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domingo, 22 de outubro de 2017

Consequencias economicas da vitoria do PT (2002) - Paulo Roberto de Almeida

Continuando em meus exercícios pedagógicos para instruir os companheiros nas artes da governança, eu formulava no artigo abaixo, um segunda série de recomendações, que encontrava importantes para um bom exercício do poder.
Eu ainda achava -- que ingênuo eu era -- que eles eram educáveis, flexíveis, e que iriam exercer o poder de acordo com o que pregavam em seus textos pré-eleitorais. Eu sabia que entre eles havia bandidos, como em qualquer partido, só não imaginava que seriam tantos, e em tão alto grau de desfaçatez no roubo, na fraude, na falcatrua. Mas isso só deu para perceber quando começaram a mentir deslavadamente logo depois de terem assegurado a vitória, quando também passaram a abusar das facilidades do poder em causa própria. O resto é história.
Mas, naquela altura – e estou falando aqui de 29 de setembro, ou seja, antes mesmo das eleições – eu pensava que eles poderiam ser educados...
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 22/10/2017


Administrando as relações econômicas internacionais do Brasil:
As conseqüências econômicas da vitória, 2ª parte
(da série: manual de economia política para momentos de transição)

Paulo Roberto de Almeida



Introdução: os grandes temas de “economia internacional” da nova maioria

Depois de ter divulgado o primeiro artigo desta série, apropriadamente intitulado “Companheiros, muita calma: trata-se agora de não errar!” (ver postagem anterior), no qual eu discorro sobre o novo centro político que está se formando no Brasil a partir da transição operada na campanha eleitoral presidencial, com algumas recomendações de política econômica pela vertente teórica ou conceitual, pretendo, neste segundo ensaio, abordar algumas questões práticas da “economia política externa” com as quais terá de se haver a nova maioria política. A justificativa é a de que elas são as mais suscetíveis de introduzir elementos de turbulência na gestão macroeconômica do País, que passa a estar sob a responsabilidade do novo centro, uma vez que essas questões já foram responsáveis, como se sabe, por toda uma série de tremores e suores frios nos mercados cambial e de títulos da dívida externa durante a maior parte da campanha presidencial.
Quais seriam os temas que integrariam um manual de economia internacional capaz de atender às necessidades da fase de transição a uma “nova economia política”? Eles seriam resumidamente os seguintes:
1. Desequilíbrios das transações correntes (“exportar é a solução?”);
2. Dívida externa (e suas relações com a dívida pública interna);
3. Regime cambial e paridade do real (“Chamem um operador experiente!”);
4. Controles de capital (e outros remédios amargos);
5. Relações com o FMI e pacotes de ajuda financeira (consenso sobre o dissenso);
6. Mercosul, Alca e OMC (malabarismos subregionais, hemisférico e multilateral);
7. Relações econômicas e políticas com o Império (não tem como escapar);
8. Investidores estrangeiros, especuladores internacionais et caterva (“Hello boys”);
9. Outros assuntos pertinentes (inclusive o valor de troca dos economistas da casa).

A bibliografia disponível sobre um possível bridge-building conceitual entre a nova síntese neoclássica e a “velha” teoria do valor (iniciada por Adam Smith, retomada por Ricardo e continuada por outros nomes mais famosos) não é muito extensa, razão pela qual seremos obrigados a operar sem notas de rodapé, o que em contrapartida facilita muito a leitura. Por outro lado, as bases conceituais da economia política do novo centro político estão obviamente mais perto do pensamento prebischiano e furtadiano do que do lado da teoria clássica do comércio internacional ou mesmo da nova teoria do comércio estratégico. Para o primeiro, que tende a se opor à globalização na medida em que ela ameaça as bases da soberania econômica nacional, o importante é romper a dependência por meio de um projeto de desenvolvimento econômico que garanta fontes autônomas de acumulação, em bases nacionais, ao passo que a segunda não apenas aceita como também recomenda a interdependência ativa, como forma de se lograr patamares mais elevados de avanço tecnológico. Nos últimos tempos, contudo, a “nova economia política” tem aceito algum tipo de composição com a abordagem liberal, muito embora ela ainda tenha dificuldades em admitir certas implicações práticas dos (sempre erráticos, por definição especulativos) movimentos financeiros internacionais ou as conseqüências indesejadas do livre-comércio. A “coexistência pacífica” tem porém avançado, lenta mas resolutamente.

