O que é este blog?

Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida;

Meu Twitter: https://twitter.com/PauloAlmeida53

Facebook: https://www.facebook.com/paulobooks

domingo, 22 de outubro de 2017

Como vencer a transicao: Consequencias economicas da vitoria, parte 4 (4-2002) - Paulo Roberto de Almeida

Ainda fiz um último esforço para ajudar os companheiros – isso antes mesmo do segundo turno – já antecipando sobre as próximas etapas da governança: montagem do gabinete, preparação das políticas a serem implementadas, essas coisas. Pouca gente, se alguém, me leu, mas eu escrevia sobretudo para mim mesmo, para ter ideias claras sobre a governança do Brasil.
Nada do que eu prescrevi deu certo, o que era óbvio, mas nada impede que meus "ensinamentos" continuem a servir ainda hoje a novos candidatos a estadistas do Brasil. Eles não faltam mas invariavelmente falham, por mediocridade de formação, por deformação de carreira, por má influência de oportunistas e de todos os bandidos que se aproximam do poder para lucrar e enriquecer. O poder é isso mesmo: um pote de mel que atrai os mais gananciosos.
Espermos que um dia isso mude. Por isso escrevo e mantenho a esperança...
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 22/10/2017


Como vencer a transição:
recomendações espontâneas sobre como alcançar a vitória na subida ao poder
(da série: Consequências econômicas da vitória, parte 4)

Paulo Roberto de Almeida
(Washington, 20/10/2002)

            Dando continuidade a minha série de reflexões sobre a nova situação política criada com a mudança da maioria social de governo no Brasil – já consubstanciada em trabalhos sobre aspectos pouco usuais do pensamento mudancista – , pretendo tocar mais de perto, não nos elementos constitutivos de um “manual para a nova economia política”, que estava compondo de maneira algo improvisada, mas em uma série de pontos de caráter mais tático do que estratégico, que visam chamar a atenção para problemas do curto prazo, condizentes aliás com a transição relativamente longa que se vive no sistema político brasileiro. Esses pontos podem ser sumariados nas tarefas seguintes:

1) Unificar o discurso
2) Falar ao País, não ao partido
3) Dirigir-se ao mundo, seletivamente
4) Tranquilizar os agentes econômicos
5) Designar os principais assessores, depois negociar
6) Recompor um programa de governo
7) Atender a circunstâncias excepcionais
8) Indicar as linhas do discurso de posse
9) Estruturar as bases do apoio congressual
10) Preparar-se para o pior, manter a mensagem otimista

            Não se trata obviamente de uma lista exaustiva, ou de um “manual para a fase de transição”, mas de alguns pontos que me parecem de consideração relevante na presente conjuntura, a partir de uma observação prática de outros momentos de transição para uma nova maioria, no Brasil e no exterior. A ordem não é essencial, mas pode ser importante.

1) Unificar o discurso
            Trata-se de uma regra absoluta, válida em qualquer momento, em qualquer circunstância do jogo político, por isso vem em primeiro lugar. A liderança fala de uma voz única, ou quando ela não é única é pelo menos unificada, homogênea, concordante, sobretudo em matéria econômica, terreno no qual os perigos são maiores do que em qualquer outro, dadas suas consequências potencialmente catastróficas. Pequenos chefes e porta-vozes auto-assumidos têm de ser alertados para os efeitos nefastos da chamada “dupla linguagem” e o comando central tem de saber impor um discurso uniforme e, portanto, tranquilizador. Em operações militares não pode haver dualidade de comando, e a arte da política tem regras muito semelhantes.

2) Falar ao País, não ao partido
            Quaisquer que sejam os resultados de 27 de outubro, o corpo eleitoral e, mais importante, a Nação permanecerão divididos, independentemente do que diga ou faça o vencedor. A desconfiança em relação ao novo centro de poder é obviamente muito maior no caso de uma mudança importante no centro de gravidade política como a que acaba de ocorrer, com temores infundados e animosidades involuntárias aflorando mesmo na ausência de motivos objetivos para tal estado de espírito. Trata-se de um sentimento talvez exagerado mas não de todo inesperado, dada a situação de incerteza que reina no País sobre diversos aspectos da nova realidade política.
            Contado o resultado do pleito de 27, o vencedor não pertence mais a um partido ou a uma coalizão, mas trata-se de um líder nacional. Por isso, a primeira palavra não deve ser aos seus seguidores mas à Nação, ainda que esse pronunciamento contenha palavras de agradecimento a todos aqueles que tornaram possível a vitória. Esta contudo já pertence ao passado e à História e o que conta doravante é a construção de algo novo, que não será a realização pura e simples da agenda partidária – a Nação ainda está dividida, lembre-se – mas a busca de um novo consenso em favor do conjunto da coletividade. Esqueça por um momento os grupos sociais e os problemas locais, com exceção de uma menção ampla aos excluídos e marginalizados, pois que os interesses começam justamente a divergir quando se mencionam categorias específicas da população. O discurso ao País deve ser unificador e consensualizador, e todas as referências partidárias – de fato todas as vinculações – devem ficar para trás ou em segundo plano. O tom elevado deve ser mantido durante todo o exercício.

3) Dirigir-se ao mundo, seletivamente
            Não cabe ao eleito dirigir mensagens a quem quer que seja, e sim recebê-las e depois respondê-las, em tom formal, cerimonioso, anódino, pois ninguém faz política externa em mensagens de cumprimentos e agradecimentos, salvo algumas referências óbvias à importância e relevância das relações bilaterais e do direito internacional. Cabe, sim, cuidadosamente, planejar eventual viagem pré-posse, já que a teia da globalização e os compromissos em curso não permitem uma espera passiva pela chegada da agenda externa à sua mesa.
            Não será possível cobrir todos os pontos de interesse, ou mesmo aqueles ditos principais, colocados burocraticamente no capítulo de relações exteriores do programa, mas seria preciso ter uma visão clara de onde estão as prioridades na frente externa, que não são necessariamente os pontos que oferecem soluções aos problemas, mas podem ser aqueles que representam a própria fonte desses problemas, ou pelo menos onde um início de solução pode ser encontrado e encaminhado.
            De modo geral, contudo, a raiz de nossos principais problemas encontra-se aqui mesmo no País, são mazelas “Brazil-made” e auto-infligidas, estando sua solução inteiramente sob nosso controle e responsabilidade, sendo não apenas derrisório como francamente inútil buscar suas causas no estrangeiro. O mundo vai aceitar o Brasil como uma grande democracia consolidada, que está justamente dando enormes passos no sentido de resolver internamente seus piores problemas de injustiça social e de miséria residual, de corrupção latente e de desigualdades gritantes no exercício e no gozo dos mais elementares direitos da cidadania. Se nos dedicarmos a isso de forma consequente, com ou sem a cooperação internacional – pois que esta eventualmente está voltada para os ainda mais carentes do que nós – teremos o respeito e a consideração da comunidade internacional. Todo o resto é secundário, inclusive a política externa, que deve ser vista como o prolongamento da política interna por outros meios. Nosso principal problema é o de assegurar uma educação de qualidade a todos os brasileiros? Que seja! Este deve ser também o objetivo da política externa. O prestígio externo será o resultado de termos alcançado aquele objetivo na frente interna, não a consequência de qualquer novo ativismo no plano externo.

4) Tranquilizar os agentes econômicos
            Não se pode negar um ambiente de turbulência na frente econômica, o que é próprio de todas as fases de transição, sobretudo as de nítido sentido paradigmático como a que agora se empreende. Por isso caberia fazer o máximo para restabelecer a confiança dos agentes sociais, pois são eles que garantem, em última instância, o comportamento da conjuntura econômica. Por agentes deve-se entender todo mundo, não apenas o banqueiro e o industrial, eventualmente o investidor estrangeiro, mas também o assalariado e a dona de casa, que se preocupa com sua poupança duramente adquirida, a única garantia de uma velhice um pouco menos sofrida.
            Provavelmente mais da metade da economia é feita de uma mercadoria básica que se chama confiança – na moeda, na capacidade de compra dos salários, no retorno dos investimentos, mesmo aqueles mais arriscados ou especulativos – e a confiança é um elemento terrivelmente difícil de se adquirir e muito fácil de se perder. A componente psicológica de qualquer programa econômica é provavelmente maior do que a de seus elementos matemáticos mais consistentemente lógicos, e de fato não há muita lógica na reação dos agentes econômicos a qualquer fato ou dito no terreno econômico. Cabe inteiramente aos dirigentes econômicos e, em última instância, à liderança política inspirar confiança nos cidadãos enquanto agentes econômicos.
Essa confiança não cresce apenas com a abertura ao diálogo, mas sobretudo com a capacidade demonstrada de tomada de decisão. Há um momento, portanto, em que as consultas precisam ser interrompidas e a decisão anunciada. Ela não vai, não pode, satisfazer a todos ao mesmo tempo, e de fato alguns serão mais sacrificados do que outros. Mas a liderança se afirma, justamente, no momento de explicar claramente a natureza do problema e o sentido da decisão tomada, como sendo a de menor custo social possível, da maneira mais transparente e compreensível a todos os agentes econômicos, mesmo os mais humildes.

