pesquisa, ou daquilo que se chama, usualmente, de scholarly work, isto é, o produto derivado de estudos meticulosos, ou objeto de revisão cega por pares, material que está mais propriamente coletado em meus livros publicados. Eles são, eu diria, peças de simples divertimento intelectual, ainda que vários deles contenham aparato referencial (notas de rodapé, bibliografia, citações doutas, etc.) e também sejam o reflexo de muitas leituras sérias e anotadas ao longo de meus anos de estudo e trabalho. Mas, destinados a veículos mais leves, e não a revistas científicas, eles constituem reflexões de um momento, de um problema, de uma conjuntura, de algum evento que valia a pena registrar em um artigo mais curto.
(...)
  Tenho como regra coletar no blog Diplomatizzando (que me serviu de “quilombo de resistência intelectual” nos anos patéticos do lulopetismo), tudo o que encontro de inteligente circulando pelo mundo, o que também compreende vários dos textos aqui reproduzidos. Espero que eles sirvam a um debate igualmente inteligente.

 Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 25 de maio de 2017 "

Dez (ou mais) desafios para a politica externa do Brasil - livro do CEBRI: resenha critica Paulo Roberto de Almeida

Postei esta minha avaliação do livro abaixo na plataforma Academia.edu, mas transcrevo o texto in totum:

3092. “Alguns desafios ao Brasil e à sua política externa: notas de leitura”, Brasília, 11 março 2017, 19 p. Análise crítica dos capítulos conceituais da publicação resumida no trabalho n. 3084:  

Spektor, Matias (editor executivo):  
10 Desafios da Política Externa Brasileira 
 (Rio de Janeiro: Centro Brasileiro de Relações Internacionais; Fundação Konrad Adenauer, 2016, 144p.). 


Distribuído, em caráter informal, aos participantes do debate organizado pelo IPRI, no Itamaraty, em circuito fechado, no dia 15/03/2017. Disponível na plataforma Academia.edu (23/05/2017; link: https://www.academia.edu/s/fc4d6e3a75/alguns-desafios-ao-brasil-e-a-sua-politica-externa-notas-de-leitura). 
Cometi um pequeno erro -- provavelmente sonolento e cansado -- neste trecho:
" Existem vários outros equívocos factuais nos parágrafos que se seguem a este, mas talvez seja mais interessante concentrar-se na afirmação mais ousada, a de um suposto consenso entre tucanos e petistas".
Eu tinha escrito "petistas e lulistas", o que é obviamente uma redundância escandalosa em favor dos companheiros podres.
Paulo Roberto de Almeida  


Alguns desafios ao Brasil e à sua política externa: notas de leitura

Paulo Roberto de Almeida
Diretor do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, IPRI-Funag.


No final de 2016, em iniciativa apoiada pela Fundação Konrad Adenauer, o Centro Brasileiro de Relações Internacionais divulgou, em sua página na internet, o seguinte livro: 10 Desafios da Política Externa Brasileira (Rio de Janeiro: Centro Brasileiro de Relações Internacionais; Fundação Konrad Adenauer, 2016, 144p.; ISBN: 978-85-89534-11-6; disponível: http://midias.cebri.org/arquivo/10desafiosdaPEB.pdf e https://www.academia.edu/31753378/10_Desafios_da_Pol%C3%ADtica_Externa_Brasileira).
O historiador Matias Spektor, um dos coordenadores de grupos de trabalho do CEBRI, atuou como editor executivo da obra, respondendo por um texto introdutório, propondo uma “nova doutrina de política externa brasileira” (p. 17-25), e um final, sobre uma “análise estratégica para as relações internacionais do Brasil” (p. 133-143).
Apenas com a intenção de servir de informação sumária aos participantes de um seminário-debate sugerido por mim, programado para o dia 15 de março de 2017, no Itamaraty, com apresentações dos respectivos autores dos dez ensaios incorporados ao livro do CEBRI, preparei uma simples nota-resumo, bastante objetiva e concisa, de cada um desses capítulos, encaminhada a possíveis debatedores e comentaristas do Itamaraty no seminário, e postada no meu blog Diplomatizzando (em 11/02 e 6/03/2017; no link: http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2017/02/dez-desafios-da-politica-externa.html).
A intenção agora seria a de discutir com maior grau de detalhe alguns dos capítulos dessa obra coletiva, para destacar pontos relevantes para a discussão pública de um trabalho importante. Vou deixar de lado, inicialmente, os capítulos setoriais, e concentrar-me numa leitura tópica dos textos de caráter geral, que são os seguintes: 1) “Carta do Editor Executivo”, por Matias Spektor (p. 11-14); 2) “Por uma nova doutrina de política externa brasileira”, também por Matias Spektor (p. 17-25); 3) “Análise estratégica para as relações internacionais do Brasil”, ainda pelo mesmo autor (p. 133- 143). De forma geral, considero as propostas finais, sobre planejamento estratégico na política externa, válidas na capacidade de diagnóstico da situação atual e de prescrição adequada de medidas para sanar as deficiências existentes, sendo a parte inicial, porém, de proposta de nova doutrina na área, eivada de equívocos de julgamento, já que as duas políticas externas recentes, do PSDB e do PT, foram bem diferentes, uma da outra.

1) “Carta do Editor Executivo”, Matias Spektor
O Editor executivo parece atribuir uma importância exagerada à política externa do Brasil como vetor de crescimento ou até de correção das anomalias atualmente existentes em diversas áreas das políticas públicas, quando, por exemplo, afirma que “uma reavaliação da política externa brasileira que esteja engajada na busca de soluções práticas para os problemas aqui postos é imperiosa porque o Brasil não pode arcar com os custos de mais um ciclo de retrocessos” (p. 11). Ele afirma, em seguida, que “Nossa hipoteca social é tão vasta, os problemas tão arraigados, que a construção de um novo caminho para as relações internacionais do país é urgente, sob pena de uma geração inteira ficar condenada ao atraso”. Ainda confirmando essas premissas, pode-se ler no parágrafo seguinte (p. 11):
Se há uma tese centra a unir os capítulos que seguem é esta: a política externa é um instrumento essencial para a recuperação do crescimento econômico com justiça social, pois o sistema internacional afeta em cheio a capacidade que autoridades nacionais tem [sic] para conduzir políticas efetivas.