1. Desequilíbrios das transações correntes (“exportar é a solução?”):
Trata-se de conhecido calcanhar de Aquiles da economia brasileira, desde que ela se organizou na era independente, sendo apenas compensados pelos saldos comerciais, o que estava difícil de se obter nos primeiros cinco ou seis anos de gestão neoliberal da economia, que permitiu a valorização cambial e abriu indiscriminadamente as portas às importações. A solução lógica é o aumento contínuo das exportações, algo bem mais consensual hoje em dia, mas que se chocava com uma antiga crença nas virtudes liberadoras do mercado interno.
Com efeito, há não muito tempo atrás os economistas chefes do novo centro proclamavam, com o aval da principal liderança, as “diretrizes” da “ruptura econômica”, que deveria ocorrer em vários níveis, entre eles a “inversão das prioridades da política econômica” e a “mudança do padrão de crescimento”, cujo núcleo dinâmico passaria a ser: ampliação do mercado interno, redistribuição da renda e substituição de importações, muito embora também se previsse um incentivo dirigido às exportações. Atualmente não se faz muita distinção entre mercado interno e externo, mas ainda subsiste o preconceito mercantilista contra as importações. Uma das soluções não precisaria tanto passar pela eliminação completa dos déficits de transações correntes, mas deve-se encontrar formas de financiá-los sem sobrecarregar demasiado a conta de capitais. Ademais da solução óbvia do aumento das exportações, uma das receitas recomendadas pelos economistas liberais seria aumentar a atratividade para os investimentos diretos, algo ainda não totalmente consensual na nova maioria, por duas razões muito simples: a sobrecarga futura sob forma de remessas relativas aos rendimentos do capital e uma desconfiança de princípio do capitalista estrangeiro (ele seria bem vindo, desde que aceitasse certos compromissos de desempenho ou atuasse em áreas selecionadas administrativamente como as mais benéficas do ponto de vista do governo, não do próprio capitalista).
Agora que a nova maioria assume o comando da economia que tal começar pela aprovação dos acordos de proteção e promoção recíproca de investimentos? Eles estão mofando há quase dez anos no Congresso porque incluem também ativos financeiros e porque ainda se acredita que cláusulas de arbitragem são lesivas à “justiça nacional”.

2. Dívida externa (e suas relações com a dívida pública interna):
O problema está mais na geração de divisas para o seu serviço – quase metade das exportações – do que na sua magnitude, pois se reconhece que a dívida externa é hoje em dia majoritariamente privada (a despeito do crescimento da dívida interna indexada em dólar). Em todo caso, parecem longe os dias da moratória soberana, da renegociação unilateral ou mesmo da auditoria dos contratos, tendo sido contudo proclamado o ponto central da redução da fragilidade financeira externa. Não há muito consenso sobre como fazê-lo, além do ponto óbvio da redução da demanda por empréstimos externos, mas essa questão também está ligada aos níveis internos dos juros, o que se constitui em outro aspecto, necessariamente mais complexo, da mesma realidade.
O Estado é um “despoupador” líquido, daí a necessidade de superávits primários, que quanto maiores, menor pressão sobre a taxa de juros provocará, mas os economistas do novo centro continuam proclamando a necessidade de se reduzir os patamares desses superávits, como forma de aumentar os investimentos e os gastos sociais, o que atua obviamente contra a redução dos juros e a diminuição da pressão sobre o real, cuja paridade está bastante ligada à crença (ou à suspeita) em torno da capacidade do governo em honrar os pagamentos da dívida externa. A boa notícia do ponto de vista prático está na aceitação da intangibilidade dos contratos externos e na assunção da responsabilidade fiscal como norma de administração pública, o que certamente contribuirá para a gradual superação desse nó financeiro e monetário em médio prazo.
Notável aqui como as antigas divergências de enfoque no tratamento da questão das dívidas deram lugar a um razoável consenso conceitual e prático sobre o “que fazer”. O aspecto bizarro é continuarem os economistas do novo centro achando que o governo argentino ficou aplicando políticas neoliberais durante todo o período, esquecendo-se eles que ele nunca conseguiu cumprir com o requisito mínimo, até recomendado pelo FMI, de redução dos déficits públicos. As diatribes ainda remanescentes sobre o pagamento de juros altos aos banqueiros devem ser debitadas à preservação de velhos cacoetes verbais.

