Essa pergunta aparentemente ingenua, ou marota, foi a gota d'água entre os membros de uma revista tipicamente acadêmica para que eles decidissem retirar-me de seu corpo editorial. Com efeito, convidado em 2001 a integrar o "staff" de colaboradores regulares da revista digital "Espaço Acadêmico", não deixei, durante 10 anos, de oferecer meus artigos todos os 12 meses de cada ano transcorride desde então, sempre criticando a "alienação" – esse conceito típico do jovem Marx – de meus colegas acadêmicos, no seu esquerdismo canhestro, contraditório e, em última instância, prejudicial à boa qualidade dos cursos de humanidades em geral.
Acho que, depois de várias críticas indiretas, exagerei na dose, ao acusar diretamente meus colegas de serem pouco inteligentes. Pouco depois fui "desconvidado" do corpo editorial, embora sempre recorram a mim para dar parecer sobre determinados artigos submetidos que tenham a ver com economia ou relações internacionais.
Eis a ficha do trabalho "maldito", transcrito mais abaixo:
2292. “Pode uma pessoa
inteligente pretender-se comunista, hoje em dia?; Reflexões sobre um paradoxo
acadêmico brasileiro”, Brasília, 2 agosto 2011, 13 p. Crítica às crenças
fundamentalistas do socialismo marxista na substituição de um modo de produção
resultante de processos sociais incontrolados e impessoais, como o capitalismo,
por um outro, concebido de maneira ideológica e pretendendo operar um exercício
de engenharia social com base em premissas equivocadas e pressupostos
equivocados sobre o funcionamento de uma economia de mercado. Revista Espaço Acadêmico (ano 11, n. 123, agosto
2011, p. 125-136; link: http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/14334/7601;
link em pdf: http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/download/14334/7601).
Relação de Publicados n. 1042.
Pode
uma pessoa inteligente pretender-se comunista, hoje em dia?
Reflexões
sobre um paradoxo acadêmico brasileiro
Paulo Roberto de Almeida
1. Introdução
metodológica: uma tradição passadista que não passa
A pergunta do título não pretende
contrapor-se, em geral, a toda uma categoria de pessoas, nem visa interrogar alguém,
em particular. Sua intenção é a de questionar certas ideias bem delimitadas no
universo das ideologias, concentrando-se, em especial numa concepção
determinada: a ideologia do comunismo, que em grande medida confunde-se com a
teoria marxista (Por teoria marxista entenda-se o conjunto de escritos e
argumentos de Marx, Engels, Lênin e alguns outros, que são comumente utilizados
para fundamentar a validade empírica, a evolução lógica e a sustentação
material de sociedades comunistas.) A motivação deste artigo decorre do fato de
que existem pessoas, em pleno século 21, que nunca negaram sua adesão a essa
concepção vinda do século 19 e que tampouco fizeram qualquer trabalho de
revisão séria sobre as consequências práticas dessas ideias, tal como aplicadas
ao longo do século 20.
Vista pelo lado afirmativo, a
questão do título poderia indicar que qualquer pessoa que pretenda, atualmente,
afirmar-se comunista (ou socialista, na tradição marxista ou leninista) corre o
risco de ser considerada como singularmente carente de inteligência mais
sofisticada; ou poderia, pelo menos, ser vista como desprovida de senso crítico
mais agudo. Em muitos casos, na verdade, a origem da autodesignação pode revelar
apenas ignorância ingênua ou pura desinformação juvenil. Nos casos mais
renitentes, pode-se, talvez, classificar os mais entusiastas da causa como
fundamentalistas ilógicos, quando não se trata, no caso dos mais velhos, de
pura e simples desonestidade intelectual.
Sem pretender ofender alguém
em particular – muito embora eu tenha deparado com vários representantes desse
credo no decorrer de minhas peregrinações acadêmicas e alguns cruzamentos
político-partidários – o objetivo principal deste artigo é apenas o de examinar
um conceito, o do comunismo, em seus determinantes lógicos, em sua eventual
fundamentação empírica e, sobretudo, em suas consequências práticas, o que o
aproxima de qualquer ensaio acadêmico que pretenda tratar de questões reais das
sociedades existentes em nossa época. Não se pretende aqui tratar do sexo dos
anjos, e sim de uma questão que costuma estar presente em nossas academias –
com maior força nas áreas de humanidades – e também em algumas seitas políticas,
e que continua a mobilizar a atenção de certo número de pessoas, ainda que, nos
dias que correm, em proporção crescentemente diminuta (se me permitem o
paradoxo verbal).