Creio que há um problema conceitual grave nessas afirmações: os problemas sociais do Brasil, que são reais e muito graves, não são problemas de política externa, e sim problemas da sociedade brasileira, como um todo, problemas de políticas públicas, basicamente, essencialmente internas, domésticas, restritas a medidas que dependem fundamentalmente do próprio Brasil. A tese central, a de que “a política externa é um instrumento essencial para a recuperação do crescimento econômico com justiça social”, me parece profundamente equivocada, ou desfocada, uma vez que a retomada de um processo de crescimento sustentado, capaz de produzir desenvolvimento com transformações estruturais e aumento do bem-estar, depende em quase tudo de medidas internas, que, em minha opinião (PRA), poderiam ser resumidas nos seguintes pontos:
1) estabilidade macroeconômica;
2) competitividade microeconômica;
3) boa governança;
4) alta qualidade do capital humano;
5) abertura a comércio internacional e a investimentos diretos estrangeiros.

Não é preciso repetir que o sistema internacional tem sido, a despeito de seus muitos problemas de instabilidade política e de protecionismo setorial, muito receptivo a bons projetos de desenvolvimento, como os casos de China, da Índia, Chile e alguns outros têm demonstrado amplamente. Ou seja, esses países operam num ambiente até mais amplo do que o Brasil, e portanto mais exposto a supostos “problemas”, e no entanto têm exibido taxas altamente satisfatórias de crescimento e de inserção global. O Brasil fez um esforço consistente de abertura econômica e de liberalização comercial nos anos 1990, com ou sem o Mercosul, numa década e meio que foi chamada, muito depreciativamente, de “neoliberal”, por petistas e assemelhados – isto é, economistas supostamente desenvolvimentistas, ou heterodoxos –, mas o fato é que a reversão dessas políticas (até antes, mas essencialmente) com e a partir dos governos lulopetistas e suas políticas nacionalistas e introvertidas à outrance, redundaram, com outros equívocos enormes de políticas econômicas (macro e setoriais), na maior crise de toda a nossa história econômica, um desastre total e absoluto, que chamei de “A Grande Destruição”.
Outra afirmação do Editor Executivo levanta o mesmo tipo de problema:
A concepção derivada dos dez capítulos ora apresentados sugere que a atuação do Estado brasileiro no exterior pode ajudar a tirar o Brasil de seu atraso, seja ele mensurado termos de isolamento comercial, contrabando e narcotráfico, corrupção endêmica, saneamento básico, violência urbana e policial. (p. 12)


Ouso dizer, novamente, que tal tipo de afirmação é profundamente equivocada, pois nenhum dos problemas apontados, sequer o que postula o “isolamento comercial” – eu até diria protecionismo deliberado, o que é muito pior – são problemas de política externa, e nada disso tem a ver com o Itamaraty. Todos eles, ou as soluções de cada um e de todos eles, são afetos a outros órgãos do poder público: ministérios da Fazenda, da Justiça, Cidades, Integração Nacional, Procuradoria Geral da República, Polícia Federal e outros porventura encarregados de questões paralelas a essas. O Itamaraty, por uma vez, ou pelo menos desta vez, é totalmente inocente nos “crimes” apontados.
Ouso dizer mais ainda – mesmo que isto seja politicamente incorreto do ponto de vista da diplomacia brasileira, ou dos assuntos que pode ou deve comentar um mero servidor do Estado –, que a maior parte desses problemas são justamente causados pela ação interna ou externa do Estado, e que este, longe de ser um promotor de soluções para cada um daqueles problemas (assim como vários outros mais), tornou-se, desde vários anos, senão há décadas, um criador ativo e resoluto dos problemas que afligem, cruelmente, a população brasileira. O Estado, como já disse alguém, é o problema, não a solução, pelo menos este Estado de que dispomos atualmente no Brasil, formalmente bem estruturado no plano puramente institucional, de tipo ideal-weberiano, mas que vem sendo profundamente deformado pela ação de elites políticas ineptas ou corruptas, assim como pelo nosso lado de “república sindical”, ou seja, o corporativismo levado a excessos, um burocratismo e um prebendalismo de tipo “mandarinesco”, profundamente ofensivos aos olhos (e aos bolsos) da maior parte da população.
Ainda que admitamos que o Estado – mas, preferencialmente, um “outro Estado possível” – possa vir a ser a solução para alguns daqueles problemas – e isso parece ser inevitável no plano puramente regulatório, mas preferencialmente pela via de mercados livres –, mesmo assim esses problemas continuam soberanamente à margem, alheios a qualquer política externa que se conceba para atacá-los. Ou, se a diplomacia tiver algum papel na concepção de soluções, na formulação de políticas atinentes a esses problemas, esse papel só pode ser marginal, mínimo ou simplesmente acessório.
Matias Spektor passa a barra da solução dos problemas brasileiros pela via da política externa e adentra no que parece ser seu objetivo principal:
Não há dúvida [sic] de que, nos próximos anos, será necessário conceber uma doutrina de política externa atualizada, que sirva como guia para a atuação dos governos vindouros. Uma construção doutrinária dessa natureza é sempre um esforço coletivo, paciente e de longo prazo, dadas as dificuldades inerentes à empreitada. Mas gerações passadas souberam conduzir esse processo com talento, vide a efervescência intelectual na área da política externa do Segundo Reinado, na República Velha, no começo da década de 1960 e nos anos FHC e Lula. Agora, cabe a nossa geração imaginar os contornos da doutrina que virá.
Até lá, urge diagnosticar de maneira clara e em linguagem direta os problemas centrais de política externa. É precisamente isso que este exercício de reflexão estratégica pretende fazer: uma análise de dez problemas candentes da posição do Brasil no sistema internacional, seguida de recomendações práticas, de baixo custo e fácil implementação. (12)