3. Regime cambial e paridade do real (“Chamem um operador experiente!”):
A condenação da valorização cambial é absoluta, com toques de vingança pessoal e proclamações do tipo “nós cansamos de avisar” (o que economistas de direita também fizeram). O estruturalismo e a esquerda, de modo geral, sempre encontraram virtudes no modelo de desvalorização cambial, algo aliás recomendado pelo FMI em 99% dos casos de ajuste macroeconômico desde 1973. Se esquece, por outro lado, como o expediente deixa a todos mais pobres e diminui a pressão por ganhos de competitividade no setor produtivo. Todo mundo está portanto de acordo com a flutuação “suja” hoje praticada.
Caberia deixar o passado em paz e tentar olhar para o futuro, isto é, um naquele em que o real conseguisse não apenas sobreviver saudavelmente como moeda nacional independente, como constituir-se também em base da futura moeda comum do Mercosul, como proclamam os integracionistas mais afoitos do novo centro (esquecendo-se, por certo, da tremenda renúncia de soberania econômica e política que isso implica). Para que isso se faça, seria interessante assegurar que o objetivo principal do Banco Central seja a defesa da moeda (isto é, a luta contra a inflação), não a perseguição do pleno emprego ou outros objetivos ainda mais esdrúxulos (como a “taxa de desconforto” trabalhista).
Que tal começar por dar independência ao Banco Central e constituir um comitê de política monetária mais amplo e realmente independente? Quem se dá ao trabalho de ler as minutas das reuniões do Copom sabe como a política de metas de inflação constitui uma aproximação bastante razoável daquele objetivo primordial. A tentativa de fazer o Banco Central cumprir outras finalidades que não essa, basicamente, resultará, a médio e longo prazo, no enfraquecimento da moeda nacional e, com Alca ou sem Alca, na ameaça continuada de dolarização em algum ponto do futuro. 

4. Controles de capital (e outros remédios amargos):
Alguns economistas de esquerda falam de controles de capital com um sorriso nos lábios, quase com uma secreta satisfação de estarem “punindo” capitalistas fraudadores, especuladores estrangeiros e outros sócios da “volatilidade”. Existem obviamente vários tipos de controles, e o menos pernicioso deles – na entrada, por meio de quarentena ou imposto parcial – já foi aplicado pelo Brasil em fases mais receptivas de ingresso de capitais. Na verdade, o que aqueles economistas estão pensando são em controles na saída, o que apenas contribuiria para a volta do mercado negro, ágio cambial e corrupção, sub ou superfaturamento no comércio exterior e outras mazelas associadas.
Há uma imensa dificuldade do pensamento dito estruturalista em reconhecer as virtudes da livre movimentação de capitais (barateamento do custo do capital, rápida mobilização de recursos em momentos de necessidade etc.), como se o mundo tivesse vivido desde sempre em tempos keynesianos (cujas recomendações, se esquece, foram concebidas para uma Inglaterra decadente e carente de divisas). A oposição parece ser mais de caráter ideológico do que de ordem prática, pois é possível combinar a abertura cuidadosa do setor financeiro com o levantamento progressivo das últimas restrições à movimentação dos capitais, objetivo de toda forma dependente de uma superação mais permanente dos problemas crônicos de transações correntes.
Existe, por outro lado, uma adesão quase universal, nesses meios, à Taxa Tobin, proclamada como a “grande receita” contra a volatilidade (até por altas personalidades da administração “neoliberal”), sem que se reconheça seus efeitos essencialmente nefastos para países como o Brasil, que continuarão a ser, durante algum tempo, importadores líquidos de capitais financeiros. Essa adesão incondicional a algumas idéias progressistas que vêm de fora do País – e que se repete igualmente no caso da Alca – revela talvez a preservação de um certo colonialismo conceitual, que impede nossos “progressistas” de pensarem com suas próprias cabeças nas melhores soluções para o País, a partir de uma perspectiva do Sul, não daquela comandada pelos interesses de sindicalistas do Norte.