Por que o faço? A resposta é
complexa, mas vamos ficar com uma bem simples. As faculdades brasileiras de
humanidades estão povoadas, hoje em dia, de seres saídos de antigas camadas
geológicas da teoria social, algo como o pré-cambriano dos estudos sobre a
sociedade e suas transformações. Em lugar de focar os problemas correntes,
professores que aderem ao clero de maneira totalmente acrítica, remetem os
alunos a textos góticos do século 19 e os obrigam a interpretar a economia
atual com categorias defasadas, que nada têm a ver com as características essenciais
do capitalismo
globalizado. Como estou me colocando mais do lado dos alunos do que dos
professores, creio ser meu dever alertar aos primeiros que eles estão sendo
enganados – torturados seria uma expressão mais adequada – por mestres
preguiçosos que não fazem pesquisa e que preferem repisar e repassar velhos
textos que confortam certos preconceitos pessoais, mas que nada têm a ver com a
realidade vivida por alunos, ou pelas pessoas, em geral.
Pois bem, estou fazendo uma
pergunta, que é quase uma acusação, e o faço de forma consciente, esperando com
isso suscitar algum debate intelectual, o que pode revelar-se uma vã esperança.
A sugestão do título é a de que a pessoa que se afirma comunista, nos dias que
correm, renunciou a pensar de modo livre, está dominada por premissas
emboloradas, por preconceitos ideológicos ultrapassados, já que uma caracterização
desse tipo agride a lógica, a experiência histórica conhecida e a simples
realidade dos fatos. Este é o debate, aqui colocado em termos diretos.
Tenho plena consciência, aliás
uma quase certeza, de que não haverá debate, pois os “indiciados”, podem sempre
alegar que os estou ofendendo, que eles não aceitam o questionamento do título,
não cabendo, portanto, debate com uma pessoa tão arrogante e tão desrespeitosa
das crenças alheias. Voilà, acho que
encontrei o conceito correto: crença! Sim, estamos falando basicamente de uma
crença, já que não existem sociedades comunistas atualmente e desafio qualquer
um a provar que existem chances reais de que qualquer uma venha a existir no
futuro previsível. Quem desejar pode aceitar o desafio.
Como alguns dos espaços e
veículos em que escrevo é frequentado por pessoas que se intitulam comunistas,
que se pretendem comunistas e que defendem causas que elas consideram ser
comunistas, o desafio lhes é lançado diretamente, mas como disse acima, duvido
que elas venham a enfrentá-lo. Não obstante, formulo novamente o tema deste
artigo e o deixo como problema a ser debatido. Minha hipótese de trabalho, a
ser exposta nos parágrafos que seguem, é que nenhuma pessoa inteligente pode, hoje
em dia, razoavelmente falando, pretender-se comunista ou defender causas
comunistas.
Dito isto, vamos ao que
interessa, não sem antes um comentário inicial. O autor destas linhas também já
se proclamou comunista, em tempos idos, e conhece razoavelmente bem a
literatura marxista (e tudo o que circula em volta). Como membro da academia,
já leu, percorreu, repetiu os conceitos-chaves do credo e já pretendeu
transformar o Brasil num país socialista. De certa forma, é impossível ser
sociólogo, em qualquer sociedade contemporânea, sem ser também um pouco
marxista, uma vez que o marxismo integra a construção da moderna teoria social.
Quanto a ser comunista é outra questão, que remete a um conjunto de crenças,
que devem ser testadas contra a realidade.
Ao ter aderido ao comunismo em
fase ainda juvenil de sua vida, este autor percorreu depois a realidade dos
comunismos (ou socialismos) realmente existentes, praticamente todos, ou pelo
menos os mais importantes. Dessas visitas, ele retirou preciosas reflexões que
contribuíram para a revisão de algumas crenças juvenis; ele também aprofundou
seu conhecimento dos capitalismos realmente existentes – e de muitos outros
sistemas pré-capitalistas (como na maior parte da América Latina, por exemplo),
mediante viagens extensas de trabalho e de lazer, o que contribuiu mais ainda
para uma saudável revisão de suas velhas concepções. Sobre isso, caberia
acrescentar leituras variadas, e não apenas dentro do universo conceitual do
marxismo estabelecido, o que é sempre recomendável para quem pretende
aperfeiçoar seus conhecimentos sobre o mundo realmente existente, além e acima
de quaisquer crenças com base em sistemas fechados de ideias. Esta é a base,
portanto, da discussão que pode agora começar.
2. Um exemplo,
entre outros, da crença persistente: Antônio Cândido
Para não tornar esta discussão
muito abstrata, conviria ilustrá-la com declarações atuais sobre o tema em
questão partindo de um true believer,
na expressão coloquial retirada do inglês, ou seja, um verdadeiro crente. O que
tem a dizer sobre o assunto um intelectual respeitado na academia brasileira, Antônio
Cândido, cujos argumentos são recebidos com toda a distinção que merecem as
verdadeiras “vacas sagradas” da intelligentsia
brasileira?