Independentemente de minha concordância, de princípio, com a constatação de que o Brasil carece, dramaticamente, de uma concepção geral quanto à sua inserção na região e no mundo, e também a de que os governos recentes, quaisquer que tenham sido eles, não formularam, claramente, a política externa mais adequada a esse objetivo muito simples – a inserção do Brasil na economia global e seu papel na política internacional – vale um registro pessoal quanto aos objetivos apontados acima, ou seja, a concepção e a implementação de uma “doutrina de política externa atualizada, que sirva como guia para a atuação dos governos vindouros”. Não creio que tal tarefa possa ser conduzida por candidatos a “conselheiros do Príncipe”, uma vez que projetos desenhados nesse âmbito sempre revelam mais ambições teóricas, ou práticas, de quem os formula, do que produzem os “tijolos construtores” de uma tal doutrina, a partir de uma visão clara sobre os fundamentos operacionais dos principais elementos de uma doutrina, ou estratégia, de política externa.
Curiosamente, Spektor coloca a existência de uma eventual doutrina de política externa apenas nos períodos indicados, e parece acreditar que os governos do regime militar não tiveram nenhuma doutrina, ou estratégia, de política externa, quando isso manifestamente não corresponde à realidade puramente objetiva dos fatos. Em qualquer hipótese, a pretensão de formular uma proposta de doutrina de política externa em bases acadêmicas, para uso dos burocratas da política externa que são os diplomatas, parece-me corresponder a uma atitude típica desses meios, que geralmente redundam em uma acumulação de conceitos e hipóteses com frágeis conexões com a realidade da agenda diplomática. Tal não é o caso, obviamente, dos estudos setoriais – não todos, apenas alguns – que se ocupam de questões concretas da pauta externa, ou geralmente interna, do Brasil, pois eles tendem a formular “soluções” com base em estudos fortemente apoiados em base empírica adequada.
Com isso não quero dizer que não seja legítima tal demonstração de “arrogância intelectual” da parte de um acadêmico, qual seja, de pretender oferecer uma “doutrina” de política externa para o Brasil. Digo que tal tipo de exercício deveria ser precedido por um avaliação técnica dos problemas reais do Brasil – não os proclamados por sua elite política, ou até diplomática –, alguns dos quais efetivamente tratados nos capítulos setoriais desta obra coletiva, a partir da qual seriam separados os problemas “made in Brazil”, que mereceriam, portanto, um tratamento puramente doméstico de seu equacionamento prático e possível solução, daqueles problemas que derivariam de um suposto “sistema internacional”, um conceito ambíguo, geralmente desprovido de um significado mais preciso. Tais problemas poderiam merecer um encaminhamento de tipo “diplomático” (ainda que a diplomacia seja mera técnica a serviço de objetivos mais gerais de política governamental, externa ou “exterior”), a partir da mobilização do engenho e arte do Itamaraty (com o apoio de outros agentes públicos, ou seja, de órgãos do Estado responsáveis pelos “problemas externos”).
Um desses problemas é justamente o da “resiliência da democracia na região”, objeto de um dos capítulos, assinado por Oliver Stuenkel, que tem a ver com valores e princípios de ordem constitucional, ou até de solidariedade moral com povos hoje submetidos a tiranias ou regimes ditatoriais, o que representa um problema político (a partir de compromissos assumidos multilateralmente ou regionalmente) e mesmo de ordem moral, como já referido. Dito isto, vejamos os referidos capítulos de caráter geral, ambos assinados pelo Editor Executivo desta obra coletiva.

2) “Por uma nova doutrina de política externa brasileira”, Matias Spektor
O texto se abre por uma afirmação pelo menos surpreendente:
O Brasil vive um momento de emergência nacional. Em três anos, acumularam-se a crise política inaugurada com os protestos populares (2013), o início de uma longa recessão econômica (2014), a expansão da operação Lava Jato (2015), a queda de Dilma Rousseff e a implosão eleitoral do PT (2016). Depois do ciclo virtuoso de mais de uma década, a trajetória do Brasil é negativa. O Brasil vive um momento de emergência nacional. Em três anos, acumularam-se a crise política inaugurada com os protestos populares (2013), o início de uma longa recessão econômica (2014), a expansão da operação Lava Jato (2015), a queda de Dilma Rousseff e a implosão eleitoral do PT (2016). Depois do ciclo virtuoso de mais de uma década, a trajetória do Brasil é negativa. (17)

Os protestos de 2013 não foram exatamente “populares”, pelo menos não em seu início, suscitados por uma demanda absolutamente irrealista de “passe livre” e de recusa de um aumento de 20 centavos em tarifas de transportes urbanos, que na verdade escondiam mal uma agenda totalmente política, por parte de “movimentos populares” que eram meras correias de transmissão de partidos de tendência totalitária, mas que acabaram atraindo a atenção de uma classe média já enfadada de tanta corrupção nos meios políticos e por altos impostos pagos ao Estado para serviços abaixo de qualquer critério de qualidade, sobretudo nas áreas de saúde, educação, segurança e transportes, justamente. Mas este é o aspecto menor da questão, pois esses protestos – iniciados, como se disse, por movimentos políticos de esquerda – atraíram a classe média de forma muito difusa, logo retraída novamente aos seus lares pela ação criminosa dos chamados Black blocs, que os conspurcaram, provocando a saída da classe média.
O que, sim, tivemos, a partir de 2014 (logo após as eleições presidenciais), e sobretudo em 2015 e 2016 foi a mobilização da cidadania consciente e ativa, em novos movimentos totalmente inéditos no plano nacional – e é esse aspecto que precisaria ser ressaltado –, não de esquerda, obviamente, e que certa forma foram responsáveis, junto com a tremenda crise econômica já em curso, pelo impeachment finalmente realizado em meados de 2016. Mas, este, como disse, é o aspecto menos importante desse parágrafo; o aspecto mais relevante a ser destacado é o trecho que se refere a um suposto “ciclo virtuoso de mais de uma década”.
O que isso quer dizer? Que o Brasil vinha vindo muito bem, com seu ciclo virtuoso – à base de alta demanda chinesa por nossas commodities de exportação e altos preços dessas matérias primas – que se estendeu durante quase toda a década de 2000, e de repente, por inépcia na gestão, ele se vê engolfado numa “longa recessão econômica” e na revelação de um imenso lodaçal de corrupção generalizada, com todas as suas consequências na esfera política? Seria isso? Pois ouso mais uma vez dizer que tal tipo de afirmação é profundamente equivocada, seja no plano mais geral das políticas econômicas, seja no âmbito mais restrito da política externa. Não vejo nenhum “ciclo virtuoso” de “mais de uma década”, mas o que vejo, sim, é uma deformação de várias políticas públicas durante mais de dez anos, desde o início, mas mais acentuadamente a partir de 2005, e o aprofundamento de uma política externa, dita “ativa e altiva”, feita expressamente para servir ao regime lulopetista e suas políticas equivocadas, interna e externamente. Não vou me estender neste momento sobre todos os motivos pelos quais eu considero a década e meia de dominação lulopetista sobre nossas instituições um fenômeno profundamente nefasto, prejudicial, um tremendo retrocesso em todos os aspectos, até justamente descambar na Grande Destruição. Quanto aos aspectos propriamente diplomáticos do “avanço do retrocesso”, já me estendi bastante em meu último livro – Nunca Antes na Diplomacia...: a política externa brasileira em tempos não convencionais (2014) – para retomar novamente todas as minhas críticas a tais deformações deliberadas de uma das mais importantes de nossas políticas públicas.
Mas, as surpresas quanto à caracterização dos processos que nos levaram a essa “emergência nacional” continuam no segundo paragrafo desse capítulo, a partir do qual se desdobra o projeto de “modernizar a doutrina brasileira de política externa”:
O pano de fundo dessa transformação para pior foi uma economia global de baixo crescimento, o aumento de nossa dependência econômica em relação à China e a onda global de neopopulismo, que venceu o voto pela saída da União Europeia no Reino Unido e levou Donald Trump à presidência dos Estados Unidos.
Esse é o contexto no qual se impõe a necessidade de modernizar a doutrina brasileira de política externa. Tal esforço é essencial porque a estratégia internacional dos últimos anos, com seus êxitos e fracassos, encontra-se esgotada. (17)