5. Relações com o FMI e pacotes de ajuda financeira (consenso sobre o dissenso):
A situação está “maravilhosa”, comparando com a demonização do FMI que se fazia ainda bem recentemente, com xingamentos e slogans substituindo uma reflexão ponderada sobre o que pode e não pode fazer o FMI em prol da saúde financeira do Brasil. Independentemente de como negociará o futuro governo – de pé ou sentado –, o fato é que tornou-se possível aceitar alguns parâmetros básicos desse relacionamento feito de amor e ódio durante boa parte dos últimos 50 anos. Em todo caso, é bom que se saiba que a era dos grandes pacotes de ajuda financeira está chegando ao fim e nem sempre será possível ao Brasil esperar salvamento em qualquer circunstância, inclusive porque a tolerância dos governos dos países ricos com países emergentes está ficando menor (e as operações para eles tenderão a ficar mais caras).
Uma coisa é certa: a política de condicionalidades deve continuar, mas se o novo centro tiver objeções ideológicas contra esse tipo de “imposição”, a solução é muito simples e está ao alcance de qualquer um. Basta não entrar em acordo com o FMI e pagar tudo o que se deve do pacote anterior. Como regra de princípio, o FMI e o BIRD acatam totalmente a soberania econômica e política dos países membros. O mais importante no relacionamento com o FMI não é contudo o dinheiro que ele pode emprestar (ainda que este possa ser bem-vindo em determinadas circunstâncias), mas sim o aval a um conjunto de políticas e a transparência que ele assegura em relação às contas públicas, hoje em dia um requisito indispensável a qualquer país que pretenda participar dos mercados de créditos comerciais e de financiamentos de curto prazo. Esse tipo de chancela parece ter sido compreendida muito bem pelos “novos economistas”, ou será que não?

6. Mercosul, Alca e OMC (malabarismos subregionais, hemisférico e multilateral):
O terreno das políticas comerciais e das diferentes estratégias de negociação nos foros comerciais é aquele no qual a esquizofrenia econômica parece mais freqüente e disseminada, provavelmente por falta de (in)formação suficiente sobre o modo de funcionamento da OMC, sobre as implicações da Alca para a economia brasileira (e por uma visão ideológica desta última, como revelado pela “teoria anexacionista”) e em virtude de uma avaliação otimista dos méritos do Mercosul e seu papel em determinadas negociações (com a UE, por exemplo, vista de forma positiva em relação à Alca não se sabe bem em função de quais resultados esperados). Não é um campo no qual se possa recomendar um curso rápido de políticas comerciais – tanto porque a leitura de algum manual sobre o GATT eqüivale a tortura psicológica, melhor valendo freqüentar suas sessões –, mas pode-se exigir mais atenção aos documentos negociadores e bem menos aos daqueles grupos anti-globalizadores e anti-alcalinos que vivem repetindo bobagens sem sentido por puro espírito anti-capitalista e anti-imperialista (o que até é admissível, como brincadeirinha de jovens e discurso em assembléia da UNE, mas não em funções de responsabilidade num governo dotado de uma diplomacia respeitada).
O abismo que ainda existe entre economistas da “situação” e da “oposição” (deve haver inversão, dentro em breve) só vai ser preenchido na prática das negociações, o que implica alguma preparação técnica muito séria no plano interno. Em todo caso, como ocorreu com o FMI, a demonização da Alca não vai ajudar em nada o Brasil, cabendo sim defender de forma conseqüente nossos interesses e deixar o pessoal anti-alcalino gritando nas ruas. Uma coisa é certa: estes últimos estão fazendo o trabalho sujo para os sindicalistas americanos e os congressistas protecionistas, que não querem a Alca, assim como não queriam o Nafta. Algum sindicalista brasileiro é, por acaso, contrário à captura de empregos do Norte?: teria de dizer isso claramente para a nova maioria política. No mais, nossos problemas são mais de ordem interna – juros, capital, infra-estrutura, cultura exportadora – do que de ordem externa, ainda que não seja fácil equacionar alguns deles, a reforma tributária, por exemplo. Mas, quem sabe a Alca não consegue fazer aquilo que a classe política e os empresários não logram obter a despeito de tanta vontade retórica?
Quanto ao Mercosul, caberia também colocá-lo em sua dimensão própria, nem mais, nem menos do que ele pode razoavelmente, nas condições que são dadas, cumprir em favor da economia brasileira. Transformá-lo em “laboratório de experiências sociais” ou em escalão avançado de uma “mercocracia comunitária” não vai ajudar em nada na resolução de nossos atuais problemas de estabilidade macroeconômica – que são de todos os países membros – e pode até terminar por desacreditá-lo internacionalmente. Trata-se de um projeto relevante, talvez até mais diplomaticamente do que economicamente, e o Brasil deveria propor as bases de sua restruturação, com muito realismo e bom senso.