5) Designar os principais assessores, depois negociar
            Trata-se de uma derivação da regra anterior, especificamente voltada para a área econômica, pois que uma máquina governamental não pode, pela sua complexidade, emergir pronta de um embate eleitoral. Sua construção é por vezes lenta e penosa, o que justamente alimenta os focos de turbulência econômica, que caberia extinguir em seu início. De todo modo, trata-se do núcleo central de comando, que deve não só dispor da, como corresponder à, confiança total do novo líder, sendo junto a ele responsável, à exclusão de qualquer jogo partidário ou congressual. Por isso caberia designar a equipe econômica que vai começar a trabalhar na primeira fase da transição, dando-lhe inteiro respaldo e preservando-a das inevitáveis barganhas das demais escolhas.
            Uma vez feito isso, pode-se sentar para ouvir velhos aliados e novos amigos, antigos militantes e apoiadores de última hora, sem negociar o que é essencial, isto é, a capacidade governativa no núcleo central. Há que preservar uma certa coerência na máquina governamental, mas algumas concessões terão de ser feitas à esquerda e à direita (sem esquecer o centro), literalmente. Ainda que a montagem seja política, a competência técnica deveria prevalecer sobre indicações meramente partidárias, uma vez que a responsabilidade final sempre incumbe ao presidente, não aos partidos da base aliada.

6) Recompor um programa de governo
            Não se pode pensar que o calhamaço de propostas contidas no programa de campanha (metade do qual era aliás composto de críticas à situação corrente) constitua uma base credível de ação governativa, ainda que as sugestões ali contidas sejam um indicador razoável da filosofia geral pela qual vai se pautar a nova maioria. Mas cabe agora preparar um novo documento de diretrizes executivas, nas quais ficam excluídas todas as considerações (mais ou menos impressionistas) sobre o quão deletéria era a situação anterior. Algumas críticas nesses sentido são até aceitáveis, inclusive como forma de transferir responsabilidade pelas dificuldades encontradas no momento mesmo da transição (“a herança recebida é pior do que se esperava”, etc.), mas a ideia é que se tenha agora não um manual completo de governo, mas uma agenda de ações prioritárias para os primeiros seis meses de governo, enquanto se faz o “balanço acurado” da situação e se procede a elaborar um novo orçamento, levando em conta essas novas prioridades, que não são necessariamente as mesmas que as da fase mais imediata de governo.
O programa de governo é o que poderá ser levado adiante com a nova maioria congressual, o que vai ficar claro já nas primeiras conversações para a formação da primeira equipe de governo – estaremos vivendo uma situação semi-parlamentarista – e ele será necessariamente menos ambicioso do que as grandes mudanças prometidas no programa de campanha, sendo sobretudo despojado do tom grandiloquente – ainda que possa continuar sendo tão vago quanto – que marcava aquele documento. De preferência será curto, preciso, objetivo, sem adjetivos, indicando claramente para onde vai dirigir-se a ação governamental, numa primeira fase pelo menos. Lembre-se de que não será possível contentar a todos e assim certos problemas não serão necessariamente tocados. Isso não deve ser motivo de angústia, pois ninguém espera, sobretudo os mais esclarecidos, que a nova situação resolva tudo em seis meses.
O essencial seria preservar a estabilidade econômica – sem a qual a situação dos mais pobres estará imediatamente comprometida – e iniciar um processo de “reversão de expectativas” que confirme que, por uma vez, o bem estar dos mais humildes será, sim, a preocupação principal da nova maioria política. Não vai aqui nenhuma recomendação em favor do assistencialismo, muito pelo contrário, pois que medidas de cunho social podem ser mobilizadas mediante políticas universalistas de investimentos nos setores mais suscetíveis de alcançar a maioria da população: educação, saúde, infraestrutura social, capacitação profissional, segurança pública. O emprego será uma decorrência disso, não do favorecimento de grupos de interesse mediante políticas ativas nos setores industrial ou comercial.
Falou-se em “recompor”, não rescrever um programa de governo, o que indica que sua essência virá daquele primeiro documento, ainda que revisto por uma maioria que não será mais exclusivamente partidária, ou aliancista. Ainda assim, caberia rever certos cacoetes de linguagem que se acumulam em longos anos de autismo militante.

7) Atender a circunstâncias excepcionais
            Não se pode negar que o Brasil vive circunstâncias excepcionais, não apenas pela mudança política em curso, mas também pelo nível anormalmente alto de turbulência econômica, real e percebida, justamente motivada em grande medida pelo caráter inédito da transição na área política. Não apenas se deve evitar que a situação se deteriore ainda mais na fase de transição como caberia buscar ações conjuntas para restabelecer o precário equilíbrio anteriormente prevalecente, antes de se pensar em fatores mais permanentes de estabilidade macroeconômica.
            O papel da liderança política e o do discurso unificado são aqui essenciais, mas caberia encerrar a “muralha da China” que até agora dividiu “nós e eles” na área da administração econômica e passar a trabalhar conjuntamente na solução de um problema que é nacional, não político ou partidário. Determinados bens públicos devem ser preservados além e acima das querelas ideológicas e a situação econômica é um deles. Eventualmente, medidas excepcionais serão necessárias, antes mesmo da assunção ao poder, o que exige, antes de mais nada, o abandono da postura do “eu não disse?” em favor da adoção de uma atitude de responsabilidade compartilhada no acolhimento dos custos – inclusive políticos – derivados de medidas restritivas ou de ajuste emergencial.
            A liderança política se fortalece em situações de comoção nacional, mas a margem de manobra é muito estreita no terreno econômico, o que recomenda uma avaliação cuidadosa das opções disponíveis e uma corajosa defesa da decisão tomada nessas circunstâncias excepcionais.

8) Indicar as linhas do discurso de posse
            As incertezas tendem a ocupar o espaço político – e estender-se ao terreno econômico – por isso seria recomendável não esperar até o dia da posse para revelar algumas das grandes linhas de atuação da futura administração. Isso ocupa os jornalistas e movimenta as colunas de comentaristas, mas esta não deve ser a principal motivação da nova liderança, e sim o próprio fato de avançar para a sociedade alguns elementos da ação governativa que estará sendo implementada no momento devido. Essas indicações não precisam ser na linha das “rupturas” e “continuidades”, mas podem retomar os pontos principais do novo programa de governo, o que significaria portanto destacar mais os elementos afirmativos da futura ação governamental do que as críticas à herança recebida (ainda que algum “exagero” seja aqui compreensível).
            Uma coisa é certa: deve-se terminar de uma vez por todas com aquelas entrevistas de porta de carro ou de descida de avião, pois microfones agressivos e perguntas confusas raramente resultam em boas exposições de ideias. Não há mais improvisação possível e toda declaração tem uma “massa atômica” específica e um peso político próprio. Por isso, as poucas declarações gerais dadas em caráter coletivo antes da posse deverão aproximar-se o mais possível do próprio discurso de posse, para diminuir as tensões naturais que emergem a partir das grandes transições. Uma vez definida as linhas do novo tipo de consenso tranquilo, deve-se ater a esses elementos conceituais na fase de transição.

9) Estruturar as bases do apoio congressual
            Tarefa gigantesca, por certo, mas não tão difícil quanto parece, pois parece haver um natural adesismo – mais do que oposicionismo de princípio – por parte de toda nova legislatura em situação de inauguração presidencial. As ofertas de colaboração virão dos redutos mais inesperados – alguns até suspeitos, e que caberia descartar sem parecer grosseiro – e o esforço deveria ser feito na direção da preservação da plataforma de ação, mais do que na manutenção das velhas trocas de favores da antiga situação política.
            Ainda aqui caberia ter presente de que o melhor para o Brasil seria não se ter um governo de um partido, ou de uma coalizão, mas um governo nacional que procuraria atuar a partir de suas bases naturais de apoio no Congresso, com ampla latitude de meios e muito pragmatismo, em função mais de resultados efetivos do que de velhas bandeiras ideológicas. Afinal, o novo governo, no executivo ou no legislativo, deve estar primariamente interessado na eficácia de suas ações, não na sua conformidade a qualquer cartilha política do passado. A clareza de propósitos deve servir como elemento de pressão do ponto de vista da opinião pública, que por uma vez estará satisfeita de saber que velhas práticas clientelísticas e fisiológicas da situação anterior não estariam sendo herdadas – ou em todo caso não serão privilegiadas – na nova situação.
            Não custa nada lembrar que teremos um presidencialismo congressual – falou-se anteriormente em semi-parlamentarismo – ou pelo menos uma situação na qual os dois poderes terão de trabalhar conjuntamente, provavelmente mais do que em qualquer outra época da história política brasileira, salvo na do próprio regime parlamentarista de 1961-63 (mas se tratava de uma construção artificial e de mero expediente). Essa situação não é intrinsecamente perversa do ponto de vista da ação administrativa, mas exigirá o abandono de alguns cacoetes do passado, como aquelas situações em que o presidente se dirige “diretamente ao povo”, passando por cima das prerrogativas congressuais.  Melhor ter essa situação muito clara desde o início, inclusive porque o Brasil ganharia em evoluir para um tipo de regime no qual as maiorias presidenciais deixem de se chocar com as maiorias congressuais (uma das maiores fontes de instabilidade política em nossa história).