Essa economia global de baixo crescimento já vinha de longe, e se estendeu praticamente desde os choques do petróleo dos anos 1970, para justamente iniciar um ciclo de crescimento vigoroso nos 2000, a taxas que não se viam desde o primeiro choque do petróleo, o que favoreceu muitos países emergentes, mas pouco a América Latina e muito pouco o Brasil, que ficou abaixo do crescimento da região, com taxas inferiores à média do crescimento mundial e três vezes menores do que as dos países emergentes de economia mais dinâmica. Incidentalmente, não houve aumento da “dependência econômica em relação à China”, mas intensificação do comércio bilateral, com o gigante asiático assumindo a primeira posição individualmente, à frente, desde 2009, dos EUA. Ora, maior fluxo de comércio – o que justamente tivemos com os EUA e a UE em seu conjunto durante décadas – não quer dizer “dependência econômica”, sob risco de enfraquecermos o sentido desse conceito. Por fim, a tal “onda global de neopopulismo” não tem absolutamente nada a ver com os problemas do Brasil, assim como os resultados de plebiscito e votações no Reino Unido e nos EUA. Trata-se, aliás, do mesmo velho populismo já conhecido em outras regiões ou outros tempos, e não é exatamente global, pois as questões em países da Europa e nos EUA se colocam em bases históricas e de política nacional totalmente diferentes em cada situação. Trump responde a outros critérios de escolhas políticas, diferentes do voto conservador em países da Europa, ainda que os fenômenos da rejeição à imigração descontrolada e dos temores de atentados terroristas de origem fundamentalista islâmica possam ser (e são) reconhecidos como relativamente coincidentes.
Em face desses “problemas” é que se “se impõe a necessidade de modernizar a doutrina brasileira de política externa”? Seria isso correto? Seria isso possível? Seria isso factível? Para modernizar algo, seria antes preciso saber, com certo grau de exatidão, o que é se pretende “modernizar”. Ou seja, aperfeiçoar uma suposta doutrina que não foi ainda sequer definida. Pelo que se leu, se parte do pressuposto de que houve um “ciclo virtuoso de mais de uma década”, e esse ciclo contaria, ao que parece, com uma doutrina que seria preciso “modernizar”: “Tal esforço é essencial porque a estratégia internacional dos últimos anos, com seus êxitos e fracassos, encontra-se esgotada” (17). Ou seja, houve uma estratégia, ou doutrina, e essa teria sido a do lulopetismo diplomático, talvez até igual à do neoliberalismo dos tucanos.
Em seguida, registra-se uma nota de desconfiança em relação à capacidade do atual governo – que não hesito em classificar como de “transição”, embora não se saiba ainda para o quê, exatamente – de efetuar esse passo ousado:
O governo Temer iniciou seu mandato revisando as ênfases diplomáticas do PT, e o novo presidente promete inaugurar um novo estilo na condução dos negócios estrangeiros. Nada indica, porém, que ele vá atualizar os conceitos básicos que embasam a atuação do país no mundo. (18)

Antes de qualquer comentário a respeito dessa “incapacidade”, seria preciso, primeiro, saber quais eram esses “conceitos básicos” anteriormente existentes, e que necessitariam rejuvenescimento, ou modernização. A tarefa não parece fácil, como se registra logo em seguida:
A adaptação da política externa aos novos tempos internos e externos, quando ocorrer, será uma tarefa dificílima: não há consenso sobre o que fazer, nem recursos disponíveis para grandes empreitadas. Além disso, há boa dose de inércia - a tendência natural da comunidade responsável por pensar o lugar do Brasil no mundo a manter-se escorada nos velhos paradigmas. (18)


Pode-se concordar com o exposto, ou seja, ninguém sabe bem o que fazer, pois os diplomatas, como sempre, apenas esperam instruções ou ordens superiores; os políticos, por sua vez, não parecem estar em condições de formular quaisquer instruções claras e adequadas aos problemas internos e externos do Brasil. Os acadêmicos, finalmente, fazem o que sempre fizeram: quando não são capazes de interpretar a realidade existente, fazem o que já disse uma vez o escritor Mario Vargas Llosa, eles “inventam uma teoria”. De fato, é o que eles mais sabem fazer: inventam teorias, o que não necessariamente é o que praticam as outras duas categorias, e as teorias são um pouco o substituto de uma profunda ignorância sobre coisas práticas da vida (a política externa é uma coisa profundamente prática, antes de responder a grandes conceitos de política internacional, vista pelos olhos e escritos dos intelectuais).
Antes de adentrar na substância de sua exposição, ou seja, a formulação de uma nova doutrina de política externa, o autor explica as bases de seu trabalho analítico:  
Este capítulo argumenta que é necessário iniciar o processo de concepção de uma nova doutrina de política externa. Para isso, o texto está dividido em quatro partes. Primeiro, explico as diferenças e semelhanças das estratégias internacionais adotadas por tucanos e petistas durante os últimos vinte anos, e o fim do consenso entre os dois partidos a respeito da política externa brasileira. Segundo, avalio as condições que tendem a moldar qualquer nova concepção doutrinária de política externa. Na sequência, ofereço uma interpretação sobre os parâmetros que deveriam embasar esse exercício de reflexão estratégica no atual momento de revisão do gasto público e da estrutura fiscal do país. Por fim, sistematizo algumas recomendações sobre os processos que poderiam facilitar o debate público nesse campo. (18)