7. Relações econômicas e políticas com o Império (não tem como escapar):
Como diria Jean-Paul Sartre em relação ao marxismo, trata-se do “horizonte insuperável de nossa época”. Melhor assim encontrar os termos de uma boa convivência, respeitosa e respeitadora das soberanias e diferenças, do que insistir em se proclamar “do contra”. Quem pode ser do contra é o próprio Império, que tem condições de sustentar suas posições contra tudo e contra todos. Países fragilizados como o Brasil têm de ser a favor de alguma coisa, geralmente das soluções multilaterais, que já foram apontadas como a “arma dos mais fracos”. Que seja: não há como não continuar proclamando o princípio da igualdade soberana dos estados e de continuar exigindo o predomínio do direito internacional, mas no plano da diplomacia prática é preciso encontrar alguma forma de convivência com esse Big Brother incômodo e arrogante. De uma certa forma, ele também cumpre o seu papel histórico, que é o de garantir a segurança internacional, ainda que seja bastante desatento às preocupações de desenvolvimento de uma imensa maioria de países. Excluindo o mito da “relação especial” ou o da “divisão do trabalho”, não há muito o que se possa fazer para compor uma agenda bilateral minimamente equilibrada, mas alguns elementos diplomáticos e militares podem ser mobilizados na construção de um entendimento aceitável para ambas as partes.
A nova maioria pode, por exemplo, começar por aprovar o acordo de Alcântara (salvaguardas tecnológicas), assim como mudar a sua atitude em relação aos acordos de investimentos, pois ambas as posturas são totalmente ideológicas e não têm nada a ver com o interesse brasileiro. Aliás, de forma geral, recomenda-se mais pragmatismo e bem menos politização na conformação dessa relação “imperial”: o bom senso em relação aos interesses nacionais deve prevalecer em face dos julgamentos apressados que se fazem na avaliação dos “motivos secretos” do Império (geralmente em função das famosas teorias conspiratórias da história).

8. Investidores estrangeiros, especuladores internacionais et caterva (“Hello boys”):
A especulação, junto com a agiotagem, constitui uma das mais desprezíveis ações humanas, comportamento apenas comparável, na natureza, ao das aves predatórias, que se aproveitam do momento em que a vítima está enfraquecida para atacá-la e, se possível, esquartejá-la no ato. De acordo com a proposta acima? Como para a maior parte dos economistas alternativos, não há como legitimar o comportamento especulativo, a menos que se pare para pensar duas vezes e se constate, então, que a especulação não é, na verdade, um alienígena que ataca o Brasil de surpresa, aproveitando-se da instabilidade provocada pelos famosos “capitais especulativos”. Por que existem esses capitais? Já pensou que a instabilidade, em lugar de ser importada, pode ser um dado da realidade interna do País, provocada por políticas erráticas, por ameaças de retrocesso no ambiente regulatório, de nova auditoria nos contratos da dívida externa, de revisão das regras de privatização ou de concessão de serviços públicos, enfim, pelo discurso da “ruptura”?
Se pensou, continue pensando, pois este também é um terreno no qual a distância entre economistas de escolas diferentes é uma das mais profundas, constituindo talvez a área na qual a credibilidade do País mais se vê afetada pela retórica soberanista e de cunho nacionalista. Não que essas virtudes sejam dispensáveis, ao contrário, mas é que nesse terreno os requerimentos de desempenho costumam ser mais rigorosos do que as condicionalidades do FMI. Com efeito, continua-se a repetir que os capitais externos são bem-vindos, mas apenas se for para o “desenvolvimento econômico de qualidade”, que reforce a capacidade produtiva, impulsione a absorção de tecnologia e estimule a inovação. Assim, se o capital estrangeiro quiser vir para produzir com técnica defasada, sem compromisso com a superação da “fragilidade das nossas contas externas”, talvez já não seja mais bem-vindo, a menos é claro que aceite a orientação e a disciplina de algum tecnocrata esclarecido.
Não se trata aqui de uma questão de economia política, mas de um problema psicanalítico e eu ainda não conheço algum título próximo de “Freud para economistas”. Enquanto esse manual não aparece, recomenda-se um pouco de convivência com essa “wild bunch” de mega-investidores: eles em geral são cordatos e, salvo babar um pouco na gravata, não mordem na presença da própria “vítima”.