10) Preparar-se para o pior, manter a mensagem otimista
            Não seria conveniente agitar de público a gravidade da situação econômica, mas o Brasil parece estar atravessando uma dessas conjunturas de turbulência – típicas num passado não tão remoto – nas quais a mudança política e as incertezas administrativas associadas a maiorias divergentes no executivo e no legislativo podem afetar a estabilidade econômica. Em todo caso, qualquer mudança tem um custo, ainda que ele seja simplesmente o da substituição de pessoas e o da descontinuidade temporária da maior parte das atividades administrativas.
            Neste caso específico, a sociedade pretendeu a uma mudança de maior magnitude e ela tem de saber que isso também tem um custo maior, o que geralmente se traduz pela retração geral das atividades econômicas e do investimento produtivo, quando não ocorre o fenômeno do “desinvestimento” e o da fuga de capitais, ainda que para “dentro” do País (mas para fora do sistema bancário oficial). A desconfiança no valor da moeda é o sinal mais claro desse desconforto com a mudança, que não resulta necessariamente da obra de “especuladores” ou outros conspiradores externos. Tudo isso precisa ficar claro para a nova maioria, que não pode perder o sangue frio e sair buscando “bodes expiatórios” e culpados de ocasião. A instabilidade é intrínseca à mudança, não um dado externo importado involuntariamente.
Por isso caberia preparar-se para o pior, isto é, para uma deterioração ainda maior da situação econômica nos próximos meses, ainda que mantendo um discurso otimista – ou moderadamente realista – sobre a superação da presente fase de turbulências. Seria preciso estar pronto a adotar com coragem um conjunto de medidas de distribuição de sacrifícios – pois que é disso que se trata – que será inevitável implementar caso essa hipótese pessimista se confirme. Mais uma vez, unificação do discurso e capacidade de tomada de decisões são os elementos-chave para a superação das turbulências, além, é claro, de se ter uma ideia clara do que se pretende resguardar: se a estabilidade econômica ou se a passagem a um “novo modelo econômico”, que resta largamente indefinido em seus contornos básicos.
            Os verdadeiros líderes se formam na hora da borrasca, não em situações de mares tranquilos, e eles são capazes de infundir tranquilidade em seus liderados mesmo nas horas mais sombrias do panorama político ou econômico de um país. O Brasil não tem nenhuma grande tragédia nacional, graves fontes de instabilidade econômica ou algum manancial de constantes terremotos políticos, mas ele tem uma miríade de pequenas-grandes tragédias sociais que podem ser agravadas em caso de rompimento de alguns consensos básicos. Mais uma vez se adverte: o sentido da ação é nacional, não partidário ou setorial.
            A nova maioria tem todas as condições de realizar uma transição bem sucedida para uma situação de mudanças incrementais em favor de uma nova agenda social, desde que ela não contribua para a erosão da situação econômica ou pretenda modificar por fora e por cima o tecido social. Ações voltadas para os excluídos permitirão construir de modo imperceptível as bases da mudança desejada, mais do que grandes discursos contra os incluídos (aqui compreendidos não só banqueiros e industriais, mas sindicalistas, funcionários públicos e universitários em geral).
As maiores rupturas, na verdade, não são aquelas contra a “velha ordem” – em grande medida já vencida ou pelo menos acomodada à nova situação –, mas contra as antigas formas de pensar e de conceber políticas, que por vezes impedem a incorporação da imaginação criadora ao novo modo de fazer política que agora se pensa implementar.

Paulo Roberto de Almeida
Washington, 969
Esquema: 16 de outubro de 2002
Desenvolvimento: 20/10/2002


Ver os outros trabalhos desta série nas postagens precedentes.

1. Companheiros, muita calma: trata-se agora de não errar!: As consequências econômicas da vitória (ou: manual de economia política para momentos de transição); 22 de setembro de 2002;
2. Administrando as relações econômicas internacionais do Brasil: As consequências econômicas da vitória, 2ª parte; 29 de setembro de 2002;
3. Preparado para o poder?: pense duas vezes antes de agir: As consequências econômicas da vitória, parte 3; 8 de outubro de 2002.

Preparado para o poder?: pense duas vezes antes de agir (3-2002) - Paulo Roberto de Almeida

Terceira parte de minhas recomendações pré-eleitorais. Vejam bem, eu escrevi em 8 de outubro, entre o primeiro e o segundo turno das eleições, e já dava por favas contadas que os companheiros iriam ganhar as eleições. Eles até que começaram bem, mas logo em seguida começaram a roubar desbragadamente, e depois puseram tudo a perder. Não quiseram me ouvir...
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 22/10/2017



Preparado para o poder?: pense duas vezes antes de agir
As conseqüências econômicas da vitória, parte 3
(da série: manual de nova economia política para a fase de transição)

Paulo Roberto de Almeida
(Washington, 8 de outubro de 2002)

Nunca é demais lembrar uma frase sábia de um desses – mil perdões, mas o nome me escapa agora – técnicos de futebol, mais experientes do que diplomados, que não cansava de repetir a seus pupilos: “treino é treino, jogo é jogo”. Pois bem, isso se aplica, mutatis mutandis, à presente conjuntura de transição política, na qual uma velha maioria começa a ser substituída por uma nova, colocando a representação eleita da população em compasso mais afirmado com sua verdadeira maioria sociológica.
O exercício do poder, seja no Executivo, seja na Legislatura ou mesmo nas muitas instâncias estaduais e locais que passaram pelo terremoto da mudança paradigmática, exige uma série de qualidades administrativas que vão além da retórica eleitoral e muito além, isso também parece claro, das simulações mais ou menos impressionistas que são feitas nos programas de campanha e mesmo nas diretrizes programáticas para “uma nova realidade”. Como deve ser evidente a qualquer pessoa medianamente instruída, não basta proclamar que “um outro mundo é possível”, que “uma outra América idem” ou que “as mudanças estão ao alcance da mão”, para que esse mesmo mundo, como num passe de mágica, bata à porta no dia seguinte ao da posse. O papel aceita tudo, microfones idem, mas a realidade, esta é um pouquinho mais teimosa e renitente em se dobrar à nova vontade de poder das maiorias recém assumidas.
Em primeiro lugar, existe a inércia natural dos grandes corpos paquidérmicos, como podem ser as burocracias estatais e suas legiões de funcionários e suas selvas de regulamentos – e leis, não esquecer – que tornam difícil implementar, num estalar de dedos, a famosa ruptura prometida. Geralmente se tem de avançar aos poucos, segundo o ritmo da representação parlamentar, que ainda permanece a instância regulatória por excelência em democracias.
Em segundo lugar, surge como obstáculo a proverbial falta de meios, uma vez que orçamentos são limitados e as necessidades são incomensuráveis, sobretudo em direção daqueles que mais necessitam. Aqui também os grandes projetos e os brilhantes ideais têm de se ajustar à realidade dos números, a menos que se queira financiar o programa anunciado pela via inflacionária, o que é sempre possível mas não recomendável, em vista da experiência histórica brasileira e seus efeitos sobre aqueles, justamente, que se pensa poupar dos aspectos mais dolorosos do novo “ajuste social e político”.
Em terceiro e mais importante lugar, se situa, não algum problema operacional qualquer, mas mais propriamente uma atitude, uma visão do mundo, uma determinada concepção de como devem ser conduzidos os “negócios públicos”, que um filósofo da USP chamaria de Weltanschauung da nova maioria. Creio, pessoalmente, que esta dimensão é mais importante até do que as duas primeiras, que parecem ser meramente instrumentais, ou pelo menos dependentes de “arranjos técnicos” na máquina do Estado, seja no plano institucional-burocrático, seja no dos recursos financeiros. Antes de transformar o mundo, como proclama, de maneira otimista, a décima-primeira tese sobre Feuerbach, seria preciso, pelo menos, interpretá-lo corretamente, o que nem sempre está garantido nos velhos manuais de economia política.
Por isso, tenho esforçado-me, nesta série sobre as “conseqüências econômicas da vitória” – ver as duas anteriores em minha página, acima indicada, a partir de “Trabalhos Originais”, ou outros textos do mesmo tipo, como “Dez coisas…” e “Carta aberta…” –, por chamar a atenção para aspectos não convencionais do pensamento econômico tido como mainstream na oposição de esquerda (agora bem menos oposição e menos ainda de esquerda, mas isso não importa agora). O manual para uma nova economia política deveria, a partir de agora, cobrir aspectos da “economia doméstica” – depois das considerações sobre a dimensão internacional ou macroeconômica da nova realidade, mas talvez seja o caso, antes de focar a problemática social, de deter-se um pouco na questão da “visão do mundo” da nova maioria, pois ela pode ser reveladora de uma maneira de pensar cujas conseqüências “governativas” devem ser avaliadas com calma e lucidez, para evitar surpresas mais adiante.
Como a luta política – de forma algo similar à estratégia militar – se organiza usualmente em termos de aliados e opositores, de amigos e inimigos, e como a passagem de uma situação de oposição à condição de Poder implica uma mudança fundamental na forma de organização dessas alianças – algumas táticas, outras estratégicas –, caberia agora pensar nessas relações de amizade e tratar de distinguir, um pouco mais claramente o que, efetivamente, conta para um bem sucedido exercício desse poder e o que pode acarretar impasses institucionais, econômicos ou diplomáticos.
Como os velhos hábitos são duros na queda, a única recomendação de caráter geral que eu faria seria essa que figura no título: “pense duas vezes antes de agir”, pois velhos aliados e antigas inimizades podem revelar qualidades surpreendentes, no sentido exatamente oposto ao que se pensava antes de assumir o poder. No mais, vou alinhar sem ordem de prioridade alguns desses surpreendentes novos amigos e velhos inimigos, ou vice versa, num exercício de puro “contrarianismo”. Assumo toda responsabilidade pela heterodoxia, mas ela é feita em toda boa fé, pensando no melhor desempenho possível na nova situação de poder.