Nada a reparar quanto a seu plano de trabalho, e entendo que a primeira parte deveria ser dedicada a um diagnóstico realista sobre o que foi a política externa no período recente. Mas soa bizarro ler, logo em seguida, que teria havido um “fim de consenso” entre tucanos e petistas a respeito da política externa (ou seja, existiu um consenso, em algum momento), quando estes últimos condenaram vigorosamente a orientação dada pelos primeiras à diplomacia brasileira nos dois (ou mais) governos anteriores, e fizeram de tudo para se demarcar do “neoliberalismo” tucanês, se empenhando em proclamar que sua política externa era “ativa e altiva”, supostamente o contrário da linha “submissa”, “alinhada a Washington”, conservadora ou coisas do gênero. Se existiu um consenso, em algum momento, foi contra a vontade, totalmente involuntário, e passou despercebido dos petistas puros, que se esforçaram para mostrar que sua política externa era a única capaz de preservar a soberania nacional, garantir os famosos “espaços de políticas públicas” guiadas para acelerar o crescimento e produzir um “desenvolvimento social inclusivo”, objetivando consolidar o Mercosul, fazer o Brasil ingressar no Conselho de Segurança e concluir com êxito as negociações comerciais multilaterais. Como se sabe, esses eram os três objetivos prioritários da política externa “ativa e altiva” (e soberano) do lulopetismo diplomático.
O autor reconhece, em primeiro lugar, na seção “O fim do consenso”, que a política externa tinha virando um dos principais “campos de batalha entre PT e PSDB”, isso porque este último partido concebia a política externa como “instrumento de adaptação à globalização”, ao passo que o PT imaginava “a diplomacia como instrumento de resistência” (19). Ele expõe detalhadamente as posturas defendidas por uns e outros, mas não esclarece que, enquanto a política externa dos tucanos, guiada fundamentalmente pelos próprios diplomatas (com alguns poucos elementos introduzidos pelo próprio presidente, mas após uma consulta ponderada a seu chanceler, um diplomata de carreira, como aliás o dos petistas), estava embasada em dados concretos da agenda internacional, a dos petistas, a partir daquela concepção bizarra de que “um outro mundo é possível”, era razoavelmente errática, conduzida por diversas cabeças nem sempre pensantes, com inúmeros elementos utópicos, ou simplesmente irrealistas, sem grandes conexões com a realidade (e por isso ineficiente quanto aos seus grandes objetivos).
Uma das frases dessa seção soa pelo menos estranha: “O ativismo internacional do PT começou com visitas de altíssimo perfil (sublinhado PRA) a Cuba, Irã, Líbia e Síria, além de numerosos périplos pela África e pela América Latina” (20). Como assim? O “altíssimo perfil” se refere ao visitador, ou aos países citados?
Logo em seguida, comparece uma inversão cronológica de vários anos: “Em seguida, vieram a criação do Brics (...), do Ibsa (...) e na formação do G20” (20). Cabe retificar: o Ibas foi constituído no início do primeiro mandato do demiurgo, logo no primeiro semestre de 2003, seguido de um esquizofrênico G20 comercial, a partir da conferência ministerial da OMC, em novembro daquele ano em Cancun (mas que desapareceu sem grandes traços, dadas suas grandes contradições internas, e que não deve ser confundido com o G20 financeiro, só surgido a partir de 2008). O Bric, por sua vez, foi oficializado a quatro membros apenas em 2009, a despeito de alguns contatos preliminares a partir de 2006, mas se tornou Brics apenas em 2011, com o ingresso forçado pela China da África do Sul (um país muito distante do conceito original).
Uma outra imprecisão factual comparece logo em seguida: “O PT optou por um estilo negociador maximalista na Rodada Doha, nos embates da Alca e na tentativa de reformar o Conselho de Segurança da ONU” (20). Na verdade, o “estilo” poderia ser considerado, antes, minimalista, pelos seguintes motivos: o Brasil continuava a se opor à agenda ambiciosa dos países desenvolvidos – em especial nos chamados “novos temas”, ou na agenda de Cingapura (compras governamentais, propriedade intelectual, etc.) – e não tinha outra intenção em relação à Alca senão implodi-la desde o início, o que traduz também uma vocação minimalista, novamente pela recusa de engajamentos muito explícitos quanto a compromissos de abertura econômica e de liberalização comercial. No que se refere ao CSNU, o ativismo foi realmente erga omnes, mas se traduziu, contraditoriamente, na formação do G4, que pode ser considerado minimalista e contraproducente, ao unir o Brasil –que teria chances reais de ser aceito como um candidato credível a uma cadeira permanente – a três outros países (Alemanha, Índia e Japão) confrontados a opositores muito poderosos em suas próprias regiões.
Existem vários outros equívocos factuais nos parágrafos que se seguem a este, mas talvez seja mais interessante concentrar-se na afirmação mais ousada, a de um suposto consenso entre tucanos e petistas:
Em política externa, ao longo desses vinte anos [ou seja abarcando as administrações a partir de 1995], tucanos e petistas tiveram muito em comum. Ambos apostaram na construção de coalizões regionais, concebendo o Mercosul como instrumento para resistir à integração hemisférica proposta pelos Estados Unidos e como instrumento para alavancar a regionalização do capitalismo brasileiro. (...) Juntos, PT e PSDB rejeitaram as demandas dos países vizinhos por instituições regionais densas, preferindo compromissos minimalistas que permitissem ao Brasil reagir de modo unilateral quando fosse útil ou necessário. (21)