9. Outros assuntos pertinentes (inclusive o valor de troca dos economistas da casa):
Quando se fizer a crônica do transformismo político dos últimos anos, vai se constatar o quanto ocorreu uma discreta, subreptícia, mas efetiva e profunda evolução da nova maioria, indo dos antigos compromissos ideológicos com a “velha” economia política em direção de uma NEP adaptada aos nossos tempos de social-democracia algo descaracterizada por uma inconfessada adesão a premissas hayeckianas, ainda que elas sejam inconscientes. Torna-se surpreendente, ademais, constatar que esse largo caminho foi feito praticamente em três meses, sem manual de bordo e sem muitos mapas para iluminar o caminho. Em todo caso, todos são bem-vindos à realidade, cabendo agora, do ponto de vista do observador externo, examinar os dados do problema, ver as razões dessa “grande transformação” e tentar discutir os efeitos que tal atitude provocará dentro e fora da própria casa.
Em relação aos dados, não seria preciso grandes elaborações, bastando remeter à letra de antigos programas, de documentos cidadãos e mesmo de diretrizes aprovadas em encontros oficiais e como subsídios à plataforma eleitoral, e compará-los ao que está escrito atualmente e ao que vem sendo dito expressamente: “o mundo mudou,…”. Quanto às razões, tampouco seria preciso examinar os fundamentos teóricos da travessia, como revelados, por exemplo, nos limites conceituais da “acumulação primitiva” da velha economia política, na teoria sociológica da “lei de bronze” dos partidos políticos, ou na abordagem antropológica dos “ritos de passagem” (pós-adolescentes) de uma primeira geração de líderes políticos.
Os critérios são aqui mais pragmáticos, estando ligados ao “prêmio” final (and the prize is power). Eles têm a ver com o difícil diálogo com a sociedade com base nas antigas premissas pré-Bad Godesberg, com a falta de trânsito nas altas rodas da sociedade (dos capitalistas nacionais aos banqueiros de Wall Street), com as barreiras eleitorais na base do “eu sozinho”, enfim, com uma série de relações (condicionantes estruturais) que, segundo a linguagem do Manifesto, deixaram de corresponder às novas forças produtivas (necessidades políticas) e tinham tornado-se outros tantos grilhões: esses grilhões tinham de ser rompidos e eles foram rompidos.
No que se refere, em terceiro lugar, aos efeitos, ainda é muito cedo para uma avaliação precisa, mas seria preciso separar os internos dos externos. Neste último campo, caberia constatar, de imediato, o fim do “efeito espantalho”, pois a nova maioria passa a ter de administrar o capitalismo velho de guerra, com os ônus e bônus da nova situação, talvez mais dos primeiros do que dos segundos, o que não deixa de ser uma repetição tropical de outras experiências conhecidas por alguns irmãos mais velhos (e menos puristas). Entre os efeitos internos e externos, se situa a nebulosa dos amigos e companheiros de viagem: do movimento social, das instâncias internacionais (foros de São Paulo, de Porto Alegre, por exemplo) e outros tantos amigos e aliados incômodos que seria preciso acomodar sem alienar. Vai ser difícil aprovar resoluções e participar de plebiscitos como antigamente, como se eles não tivessem efeito sobre a ação governativa, mas esse é o problema dos custos ideológicos, quando se salta a barreira da prática. Existe alguma resposta clara à décima-primeira tese sobre Feuerbach?
Abordando, finalmente, a questão da reciclagem da “prata da casa” (manuais e resoluções incluídos), não há como evitar uma repetição do “déjà vu” em torno do “esqueçam o que eu escrevi”, pois é disso mesmo que se trata. Muitos acreditam, não se sabe bem se por crença religiosa ou avaliação racional, que a “diplomacia da cidadania” saberá como realizar a transição ideológica entre velhos hábitos e novas necessidades.
Em todo caso, a nova maioria tem todas as condições para realizar o que esses foros vêm prometendo-nos há pelo menos dez anos sem nunca ter, de fato, apresentado propostas concretas quanto às políticas alternativas que conseguiriam retirar o lucro e a exploração do centro do sistema econômico: se um outro mundo é possível – agora também em sua variante regional, uma outra América – seria preciso que nos dissessem, ou melhor, nos demonstrassem que isso pertence, não ao reino do utópico e ao domínio das exortações, mas ao universo das realizações concretas. Trata-se, aliás, de excelente oportunidade para demonstrar o valor de uso de tantos economistas alternativos, a menos, é claro, que eles pretendam passar a enfatizar agora o seu valor de troca. Nunca é tarde para a síntese metodológica e para o revisionismo nouvelle manière!

Paulo Roberto de Almeida
Washington, 29 setembro 2002, 11 pp.

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