1) O sindicalista amigo: salário e empregos na corda bamba
Do setor privado ou do público –aqui com maior estridência –, a função legítima do dirigente sindical é defender os interesses dos seus liderados, a começar pela manutenção e recomposição do poder de compra dos salários da categoria. Por isso não há surpresa em constatar que representantes do funcionalismo público federal já estão reivindicando do novo poder a reposição das “perdas salariais” – por eles avaliadas em 89% – acumuladas no regime do neoliberalismo. Como advertido por um desses amigos do movimento sindical, “não haverá pacto de tolerância”. A solução está posta: “Ele (o novo presidente) vai ter que optar. Há recursos, é só não acatar a política do FMI e parar de pagar a dívida externa”.
Simples não? Antigas amizades às vezes custam caro para manter, como alguns casamentos de fachada, preservados com presentes caros e sorrisos amarelos. Mas, isto é apenas no plano puramente salarial. Existe ainda a questão vastamente mais complexa da criação de novos empregos e da preservação dos antigos, com ou sem subsídios para criar ou reconverter empregos eliminados pela destruição criadora da modernização capitalista. Como todos sabem, até os próprios interessados, os sindicatos não são feitos para criar empregos (salvo alguns poucos na própria sede), mas para preservar os existentes, ou seja, eles atuam em direção dos já incluídos, não em favor dos milhões de excluídos que constituem o problema mais gritante do Brasil atual. As normas demandadas pelos sindicatos redundam, em grande medida, na diminuição das chances de empregabilidade dos excluídos, que não conseguem encontrar pessoas ou empresas dispostas a contratá-los nas condições fixadas pelos já incluídos. Já não é tão simples, não é mesmo? Por isso, da próxima vez que encontrar um sindicalista amigo, lembre-se: pense duas vezes!

2) José Bové e outros socialistas bovinos de la campagne française: gordos subsídios
Você sabia que as vacas européias têm uma renda per capita superior à renda média dos brasileiros? Você sabia que, no mesmo continente, existem porcos milionários, com contas em banco, ficha de identidade e cartão de crédito? Você sabia que tomates podem ser lavados com champagne, tão ricos são os fluxos de subsídios que fluem como cornucópia, literalmente, para os bolsos desses paysans bigodudos que vêm nos dar lições sobre como melhor organizar nossa agricultura e lutar contra as sementes geneticamente modificadas das multinacionais americanas? Se não sabia, você ainda não conhece nada da “Loucura Agrícola Européia”, a política comum que resulta em gordos subsídios para um punhado de privilegiados e concorrência desleal para os pobres agricultores do Terceiro Mundo. Por isso, quando receber novamente essa personagem inusitada – talvez para a cerimônia de posse – pense duas vezes: evite tapinhas nas costas e sobretudo não combine ações conjuntas contra os subvencionistas americanos.
Esqueça aquela coisa antiga de que subsídio interno, à produção, é permitido ou mesmo recomendável, e que os únicos prejudiciais aos interesses dos exportadores não subvencionistas são as subvenções às exportações. Exatamente o contrário: o apoio às exportações é o aspecto menos importante, e menos danoso, das tremendas distorções que caracterizam hoje os mercados agrícolas mundiais. O que faz mal mesmo aos nossos agricultores são as medidas de apoio interno, pois elas vêm acopladas a restrições de todo tipo – protecionismo tarifário e não tarifário – e provocam depressão nos preços mundiais e acumulação de estoques que depois serão “descarregados” nos países pobres, tornando inviável qualquer progresso econômico e anulando completamente a famosa ajuda ao desenvolvimento que esses “humanistas” pretendem ostentar hipocritamente.
Não precisa pensar duas vezes, aliás: o agricultor europeu e os subvencionistas de todo tipo no hemisfério setentrional são inimigos absolutos dos agricultores brasileiros, em primeiro lugar dos pequenos agricultores familiares preferidos da nova maioria.

3) Consenso de Washington, imposições do FMI e Wall Street: distância deles?
Certamente, mas não pelas razões que usualmente são aventadas em determinados arraiais. Nunca é bom depender do dinheiro dos outros, sobretudo quando esse dinheiro vem com condições estritas de utilização e com uma “receita médica” que faz do regime de emagrecimento condição indispensável para a retomada da saúde econômica. Mas, pense duas vezes: você teve de ir ao FMI por causa do “consenso de Washington” ou por que dependeu demais dos “rapazes de Wall Street”? Já pensou que as regras do famoso “consenso de Washington” não são exatamente um conjunto de prescrições de política econômica “normal” mas, bem mais simplesmente, uma série de medidas que devem ser consideradas apenas como receitas para um ajuste bem-sucedido, depois de alguns anos de embriaguez econômica? Pois foi exatamente com esse espírito que essas regras foram concebidas pelo seu autor – aliás um amigo do Brasil, embora ele estivesse pensando mais no Chile e no México –, mais como instrumentos de política, do que como um conjunto de objetivos ou resultados que devam ser elevados à categoria de dogma.
Por isso, esqueça todas as bobagens que você ouviu sobre o famoso – e muito mal conhecido – consenso e estude rigorosamente (se possível sem paixão) suas prescrições, pois elas podem ser úteis para a continuidade do processo de ajuste de que certamente necessita a economia brasileira. Se isto não fosse verdade, por que, justamente, temos de fazer tanto apelo ao dinheiro de Wall Street e depois buscar socorro nos pacotes de ajuda financeira do FMI? Já pensou que o FMI pode ser o seu amigo das horas amargas? E que os inimigos podem ser aqueles que recomendam “ruptura com o sistema financeiro internacional” em nome de não se sabe qual alternativa de financiamento duradouro?
Sabe qual é a alternativa à imposição de regras vindas de fora? A auto-assunção de regras de boa gestão macroeconômica no plano doméstico, tornar-se independente da poupança externa – o que significa o aumento da poupança interna – e o rompimento com as práticas nefastas dos desequilíbrios orçamentários, dos déficits fiscais e de balanço de transações correntes. Mais fácil dizer do que fazer, não é mesmo? Mas o consenso de Washington foi feito para isso mesmo: para oferecer um guia simples e prático de regras claras e diretas em favor da responsabilidade administrativa na gestão da “coisa pública” em sua vertente econômica. Os verdadeiros inimigos são os opositores dessas regras.