O Mercosul, na verdade, foi concebido com outros objetivos, entre eles o de inserir os países membros na economia global, ainda que inicialmente segundo um modelo mercantilista e protecionista, que aliás só se reforçou ainda sob os tucanos e se expandiu fortemente sob os lulopetistas. Foram os ativistas e soberanistas da diplomacia lulopetista que aceitaram inserir o Brasil numa nova rede de instituições regionais – primeiro a Casa, depois a Unasul, depois o Parlamento do Mercosul, o Conselho de Defesa Sul-Americana, a Celac, com suas derivações erráticas, diversos institutos ditos “sociais” ou políticos, no Mercosul, e diversos outros arranjos exclusivos da região – o que, contraditoriamente, reduzia o espaço de atuação unilateral do Brasil, ou seja, de alguma maneira reduzia a sua soberania (seria a lei das consequências involuntárias?).
O autor também acredita que os petistas e tucanos “evitaram abrir o comércio a ritmo acelerado” (21), mas o fato é que foram os petistas que fecharam o Brasil ao comércio regional e internacional, ao impulsionar uma série de mecanismos de indução à oferta nacional – permitindo preço maior, em até 25%, nas compras nacionais, políticas de conteúdo local, mesmo em detrimento da qualidade e dos custos, regime automotivo totalmente discriminatório, e por isso mesmo condenado na OMC – e ao proclamar repetidamente a “defesa do emprego nacional”, o que na verdade escondia um gigantesco esquema de corrupção – um dos maiores vistos no hemisfério, talvez no mundo – que tinha pouco a ver com a promoção dos interesses nacionais, e tudo a ver com o enriquecimento criminoso de grão-petistas e seus aliados entre os capitalistas promíscuos selecionados para receber aportes generosos dos bancos estatais, o que era feito justamente para desviar imensos recursos públicos para o PT e seus líderes.
A frase mais surpreendente desse capítulo figura pouco adiante: “Em questões de política externa, o longo ciclo socialdemocrata [sic] sob as insígnias PT-PSDB assistiu a um consenso fundacional entre as elites governistas” (21). Não se sabe bem quais elites governistas eram essas, pois muitos membros da classe política de fato sucumbiram à hegemonia petista – e agora se sabe como, ou por quê – mas não temos uma explicação sobre o que significaria esse “consenso fundacional”. Que as chamadas “oposições” – na verdade, um punhado de excluídos do poder, mais por sectarismo petista do que por oposição verdadeira – tenham sido especialmente relapsas, ineptas, no limite estúpidas, incapazes de exercer sua missão institucional de “oposição”, isso é um fato, mas não se tem uma ideia clara de qual tipo de “consenso fundacional”, seria esse, ou como e por que as duas forças teriam bebido de um “poço comum”.
A interpretação desses vinte anos de lutas políticas surpreende mais ainda: “Foi aquele consenso geral entre tucanos e petistas que produziu vitórias eleitorais em 1994, 1998, 2002, 2006 e 2010. (...) Perdeu o atraso, ganhou o progresso” (22). As afirmações surpreendem porque tanto o PSDB quanto o PT tiveram de governar, o primeiro por sectarismo do segundo, este por escolha deliberada, com as forças mais retrógradas e conservadoras (além de corruptas) da política brasileira. O que houve, na verdade, foi o avanço do retrocesso, ainda que os tucanos tenham conduzido reformas importantes nos arranjos constitucionais e legais para inserir o Brasil na economia mundial, ao passo que os petistas fizeram-no retroceder a extremos de nacionalismo exacerbado, o que não se via desde o final do regime militar (modelo, aliás, apreciado pelos petistas).
Na sua seção propositiva – “Condições para uma nova doutrina” –, Matias Spektor acredita que a “construção de uma nova doutrina de política externa demandará algum tipo de consenso suprapartidário” (22), mas não se sabe se este é um desejo do ensaísta ou uma tendência natural do sistema político na área da política externa. Há nesta seção menções a supostas “doutrinas” de política externa em épocas históricas anteriores: no império, no desenvolvimentismo dos anos 1950 e 1960, e durante o “autoritarismo industrializante do regime militar de Médici e Geisel”. O fato é que tivemos inflexões doutrinais nesses dois últimos períodos, embora elas tenham correspondido bem menos a elaboradas posturas teóricas e mais a considerações de caráter prático elaboradas por diplomatas e alguns líderes políticos.
O que segue é visivelmente ainda mais duvidoso:
FHC, quando era acadêmico, desenvolveu uma teoria de relações internacionais [sic] para explicar a posição do Brasil no mudo e dela derivar, já na presidência, proposições coerentes de política externa. Lula, por sua vez, adicionou ao ideário de seu antecessor numerosas teses típicas do pensamento de esquerda latino-americana. (22)


FHC talvez não tenha pretendido que sua tristemente famosa “teoria da dependência” fosse “esquecida”, mas o fato é que essa construção do marxismo light da esquerda acadêmica não influenciou em absolutamente nada sua política externa, que foi essencialmente uma produção de diplomatas, feita por diplomatas, conduzida pelos mesmos, com pequenos toques pessoais do presidente (a retardada aceitação do TNP, por exemplo, ainda assim, largamente discutida com seu chanceler diplomata). Lula, por sua vez, um “ignorante enciclopédico” (como poderia dizer Millor Fernandes), seria, como foi, incapaz de agregar qualquer tipo de tese a qualquer pensamento sobre a política externa, o que ele nunca teve pessoalmente, a não ser sua “dívida” em relação a companheiros castristas e bolivarianos, que ele zelosamente pagou ao longo dos anos. O seu retrocesso a exageros retóricos e excessos infantis de terceiro-mundismo explícito e de desenvolvimentismo cepaliano ultrapassado se deveu inteiramente a ideólogos do PT e do próprio establishment diplomático, saudosistas de doutrinas que já eram desde a sua origem anacrônicas, e que continuaram anacrônicas durante toda a duração de seus dois mandatos, para serem ainda mais aprofundadas no anacronismo pueril durante o mandato e meio de uma sucessora particularmente inepta (talvez pour cause).
Uma visão externa do processo decisório em política externa do lulopetismo, tal como expressa nessa seção de estabelecimento das “condições para uma nova doutrina”,  chega a este tipo de afirmação:
Lula... concentrou a reflexão [sic] sobre política externa em seu círculo mais íntimo, sobretudo em conversas com velhos colegas de partido, como Marco Aurélio Garcia, José Dirceu, Luiz Dulci e Antonio Palocci. Ainda no primeiro mandato, porém, ganhou ascendência o chanceler Celso Amorim, dando forma diplomática – e por vezes disciplinando àquilo que emanava do círculo do presidente. (23)


A afirmação é igualmente surpreendente, pelo que ela sobrestima o papel de Dulci e de Palocci na política externa, e deixa completamente em silêncio o papel várias vezes decisivo de seu amigo Luiz Gushiken – chefe da propaganda política do governo, líder de um mal denominado “Núcleo de Assuntos Estratégicos” e um dos promotores da aventura haitiana – e sobretudo do principal guru ideológico da diplomacia lulopetista, o diplomata e secretário-geral do Itamaraty (depois em outros cargos), Samuel Pinheiro Guimarães, o único, aliás, a escrever abundantemente sobre as principais opções em política externa dos companheiros. Junto com o chanceler, ele constituiu um dos principais sustentáculos “teóricos” do lulopetismo diplomático (if any), uma vez que o longevo assessor presidencial para a política externa – várias vezes chamado de “chanceler para a América do Sul” – se revelou incapaz de traçar uma rationale para a política externa sectária operada, a não ser o fato de ter trabalhado consistentemente em favor de seus mestres cubanos e outros aliados regionais (entre eles as Farc e outros grupos pertencentes ao Foro de São Paulo, uma construção dos comunistas cubanos para controlar os, e se aproveitar dos aliados políticos na região, tarefa cumprida com o zelo exemplar de um apparatchik stalinista).
O próximo passo do ensaísta consiste em perguntar como pode ocorrer o processo de “geração de ideias e conceitos” para uma “reflexão estratégica” voltada à formulação dessa nova “doutrina” de política externa. Na penúltima seção do capítulo comparecem os “parâmetros para a reflexão”. Existe aqui uma tentativa de induzir essa reflexão na direção de uma pesquisa empírica sobre os “efeitos redistributivos” da política externa, e o convite é formulado explicitamente:
É chegada a hora de entender de que forma a política externa impacta sobre as trajetórias de pobreza e desigualdade com base em estudos empíricos bem embasados. Uma iniciativa dessa natureza é totalmente viável, pois há recursos humanos e materiais para implementá-la. Além disso, as novas tecnologias permitem exercícios antes impensáveis.