4) Anti-naftalinos, anti-alcalinos e anti-globalizadores em geral: muy amigos?
Lembra-se de quando os anti-naftalinos, em suas ruidosas manifestações de dez anos atrás, prometiam as piores catástrofes econômicas a partir da implantação do acordo de livre-comércio da América do Norte, com uma sucessão inevitável de desastres sociais só comparável às sete pragas do antigo Egito? Pois bem: o que houve depois disso? Nada, rigorosamente nada. Ou melhor: os efeitos para a economia dos EUA não foram aquele imenso “sorvedouro de empregos” antecipado por Ross Perot, se tanto um crescimento modesto das ocupações associadas ao Nafta e um aumento significativo das exportações desse país para o México. O Canadá também se deu muito bem, com um aumento ainda maior dos volumes de comércio global com seus dois parceiros meridionais e uma ligeira diminuição da dependência exclusiva do Big Brother.
E o México, sobreviveu ao novo colonialismo comercial? Bem, logo depois de aprovado o acordo ele entrou em crise, teve sua moeda desvalorizada em quase 100%, foi socorrido por um pacote de 48 bilhões de dólares liderado pelos EUA, seus nacionais tiveram uma redução brutal no seu poder de compra e outras conseqüências igualmente indesejáveis, mas nada disso tem algo a ver com o Nafta, muito pelo contrário. O Nafta foi, no cômputo global, bastante positivo para o México, com um aumento da oferta de empregos – e o aumento de renda associado –, a expansão exponencial do investimento direto estrangeiro e o crescimento ainda maior das exportações (ainda que aumentando a dependência do Big Brother). Com uma economia que, em termos reais, é inferior em 10 a 15% à economia brasileira, o México exporta três vezes mais, o que faz muito bem à sua saúde econômica, e à de seu balanço de pagamentos. Os desastres anunciados por sindicalistas, ecologistas, zapatistas e outros “istas” mais bizarros não ocorreram, ou então seus efeitos sociais foram minimizados pelo aumento geral do nível de atividades econômicas permitido pelo Nafta. Não acredita?: pergunte a algum economista mexicano não comprometido com qualquer um daqueles grupos anti-naftalinos (por ideologia, pois eles não podiam ter estudos de impacto quando começaram a se mobilizar, ainda numa fase precoce, contra o acordo).
Depois da luta contra o Nafta, e dos protestos contra o MAI-OCDE (cujas negociações esses grupos até hoje acreditam que conseguiram “interromper”, esquecendo o oportunismo francês na questão da “exceção cultural” e outras desavenças entre os próprios países membros), a ênfase se deslocou para a taxação contra os movimentos financeiros internacionais, com os mesmos grupos criando uma singular ação em favor da “Tobin Tax” que o próprio economista patronímico teve de recusar como representando suas idéias ou motivações originais. A intenção em todo caso era a de colocar um “grão de areia” na engrenagem dos capitais voláteis, acusados dos piores desastres financeiros dos anos 90 (e além), o que por acaso materializou-se em vários grãos de areia, não contra os capitais voláteis, mas contra todas as reuniões dos organismos econômicos internacionais desde então.
A promessa de modelos alternativos conduzindo a “um outro mundo possível” revelou-se até agora impossível, e de fato ainda não se materializaram políticas de ruptura em relação ao capitalismo realmente existente, razão pela qual ocorreu uma reciclagem permanente desses grupos em manifestações de protesto que trouxeram mais transpiração do que inspiração, apesar da criação de uma nova instância de reflexão – o Foro Social Mundial – que fez mais pelo turismo alternativo do que pelo esclarecimento de questões reais da economia mundial.
A pergunta relevante é, contudo, esta aqui: as ações e políticas propostas pelos militantes da ATTAC e por suas várias derivações anti-alcalinas e anti-globalizadoras são benéficas à economia brasileira e correspondem aos interesses do País? Ou, na nossa terminologia maniqueista, eles são amigos ou inimigos das causas nacionais? Visto pelo lado da Tobin Tax, por exemplo, sua introdução seria claramente contrária às atuais necessidades de capitais, voláteis ou não, que o Brasil se vê, voluntariamente ou não, obrigado a buscar no exterior. Seu efeito mais visível seria o de aumentar o custo desses empréstimos, sem outros resultados positivos para a economia nacional.
No plano mais geral do comércio internacional, ou no da formação de um bloco hemisférico de liberalização comercial, a ação desses movimentos se ajusta perfeitamente à estratégia dos sindicalistas do Norte de bloquear o processo de deslocalização produtiva que seria operado pelas multinacionais desses países em direção das regiões a baixos salários, entre as quais se encontra supostamente o Brasil. O que se vê, portanto, são sindicalistas do Sul, e outros militantes ingênuos, fazendo o trabalho “sujo” para seus colegas do Norte no sentido de impedir que a transferência de empregos se faça. Muy amigos, pois não? Pense três vezes da próxima vez que encontrar um anti-alcalino.

5) A boa e velha burguesia nacional: aliada contra o imperialismo?
Nos tempos do Partidão, a burguesia nacional era um aliado indispensável na luta contra o latifúndio e o imperialismo, mas o incômodo da história era o fato de que ela nunca se conformou a essa papel progressista e nunca soube desempenhar a contento sua “missão histórica” de criar um sistema capitalista nacional em bases autônomas, livre da dominação imperialista e não subordinado às velhas oligarquias políticas. Que aliada mais traidora e relapsa em relação aos “verdadeiros interesses nacionais”!
Depois disso tivemos golpes militares, alinhamentos ao poder imperial, caminhos alternativos de desenvolvimento – com “planejamento industrial” – e um grau razoável de promiscuidade entre a burguesia, o capital estrangeiro e o Estado “empreendedor”. Sem dúvida o Brasil criou uma base industrial respeitável na comparação com qualquer outro país emergente – ainda que tenha persistido na dependência tecnológica – mas ele não conseguiu resolver os mais comezinhos problemas de integração social dos estratos mais humildes da população ou equacionar a iniquidade “africana” da distribuição da renda. Alguma relação entre esse estilo de desenvolvimento e o modelo concentrador? Aparentemente sim, pois a situação apenas se alterou, ligeiramente, quando o Estado deixou de ser tão “empreendedor” e a burguesia gozou de menor proteção tarifária e vitaminas fiscais como tinha ocorrido na fase do “milagre econômico” e depois.
Hoje em dia, novas propostas de “política industrial” são formuladas para serem postas em vigor com a nova maioria, geralmente baseadas nos estímulos fiscais, em algum grau de proteção “seletiva” e vários incentivos para investimento em “ciência e tecnologia”. Pensando ainda em termos de amigos-inimigos: a burguesia aprova sua filosofia de governo ou é apenas amiga dos seus recursos orçamentários, o seu, o meu, o nosso dinheiro? Pense duas vezes antes de responder a esta questão e pergunte uma vez mais se sua intenção é realmente a de distribuir dinheiro para quem já é rico.
Se for para lutar contra a Alca, alguns setores dessa burguesia vão efetivamente se mobilizar, mas não pensando necessariamente no interesse nacional como um todo, mas em seu próprio desejo setorial de escapar à concorrência menos que perfeita de empresas estrangeiras mais agressivas. Será bom para o País construir, uma vez mais, fortalezas tarifárias e muralhas protecionistas para não ter de enfrentar a realidade da globalização?

Estes constituem apenas cinco pontos neste exercício de “think again”, que podem ser relevantes para a construção de uma “economia política” da nova maioria, lembrando que existem vários outros pontos que confrontam a lógica convencional dos esquemas dicotômicos amigos-inimigos, que nem sempre estão do lado em que se pensa poder encontrá-los. Este é um dado imanente às realidades complexas de nossa época, que faz com que “tudo o que era sólido se desmanche no ar” e que antigas posições progressistas se convertam rapidamente em combates de retaguarda, quando não em defesa reacionária de velhas posições ultrapassadas pelas novas tendências da economia global.
Construir uma defesa consistente dos interesses sociais da maioria da população nem sempre significa aplicar as receitas de uma outra época, quando “forças produtivas” e “relações de produção” pareciam apontar numa determinada direção: dirigista, estatal, protecionista, nacionalizante (no sentido estreito), ou simplesmente intervencionista. Pode também querer dizer integração produtiva, concorrência ampliada, investimento sobretudo em educação universal de crianças pobres, antes do que em “indústrias estratégicas” ou transferência de renda para elites universitárias. Podendo dar para todo mundo, excelente. Não podendo, selecione cuidadosamente os beneficiários de suas políticas de transferência de renda. Na dúvida, pense duas vezes.

Paulo Roberto de Almeida

Washington, 957: 8 de outubro de 2002

P.S.: Nada a ver aqui com a vertente econômica deste manual, mas apenas uma derivação do princípio das alianças com os “inimigos do meu inimigo” para fins de vitória eleitoral. A nova maioria chegou a ser o que é inclusive, e talvez principalmente, pela aplicação de um conjunto de regras éticas que sempre a diferenciaram dos tradicionais participantes do jogo político, e muito menos pela eficiência econômica (altamente discutível) de suas propostas políticas. Pense nisso também na hora de fazer novas alianças.

Ver os dois artigos anteriores desta série:
1) “Companheiros, muita calma: trata-se agora de não errar!: As conseqüências econômicas da vitória (ou: manual de economia política para momentos de transição)”, Washington, 22 setembro 2002, 11 pp. Disponível no blog Diplomatizzando: https://diplomatizzando.blogspot.com.br/2017/10/companheiros-muita-calma-trata-se-agora.html
2) “Administrando as relações econômicas internacionais do Brasil: As conseqüências econômicas da vitória, 2ª parte (da série: manual de economia política para momentos de transição)”, Washington, 29 setembro 2002, 11 pp. Disponível no link: https://diplomatizzando.blogspot.com.br/2017/10/consequencias-economicas-da-vitoria-do.html.

Consequencias economicas da vitoria do PT (2002) - Paulo Roberto de Almeida

Continuando em meus exercícios pedagógicos para instruir os companheiros nas artes da governança, eu formulava no artigo abaixo, um segunda série de recomendações, que encontrava importantes para um bom exercício do poder.
Eu ainda achava -- que ingênuo eu era -- que eles eram educáveis, flexíveis, e que iriam exercer o poder de acordo com o que pregavam em seus textos pré-eleitorais. Eu sabia que entre eles havia bandidos, como em qualquer partido, só não imaginava que seriam tantos, e em tão alto grau de desfaçatez no roubo, na fraude, na falcatrua. Mas isso só deu para perceber quando começaram a mentir deslavadamente logo depois de terem assegurado a vitória, quando também passaram a abusar das facilidades do poder em causa própria. O resto é história.
Mas, naquela altura – e estou falando aqui de 29 de setembro, ou seja, antes mesmo das eleições – eu pensava que eles poderiam ser educados...
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 22/10/2017


Administrando as relações econômicas internacionais do Brasil:
As conseqüências econômicas da vitória, 2ª parte
(da série: manual de economia política para momentos de transição)

Paulo Roberto de Almeida



Introdução: os grandes temas de “economia internacional” da nova maioria

Depois de ter divulgado o primeiro artigo desta série, apropriadamente intitulado “Companheiros, muita calma: trata-se agora de não errar!” (ver postagem anterior), no qual eu discorro sobre o novo centro político que está se formando no Brasil a partir da transição operada na campanha eleitoral presidencial, com algumas recomendações de política econômica pela vertente teórica ou conceitual, pretendo, neste segundo ensaio, abordar algumas questões práticas da “economia política externa” com as quais terá de se haver a nova maioria política. A justificativa é a de que elas são as mais suscetíveis de introduzir elementos de turbulência na gestão macroeconômica do País, que passa a estar sob a responsabilidade do novo centro, uma vez que essas questões já foram responsáveis, como se sabe, por toda uma série de tremores e suores frios nos mercados cambial e de títulos da dívida externa durante a maior parte da campanha presidencial.
Quais seriam os temas que integrariam um manual de economia internacional capaz de atender às necessidades da fase de transição a uma “nova economia política”? Eles seriam resumidamente os seguintes:
1. Desequilíbrios das transações correntes (“exportar é a solução?”);
2. Dívida externa (e suas relações com a dívida pública interna);
3. Regime cambial e paridade do real (“Chamem um operador experiente!”);
4. Controles de capital (e outros remédios amargos);
5. Relações com o FMI e pacotes de ajuda financeira (consenso sobre o dissenso);
6. Mercosul, Alca e OMC (malabarismos subregionais, hemisférico e multilateral);
7. Relações econômicas e políticas com o Império (não tem como escapar);
8. Investidores estrangeiros, especuladores internacionais et caterva (“Hello boys”);
9. Outros assuntos pertinentes (inclusive o valor de troca dos economistas da casa).

A bibliografia disponível sobre um possível bridge-building conceitual entre a nova síntese neoclássica e a “velha” teoria do valor (iniciada por Adam Smith, retomada por Ricardo e continuada por outros nomes mais famosos) não é muito extensa, razão pela qual seremos obrigados a operar sem notas de rodapé, o que em contrapartida facilita muito a leitura. Por outro lado, as bases conceituais da economia política do novo centro político estão obviamente mais perto do pensamento prebischiano e furtadiano do que do lado da teoria clássica do comércio internacional ou mesmo da nova teoria do comércio estratégico. Para o primeiro, que tende a se opor à globalização na medida em que ela ameaça as bases da soberania econômica nacional, o importante é romper a dependência por meio de um projeto de desenvolvimento econômico que garanta fontes autônomas de acumulação, em bases nacionais, ao passo que a segunda não apenas aceita como também recomenda a interdependência ativa, como forma de se lograr patamares mais elevados de avanço tecnológico. Nos últimos tempos, contudo, a “nova economia política” tem aceito algum tipo de composição com a abordagem liberal, muito embora ela ainda tenha dificuldades em admitir certas implicações práticas dos (sempre erráticos, por definição especulativos) movimentos financeiros internacionais ou as conseqüências indesejadas do livre-comércio. A “coexistência pacífica” tem porém avançado, lenta mas resolutamente.

1. Desequilíbrios das transações correntes (“exportar é a solução?”):
Trata-se de conhecido calcanhar de Aquiles da economia brasileira, desde que ela se organizou na era independente, sendo apenas compensados pelos saldos comerciais, o que estava difícil de se obter nos primeiros cinco ou seis anos de gestão neoliberal da economia, que permitiu a valorização cambial e abriu indiscriminadamente as portas às importações. A solução lógica é o aumento contínuo das exportações, algo bem mais consensual hoje em dia, mas que se chocava com uma antiga crença nas virtudes liberadoras do mercado interno.
Com efeito, há não muito tempo atrás os economistas chefes do novo centro proclamavam, com o aval da principal liderança, as “diretrizes” da “ruptura econômica”, que deveria ocorrer em vários níveis, entre eles a “inversão das prioridades da política econômica” e a “mudança do padrão de crescimento”, cujo núcleo dinâmico passaria a ser: ampliação do mercado interno, redistribuição da renda e substituição de importações, muito embora também se previsse um incentivo dirigido às exportações. Atualmente não se faz muita distinção entre mercado interno e externo, mas ainda subsiste o preconceito mercantilista contra as importações. Uma das soluções não precisaria tanto passar pela eliminação completa dos déficits de transações correntes, mas deve-se encontrar formas de financiá-los sem sobrecarregar demasiado a conta de capitais. Ademais da solução óbvia do aumento das exportações, uma das receitas recomendadas pelos economistas liberais seria aumentar a atratividade para os investimentos diretos, algo ainda não totalmente consensual na nova maioria, por duas razões muito simples: a sobrecarga futura sob forma de remessas relativas aos rendimentos do capital e uma desconfiança de princípio do capitalista estrangeiro (ele seria bem vindo, desde que aceitasse certos compromissos de desempenho ou atuasse em áreas selecionadas administrativamente como as mais benéficas do ponto de vista do governo, não do próprio capitalista).
Agora que a nova maioria assume o comando da economia que tal começar pela aprovação dos acordos de proteção e promoção recíproca de investimentos? Eles estão mofando há quase dez anos no Congresso porque incluem também ativos financeiros e porque ainda se acredita que cláusulas de arbitragem são lesivas à “justiça nacional”.

2. Dívida externa (e suas relações com a dívida pública interna):
O problema está mais na geração de divisas para o seu serviço – quase metade das exportações – do que na sua magnitude, pois se reconhece que a dívida externa é hoje em dia majoritariamente privada (a despeito do crescimento da dívida interna indexada em dólar). Em todo caso, parecem longe os dias da moratória soberana, da renegociação unilateral ou mesmo da auditoria dos contratos, tendo sido contudo proclamado o ponto central da redução da fragilidade financeira externa. Não há muito consenso sobre como fazê-lo, além do ponto óbvio da redução da demanda por empréstimos externos, mas essa questão também está ligada aos níveis internos dos juros, o que se constitui em outro aspecto, necessariamente mais complexo, da mesma realidade.
O Estado é um “despoupador” líquido, daí a necessidade de superávits primários, que quanto maiores, menor pressão sobre a taxa de juros provocará, mas os economistas do novo centro continuam proclamando a necessidade de se reduzir os patamares desses superávits, como forma de aumentar os investimentos e os gastos sociais, o que atua obviamente contra a redução dos juros e a diminuição da pressão sobre o real, cuja paridade está bastante ligada à crença (ou à suspeita) em torno da capacidade do governo em honrar os pagamentos da dívida externa. A boa notícia do ponto de vista prático está na aceitação da intangibilidade dos contratos externos e na assunção da responsabilidade fiscal como norma de administração pública, o que certamente contribuirá para a gradual superação desse nó financeiro e monetário em médio prazo.
Notável aqui como as antigas divergências de enfoque no tratamento da questão das dívidas deram lugar a um razoável consenso conceitual e prático sobre o “que fazer”. O aspecto bizarro é continuarem os economistas do novo centro achando que o governo argentino ficou aplicando políticas neoliberais durante todo o período, esquecendo-se eles que ele nunca conseguiu cumprir com o requisito mínimo, até recomendado pelo FMI, de redução dos déficits públicos. As diatribes ainda remanescentes sobre o pagamento de juros altos aos banqueiros devem ser debitadas à preservação de velhos cacoetes verbais.