Basta escolher algumas áreas da agenda externa para começar. (24)

Parece duvidoso que uma agenda de política externa possa ser modulada pelo país em função de seus supostos efeitos redistributivos, mas ainda que isso pudesse ocorrer, cabe reconhecer que não se trata de algo transportável para a prancheta do estrategista acadêmico, desvinculado do trabalho concreto de condução operacional da diplomacia, num contexto em que grande parte dessa agenda vem impulsionada – quase imposta, na verdade – de fora, com pouca margem de manobra ou espaços de liberdade para o país exercer qualquer capacidade de liderança (exceto, em escala reduzida, em nível regional). Parece ter sido uma enorme ilusão da diplomacia lulopetismo, com uma grande dose de irrealismo no seu ativismo pirotécnico, achar que o Brasil seria capaz de moldar a política de sócios improváveis como podem ser os do Ibas ou os do Brics (e mais ainda a de alguns dos seus aliados “aloprados” da própria região).
Nas suas “Recomendações” (p. 25), o autor sugere que:
... chegou a hora de a sociedade brasileira conceber novas ideias e conceitos que possam, no futuro próximo, contribuir para um processo de renovação doutrinária da política externa brasileira. Afinal, a doutrina de atuação internacional desenvolvida durante os últimos vinte anos de socialdemocracia tucano-petista caducou, devido a transformações políticas domésticas e globais.
Recomenda-se que esse processo de revisão comece de imediato, com a promoção de estudos empiricamente embasados e de debates em todos os setores da vida pública nacional. Uma empreitada desta natureza não pode nem deve ficar confinada ao governo ou à academia, mas ter capilaridade em toda a comunidade brasileira de política externa.
Recomenda-se também que esse esforço leve em conta o impacto redistributivo da política externa. (...) ... para um país com nossos índices de pobreza e desigualdade, e num cenário de escassez orçamentária e aperto fiscal intenso, tal preocupação precisa ser cada vez mais explicitada.

Independentemente do fato de se considerar tal chamamento ao grande esforço de inspiração tarefa essencialmente autoaplicável, ou, ao contrário, uma proposta de formulação de novas posições em círculos bem mais amplos, virtualmente nacionais, o que se sugere, na verdade, é um esforço coletivo de debate sobre as bases conceituais e empíricas da política externa brasileira, missão raramente operada fora do establishment relativamente restrito da diplomacia (basicamente a profissional, mas subsidiada por modestas adições de um círculo ainda mais restrito de especialistas e “ativistas”) e ainda mais difícil de ser conduzida na presente conjuntura de transição política para um futuro ainda largamente indefinido, dadas as tradicionais e recorrentes recaídas do eleitorado nacional e regional no mais anacrônico populismo regressista (como aliás já foi, de certa forma, o próprio lulopetismo em geral, e especialmente o diplomático). Nessas condições nebulosas de governança política nacional, não se vê muito bem como a “sociedade terá melhores instrumentos para julgar as opções externas de seus governantes”, como pretende o ensaísta (p. 25). Tampouco se vê claramente como os “políticos profissionais” possam estar “devidamente munidos”, “com base nesses dados”, que seriam supostamente extraídos de uma “nova doutrina de política externa” fundamentada em “dados empíricos”, “para ir às ruas pedir o voto do eleitor”.
Ainda que esta possa ser “a maneira mais adequada para fazer política externa numa democracia” (25), como finaliza o autor, considero este tipo de postura pouco realista, em vista das condições deploráveis da governança nacional, dividida entre adaptações ad hoc a programas de ajuste absolutamente indispensáveis para vencer a pior recessão de toda a nossa história e novas aventuras populistas apontando para a próxima campanha presidencial dentro de pouco mais de um ano. O que virá em 2019 ninguém, honestamente, é capaz de prever. A diplomacia profissional parece apta a se adaptar aos cenários os mais improváveis, com uma flexibilidade que pode parecer resignação. Existem outros caminhos aos pensadores da diplomacia? Boa pergunta...

3) “Análise estratégica para as relações internacionais do Brasil”, Matias Spektor
O capítulo final, do mesmo ensaísta, tem a pretensão de “antecipar tendências e problemas emergentes no sistema internacional, e calcular o risco embutido em cada uma das opções disponíveis para o país” (133).
Como isso se daria? “Para isso, alguns países utilizam de forma explícita os instrumentos hoje disponíveis para a análise estratégica aplicada aos assuntos da política externa, economia global, defesa e segurança internacionais” (133). Esse tipo de atividade não se confunde “com as tarefas de planejamento diplomático típicas do trabalho cotidiano de uma chancelaria”, como existe, no caso brasileiro, uma Secretaria de Planejamento Diplomático.
Para o autor, o Brasil “sofre de um déficit de longa data de análise estratégica em política externa, economia global, segurança e defesa internacionais” (134), o que parece fundamentalmente correto, ainda que diplomatas e militares tenham mantido exercícios constantes nessa vertente. Mais correta ainda parece a frase seguinte, segundo a qual “a classe política brasileira tem sido incapaz de detectar e entender, a tempo e com precisão, as grandes transformações globais que moldam a vida pública nacional” (134).
A despeito disso, o autor acredita que a “dificuldade em antever surpresas estratégicas não é inépcia governamental, mas algo mais complexo” (134). O que seria então? Fechamento, introversão, monolinguismo. Tudo isso existe, mas, basicamente:
O que falta ao governo brasileiro é um modelo de gestão de conhecimento sobre política e economia internacionais capaz de absorver e integrar a massa de informações que hoje se encontra dispersa. (135)