3. Regime cambial e paridade do real (“Chamem um operador experiente!”):
A condenação da valorização cambial é absoluta, com toques de vingança pessoal e proclamações do tipo “nós cansamos de avisar” (o que economistas de direita também fizeram). O estruturalismo e a esquerda, de modo geral, sempre encontraram virtudes no modelo de desvalorização cambial, algo aliás recomendado pelo FMI em 99% dos casos de ajuste macroeconômico desde 1973. Se esquece, por outro lado, como o expediente deixa a todos mais pobres e diminui a pressão por ganhos de competitividade no setor produtivo. Todo mundo está portanto de acordo com a flutuação “suja” hoje praticada.
Caberia deixar o passado em paz e tentar olhar para o futuro, isto é, um naquele em que o real conseguisse não apenas sobreviver saudavelmente como moeda nacional independente, como constituir-se também em base da futura moeda comum do Mercosul, como proclamam os integracionistas mais afoitos do novo centro (esquecendo-se, por certo, da tremenda renúncia de soberania econômica e política que isso implica). Para que isso se faça, seria interessante assegurar que o objetivo principal do Banco Central seja a defesa da moeda (isto é, a luta contra a inflação), não a perseguição do pleno emprego ou outros objetivos ainda mais esdrúxulos (como a “taxa de desconforto” trabalhista).
Que tal começar por dar independência ao Banco Central e constituir um comitê de política monetária mais amplo e realmente independente? Quem se dá ao trabalho de ler as minutas das reuniões do Copom sabe como a política de metas de inflação constitui uma aproximação bastante razoável daquele objetivo primordial. A tentativa de fazer o Banco Central cumprir outras finalidades que não essa, basicamente, resultará, a médio e longo prazo, no enfraquecimento da moeda nacional e, com Alca ou sem Alca, na ameaça continuada de dolarização em algum ponto do futuro. 

4. Controles de capital (e outros remédios amargos):
Alguns economistas de esquerda falam de controles de capital com um sorriso nos lábios, quase com uma secreta satisfação de estarem “punindo” capitalistas fraudadores, especuladores estrangeiros e outros sócios da “volatilidade”. Existem obviamente vários tipos de controles, e o menos pernicioso deles – na entrada, por meio de quarentena ou imposto parcial – já foi aplicado pelo Brasil em fases mais receptivas de ingresso de capitais. Na verdade, o que aqueles economistas estão pensando são em controles na saída, o que apenas contribuiria para a volta do mercado negro, ágio cambial e corrupção, sub ou superfaturamento no comércio exterior e outras mazelas associadas.
Há uma imensa dificuldade do pensamento dito estruturalista em reconhecer as virtudes da livre movimentação de capitais (barateamento do custo do capital, rápida mobilização de recursos em momentos de necessidade etc.), como se o mundo tivesse vivido desde sempre em tempos keynesianos (cujas recomendações, se esquece, foram concebidas para uma Inglaterra decadente e carente de divisas). A oposição parece ser mais de caráter ideológico do que de ordem prática, pois é possível combinar a abertura cuidadosa do setor financeiro com o levantamento progressivo das últimas restrições à movimentação dos capitais, objetivo de toda forma dependente de uma superação mais permanente dos problemas crônicos de transações correntes.
Existe, por outro lado, uma adesão quase universal, nesses meios, à Taxa Tobin, proclamada como a “grande receita” contra a volatilidade (até por altas personalidades da administração “neoliberal”), sem que se reconheça seus efeitos essencialmente nefastos para países como o Brasil, que continuarão a ser, durante algum tempo, importadores líquidos de capitais financeiros. Essa adesão incondicional a algumas idéias progressistas que vêm de fora do País – e que se repete igualmente no caso da Alca – revela talvez a preservação de um certo colonialismo conceitual, que impede nossos “progressistas” de pensarem com suas próprias cabeças nas melhores soluções para o País, a partir de uma perspectiva do Sul, não daquela comandada pelos interesses de sindicalistas do Norte.

5. Relações com o FMI e pacotes de ajuda financeira (consenso sobre o dissenso):
A situação está “maravilhosa”, comparando com a demonização do FMI que se fazia ainda bem recentemente, com xingamentos e slogans substituindo uma reflexão ponderada sobre o que pode e não pode fazer o FMI em prol da saúde financeira do Brasil. Independentemente de como negociará o futuro governo – de pé ou sentado –, o fato é que tornou-se possível aceitar alguns parâmetros básicos desse relacionamento feito de amor e ódio durante boa parte dos últimos 50 anos. Em todo caso, é bom que se saiba que a era dos grandes pacotes de ajuda financeira está chegando ao fim e nem sempre será possível ao Brasil esperar salvamento em qualquer circunstância, inclusive porque a tolerância dos governos dos países ricos com países emergentes está ficando menor (e as operações para eles tenderão a ficar mais caras).
Uma coisa é certa: a política de condicionalidades deve continuar, mas se o novo centro tiver objeções ideológicas contra esse tipo de “imposição”, a solução é muito simples e está ao alcance de qualquer um. Basta não entrar em acordo com o FMI e pagar tudo o que se deve do pacote anterior. Como regra de princípio, o FMI e o BIRD acatam totalmente a soberania econômica e política dos países membros. O mais importante no relacionamento com o FMI não é contudo o dinheiro que ele pode emprestar (ainda que este possa ser bem-vindo em determinadas circunstâncias), mas sim o aval a um conjunto de políticas e a transparência que ele assegura em relação às contas públicas, hoje em dia um requisito indispensável a qualquer país que pretenda participar dos mercados de créditos comerciais e de financiamentos de curto prazo. Esse tipo de chancela parece ter sido compreendida muito bem pelos “novos economistas”, ou será que não?

6. Mercosul, Alca e OMC (malabarismos subregionais, hemisférico e multilateral):
O terreno das políticas comerciais e das diferentes estratégias de negociação nos foros comerciais é aquele no qual a esquizofrenia econômica parece mais freqüente e disseminada, provavelmente por falta de (in)formação suficiente sobre o modo de funcionamento da OMC, sobre as implicações da Alca para a economia brasileira (e por uma visão ideológica desta última, como revelado pela “teoria anexacionista”) e em virtude de uma avaliação otimista dos méritos do Mercosul e seu papel em determinadas negociações (com a UE, por exemplo, vista de forma positiva em relação à Alca não se sabe bem em função de quais resultados esperados). Não é um campo no qual se possa recomendar um curso rápido de políticas comerciais – tanto porque a leitura de algum manual sobre o GATT eqüivale a tortura psicológica, melhor valendo freqüentar suas sessões –, mas pode-se exigir mais atenção aos documentos negociadores e bem menos aos daqueles grupos anti-globalizadores e anti-alcalinos que vivem repetindo bobagens sem sentido por puro espírito anti-capitalista e anti-imperialista (o que até é admissível, como brincadeirinha de jovens e discurso em assembléia da UNE, mas não em funções de responsabilidade num governo dotado de uma diplomacia respeitada).
O abismo que ainda existe entre economistas da “situação” e da “oposição” (deve haver inversão, dentro em breve) só vai ser preenchido na prática das negociações, o que implica alguma preparação técnica muito séria no plano interno. Em todo caso, como ocorreu com o FMI, a demonização da Alca não vai ajudar em nada o Brasil, cabendo sim defender de forma conseqüente nossos interesses e deixar o pessoal anti-alcalino gritando nas ruas. Uma coisa é certa: estes últimos estão fazendo o trabalho sujo para os sindicalistas americanos e os congressistas protecionistas, que não querem a Alca, assim como não queriam o Nafta. Algum sindicalista brasileiro é, por acaso, contrário à captura de empregos do Norte?: teria de dizer isso claramente para a nova maioria política. No mais, nossos problemas são mais de ordem interna – juros, capital, infra-estrutura, cultura exportadora – do que de ordem externa, ainda que não seja fácil equacionar alguns deles, a reforma tributária, por exemplo. Mas, quem sabe a Alca não consegue fazer aquilo que a classe política e os empresários não logram obter a despeito de tanta vontade retórica?
Quanto ao Mercosul, caberia também colocá-lo em sua dimensão própria, nem mais, nem menos do que ele pode razoavelmente, nas condições que são dadas, cumprir em favor da economia brasileira. Transformá-lo em “laboratório de experiências sociais” ou em escalão avançado de uma “mercocracia comunitária” não vai ajudar em nada na resolução de nossos atuais problemas de estabilidade macroeconômica – que são de todos os países membros – e pode até terminar por desacreditá-lo internacionalmente. Trata-se de um projeto relevante, talvez até mais diplomaticamente do que economicamente, e o Brasil deveria propor as bases de sua restruturação, com muito realismo e bom senso.

7. Relações econômicas e políticas com o Império (não tem como escapar):
Como diria Jean-Paul Sartre em relação ao marxismo, trata-se do “horizonte insuperável de nossa época”. Melhor assim encontrar os termos de uma boa convivência, respeitosa e respeitadora das soberanias e diferenças, do que insistir em se proclamar “do contra”. Quem pode ser do contra é o próprio Império, que tem condições de sustentar suas posições contra tudo e contra todos. Países fragilizados como o Brasil têm de ser a favor de alguma coisa, geralmente das soluções multilaterais, que já foram apontadas como a “arma dos mais fracos”. Que seja: não há como não continuar proclamando o princípio da igualdade soberana dos estados e de continuar exigindo o predomínio do direito internacional, mas no plano da diplomacia prática é preciso encontrar alguma forma de convivência com esse Big Brother incômodo e arrogante. De uma certa forma, ele também cumpre o seu papel histórico, que é o de garantir a segurança internacional, ainda que seja bastante desatento às preocupações de desenvolvimento de uma imensa maioria de países. Excluindo o mito da “relação especial” ou o da “divisão do trabalho”, não há muito o que se possa fazer para compor uma agenda bilateral minimamente equilibrada, mas alguns elementos diplomáticos e militares podem ser mobilizados na construção de um entendimento aceitável para ambas as partes.
A nova maioria pode, por exemplo, começar por aprovar o acordo de Alcântara (salvaguardas tecnológicas), assim como mudar a sua atitude em relação aos acordos de investimentos, pois ambas as posturas são totalmente ideológicas e não têm nada a ver com o interesse brasileiro. Aliás, de forma geral, recomenda-se mais pragmatismo e bem menos politização na conformação dessa relação “imperial”: o bom senso em relação aos interesses nacionais deve prevalecer em face dos julgamentos apressados que se fazem na avaliação dos “motivos secretos” do Império (geralmente em função das famosas teorias conspiratórias da história).

8. Investidores estrangeiros, especuladores internacionais et caterva (“Hello boys”):
A especulação, junto com a agiotagem, constitui uma das mais desprezíveis ações humanas, comportamento apenas comparável, na natureza, ao das aves predatórias, que se aproveitam do momento em que a vítima está enfraquecida para atacá-la e, se possível, esquartejá-la no ato. De acordo com a proposta acima? Como para a maior parte dos economistas alternativos, não há como legitimar o comportamento especulativo, a menos que se pare para pensar duas vezes e se constate, então, que a especulação não é, na verdade, um alienígena que ataca o Brasil de surpresa, aproveitando-se da instabilidade provocada pelos famosos “capitais especulativos”. Por que existem esses capitais? Já pensou que a instabilidade, em lugar de ser importada, pode ser um dado da realidade interna do País, provocada por políticas erráticas, por ameaças de retrocesso no ambiente regulatório, de nova auditoria nos contratos da dívida externa, de revisão das regras de privatização ou de concessão de serviços públicos, enfim, pelo discurso da “ruptura”?
Se pensou, continue pensando, pois este também é um terreno no qual a distância entre economistas de escolas diferentes é uma das mais profundas, constituindo talvez a área na qual a credibilidade do País mais se vê afetada pela retórica soberanista e de cunho nacionalista. Não que essas virtudes sejam dispensáveis, ao contrário, mas é que nesse terreno os requerimentos de desempenho costumam ser mais rigorosos do que as condicionalidades do FMI. Com efeito, continua-se a repetir que os capitais externos são bem-vindos, mas apenas se for para o “desenvolvimento econômico de qualidade”, que reforce a capacidade produtiva, impulsione a absorção de tecnologia e estimule a inovação. Assim, se o capital estrangeiro quiser vir para produzir com técnica defasada, sem compromisso com a superação da “fragilidade das nossas contas externas”, talvez já não seja mais bem-vindo, a menos é claro que aceite a orientação e a disciplina de algum tecnocrata esclarecido.
Não se trata aqui de uma questão de economia política, mas de um problema psicanalítico e eu ainda não conheço algum título próximo de “Freud para economistas”. Enquanto esse manual não aparece, recomenda-se um pouco de convivência com essa “wild bunch” de mega-investidores: eles em geral são cordatos e, salvo babar um pouco na gravata, não mordem na presença da própria “vítima”.

9. Outros assuntos pertinentes (inclusive o valor de troca dos economistas da casa):
Quando se fizer a crônica do transformismo político dos últimos anos, vai se constatar o quanto ocorreu uma discreta, subreptícia, mas efetiva e profunda evolução da nova maioria, indo dos antigos compromissos ideológicos com a “velha” economia política em direção de uma NEP adaptada aos nossos tempos de social-democracia algo descaracterizada por uma inconfessada adesão a premissas hayeckianas, ainda que elas sejam inconscientes. Torna-se surpreendente, ademais, constatar que esse largo caminho foi feito praticamente em três meses, sem manual de bordo e sem muitos mapas para iluminar o caminho. Em todo caso, todos são bem-vindos à realidade, cabendo agora, do ponto de vista do observador externo, examinar os dados do problema, ver as razões dessa “grande transformação” e tentar discutir os efeitos que tal atitude provocará dentro e fora da própria casa.
Em relação aos dados, não seria preciso grandes elaborações, bastando remeter à letra de antigos programas, de documentos cidadãos e mesmo de diretrizes aprovadas em encontros oficiais e como subsídios à plataforma eleitoral, e compará-los ao que está escrito atualmente e ao que vem sendo dito expressamente: “o mundo mudou,…”. Quanto às razões, tampouco seria preciso examinar os fundamentos teóricos da travessia, como revelados, por exemplo, nos limites conceituais da “acumulação primitiva” da velha economia política, na teoria sociológica da “lei de bronze” dos partidos políticos, ou na abordagem antropológica dos “ritos de passagem” (pós-adolescentes) de uma primeira geração de líderes políticos.
Os critérios são aqui mais pragmáticos, estando ligados ao “prêmio” final (and the prize is power). Eles têm a ver com o difícil diálogo com a sociedade com base nas antigas premissas pré-Bad Godesberg, com a falta de trânsito nas altas rodas da sociedade (dos capitalistas nacionais aos banqueiros de Wall Street), com as barreiras eleitorais na base do “eu sozinho”, enfim, com uma série de relações (condicionantes estruturais) que, segundo a linguagem do Manifesto, deixaram de corresponder às novas forças produtivas (necessidades políticas) e tinham tornado-se outros tantos grilhões: esses grilhões tinham de ser rompidos e eles foram rompidos.
No que se refere, em terceiro lugar, aos efeitos, ainda é muito cedo para uma avaliação precisa, mas seria preciso separar os internos dos externos. Neste último campo, caberia constatar, de imediato, o fim do “efeito espantalho”, pois a nova maioria passa a ter de administrar o capitalismo velho de guerra, com os ônus e bônus da nova situação, talvez mais dos primeiros do que dos segundos, o que não deixa de ser uma repetição tropical de outras experiências conhecidas por alguns irmãos mais velhos (e menos puristas). Entre os efeitos internos e externos, se situa a nebulosa dos amigos e companheiros de viagem: do movimento social, das instâncias internacionais (foros de São Paulo, de Porto Alegre, por exemplo) e outros tantos amigos e aliados incômodos que seria preciso acomodar sem alienar. Vai ser difícil aprovar resoluções e participar de plebiscitos como antigamente, como se eles não tivessem efeito sobre a ação governativa, mas esse é o problema dos custos ideológicos, quando se salta a barreira da prática. Existe alguma resposta clara à décima-primeira tese sobre Feuerbach?
Abordando, finalmente, a questão da reciclagem da “prata da casa” (manuais e resoluções incluídos), não há como evitar uma repetição do “déjà vu” em torno do “esqueçam o que eu escrevi”, pois é disso mesmo que se trata. Muitos acreditam, não se sabe bem se por crença religiosa ou avaliação racional, que a “diplomacia da cidadania” saberá como realizar a transição ideológica entre velhos hábitos e novas necessidades.
Em todo caso, a nova maioria tem todas as condições para realizar o que esses foros vêm prometendo-nos há pelo menos dez anos sem nunca ter, de fato, apresentado propostas concretas quanto às políticas alternativas que conseguiriam retirar o lucro e a exploração do centro do sistema econômico: se um outro mundo é possível – agora também em sua variante regional, uma outra América – seria preciso que nos dissessem, ou melhor, nos demonstrassem que isso pertence, não ao reino do utópico e ao domínio das exortações, mas ao universo das realizações concretas. Trata-se, aliás, de excelente oportunidade para demonstrar o valor de uso de tantos economistas alternativos, a menos, é claro, que eles pretendam passar a enfatizar agora o seu valor de troca. Nunca é tarde para a síntese metodológica e para o revisionismo nouvelle manière!

Paulo Roberto de Almeida
Washington, 29 setembro 2002, 11 pp.