Com todas essas deficiências, o autor acredita que seria “fácil por um fim à desarrumação custosa” que hoje caracteriza essa área. Ele se dedica, então, a apontar os “obstáculos institucionais e políticos à construção de um sistema de análise estratégica”, focando em alguns “instrumentos de baixo custo e alto impacto que poderiam ajudar a reverter o quadro” (135).
Coordenação estratégica
“Não existe hoje uma instância com poderes delegados da presidência da República para coordenar o trabalho de reflexão prospectiva dos numerosos órgãos governamentais que conduzem algum tipo de atividade internacional. Ou seja, não há uma estrutura análoga ao National Security Council (Estados Unidos), ao Prime Minister’s Strategy Unit (Reino Unido) ou aos conselhos mais ou menos informais que alimentam com análises estratégicas o processo decisório dos chefes de governo em países como Rússia, Índia e China” (135).
Ciência de dados
A tecnologia da informação não é aplicada à política externa, pois “a vasta maioria de informações da série telegráfica do Itamaraty é arquivada sem nunca ser processada ou submetida a cruzamentos temáticos” (136).
Massa crítica
Não existe no Brasil uma “comunidade vibrante de relações internacionais e política externa fora das estruturas de governo” (136). Pior: a comunidade acadêmica que existe “não oferece treinamento profissional em análise de risco, elaboração de cenários ou análise estratégica internacional”.
Cultura diplomática
“A cultura diplomática é rica e fonte de enorme vantagem comparativa para o Brasil no sistema internacional” (p. 136). No entanto, algumas características “dificultam o nascimento de uma cultura arraigada em análise estratégica”:
1) valoriza a ação prática em detrimento do trabalho analítico;
2) existe um culto das gerações mais antigas e pouca interação com instituições de fora do país;
3) existe aversão ao dissenso e adesão ao pensamento grupal;
4) existe mais burocracia administrativa do que reflexão estratégica no dia a dia do diplomata;
5) a hierarquia estrita traz coerência mas também enormes custos: “Existem barreiras tácitas e explícitas à cultura de questionamento e criatividade que é essencial a qualquer trabalho sério de análise estratégica” (p. 137).
No período recente, a concentração do trabalho diplomático no gabinete do ministro de Estado tornou o ambiente menos deliberativo:
Mesmo embaixadores graduados furtam-se muitas vezes de discutir com franqueza suas perspectivas divergentes da linha oficial do momento. (138)
Além de empobrecimento intelectual, esse modo de lidar com as questões diplomáticas introduz riscos adicionais. O mais gritante é um estilo organizacional avesso às más notícias, onde funcionários que identificam problemas graves temem que a mera comunicação formal desses problemas a seus superiores possa ter efeito deletério sobre suas próprias carreiras. O resultado disso pode ser catastrófico. Um exemplo recente foi o episódio da fuga do senador Roger Pinto da embaixada em La Paz... Outro exemplo foi o atabalhoado processo de evacuação do pessoal da embaixada do Brasil no Mali... [Nos dois casos, alertas prévios] não encontraram canais abertos [em Brasília]. (138)

As metodologias para paliar esses problemas existem e seriam compostas de:
1) cenários alternativos, ou seja, conceber os cenários mais plausíveis;
2) identificação de tendências, para emitir alertas quanto a possíveis crises;
3) testes de resiliência: colocar um grupo para defender a posição do governo e um outro, fazendo o “advogado do diabo”, para atacá-la: “o exercício ajuda a identificar contradições, raciocínios circulares e áreas de fraqueza ou inconsistência nas posições oficiais” (140).
4) ciência de dados aplicada à diplomacia: automatizar o processo de análise dos documentos oficiais produzidos nos postos;
5) identificação de vulnerabilidades, mediante simulações a partir de políticas ou medidas alternativas aplicadas em caso de “cenários ambíguos e surpreendentes” (141).
6) red teaming, ou pensar como o “inimigo”, por meio de “especialistas dedicados a questionar as políticas oficiais” (142).

Esses são os instrumentos de análise estratégica que deveriam, segundo Matias Spektor, dotar a classe política e os próprios diplomatas de um sistema de análise estratégica aplicada à política externa. Mas, como ainda indica o autor:
Nenhum esforço dessa natureza será capaz de vingar sem vínculo direto com a presidência da República. Somente ela pode garantir uma visão de conjunto, dirimir conflitos entre os ministérios, agências e autarquias que compõem o governo brasileiro e cobrar resultados. Esse trabalho poderia ser conduzido pela presidência e ser secretariado pela SPD, do Ministério das Relações Exteriores. O órgão teria autoridade para formar forças-tarefa compostas pelas equipes de cenários das forças armadas, os pesquisadores do IPEA, do IBGE e do Banco Central, mobilizando a ABIN, a Petrobras, o BNDES, a Embrapa e quaisquer outros órgãos do governo brasileiro. (142)
(...)
Recomenda-se ainda que o grupo responsável por esse esforço estabeleça contato regular, por meio de teleconferência, com os principais especialistas internacionais nas áreas em questão. (...)
Recomenda-se também ao Itamaraty instituir um sistema para canalizar o dissenso em questões substantivas. Bastaria para isso estabelecer foro eletrônico sob a supervisão da SPD, ao qual diplomatas profissionais poderiam encaminhar considerações de caráter estratégico de forma anônima, caso essa seja a preferência dos participantes. (143)

Aparentemente, as considerações acima, feitas no segundo semestre de 2016, anteciparam, involuntariamente, a política atual, proclamada pelo menos oralmente, de favorecer uma atitude à la Mao Tsé-tung (da segunda metade dos anos 1950): “Que floresçam as cem flores!” O espetáculo pode ser bonito, mas depende da perspectiva...

Por fim, dispenso-me, neste momento, por falta de tempo, de examinar cada um dos capítulos setoriais – sumariados no já citado trabalho: “Dez desafios da política externa brasileira – CEBRI”, Brasília, 10 de fevereiro de 2017 (disponível no link: http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2017/02/dez-desafios-da-politica-externa.html) – que focam nas questões seguintes: atração de investimentos; o problema do comércio exterior; a diplomacia “anticorrupção” (sic); segurança e defesa; a nova geopolítica da energia; bens públicos e grupos de interesse e sua interação com a política externa; diplomacia da saúde global (ou falta de?); e promoção da democracia e dos direitos humanos.  Uma leitura mais atenta de cada um desses oito capítulos adicionais permitirá uma avaliação crítica no momento oportuno. Cada um a seu tempo... 

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 11 março de 2017, 19 p.