Entrevistado recentemente por
um jornal desse universo intelectual, Antônio Cândido assim respondeu à
pergunta de se era socialista (e, neste caso, e para todos os efeitos, o
adjetivo socialista é completamente similar à caracterização de comunista, uma
vez que baseado nos mesmos princípios ideológicos que sustentam esse sistema de
interpretação da realidade, que é a filosofia marxista):
Brasil de Fato:
O senhor é socialista?
AC: Ah, claro, inteiramente. Aliás, eu acho
que o socialismo é uma doutrina totalmente triunfante no mundo. E não é
paradoxo. O que é o socialismo? É o irmão-gêmeo do capitalismo, nasceram
juntos, na revolução industrial. É indescritível o que era a indústria no
começo. Os operários ingleses dormiam debaixo da máquina e eram acordados de
madrugada com o chicote do contramestre. Isso era a indústria. Aí começou a
aparecer o socialismo. Chamo de socialismo todas as tendências que dizem que o
homem tem que caminhar para a igualdade e ele é o criador de riquezas e não
pode ser explorado. Comunismo, socialismo democrático, anarquismo, solidarismo,
cristianismo social, cooperativismo... tudo isso.
O que surpreende nesse tipo de
manifestação, em primeiro lugar, é a total falta de consistência do pensamento
desse autor, cultuado na academia brasileira como um dos maiores sociólogos da
nacionalidade, quanto às necessárias distinções entre, de um lado, processos
reais, desenvolvidos ao longo dos séculos como resultado de movimentos
“tectônicos” no plano das forças produtivas e das relações de produção (para
ficar na terminologia habitual), e, de outro, construções mentais, propostas
ideológicas, projetos de engenharia social que só podem ser plataformas
políticas, ou programas partidários a serem debatidos pelos movimentos sociais
e agrupamentos políticos, mas que jamais poderiam ser colocados no mesmo plano
dos processos reais. O socialismo jamais poderia ter sido, e nunca foi, o
irmão-gêmeo do capitalismo pela simples razão de que se trata de um sistema
inventado pelo homem, não uma construção social, impessoal, progressiva e
absolutamente desprovida de qualquer senso de direção pré-determinado.
O que o aclamado sociólogo
ignora completamente, em segundo lugar, é que todos os modos de produção social
existentes, passados ou presentes, inclusive os puramente baseados num “arranjo
político” (como o socialismo, portanto) se baseiam em certa coerção ao
trabalho, qualquer que sejam as formas peculiares que assumem as relações de
produção e as formas específicas de apropriação dos resultados do processo de
produção. Não existe nenhum sistema de produção um pouco mais complexo do que a
simples organização extrativista rudimentar que não se baseie em divisão do
trabalho (sexual ou social), em algum sistema de trocas relativamente
organizado (por forças que se destacaram do mundo do trabalho, portanto) e em
mecanismos de interação e de solução de litígios que já impliquem uma
autoridade qualquer baseada na dominação política e na exploração econômica
(inclusive, e sobretudo, no socialismo). Ou seja, a proposta quanto à
não-exploração, ou quanto à igualdade fundamental do ser humano, parte de
premissas totalmente descoladas da realidade dos processos produtivos e
absolutamente inaplicáveis em condições reais do mundo do trabalho e da
satisfação das necessidades humanas.
A falha metodológica revelada
pelo mestre é particularmente grave, uma vez que ele confunde o movimento real
das sociedades com o movimento das ideias que perpassam as sociedades, que
podem, ou não, oferecer algum substrato real, ou serem apenas o reflexo de
elaborações mentais que, por mais “geniais” que possam ser – e as contribuições
de Marx constituem, de fato, poderosos instrumentos analíticos para a
compreensão das sociedades burguesas e das economias capitalistas – não
representam senão o fruto de uma construção intelectual não necessariamente
compatível com os dados da realidade. Igualmente decepcionante é a sua
compreensão do que seja o socialismo, pois revela um conhecimento deficiente,
para não dizer ingênuo, das bases intelectuais da doutrina marxista sobre o
socialismo. Perguntado pelo mesmo órgão de imprensa, sobre se “é possível o
socialismo existir triunfando sobre o capitalismo?”, o mestre respondeu o que
segue:
AC: (...) Digo que o socialismo é uma
doutrina triunfante porque suas
reivindicações estão sendo cada vez mais adotadas. Não tenho cabeça
teórica, não sei como resolver essa questão: o socialismo foi extraordinário
para pensar a distribuição econômica, mas não foi tão eficiente para
efetivamente fazer a produção. O capitalismo foi mais eficiente, porque tem o
lucro. Quando se suprime o lucro, a coisa fica mais complicada. É preciso
conciliar a ambição econômica – que o homem civilizado tem, assim como tem
ambição de sexo, de alimentação, tem ambição de possuir bens materiais – com a
igualdade. Quem pode resolver melhor essa equação é o socialismo, disso não
tenho a menor dúvida. Acho que o mundo marcha para o socialismo. Não o
socialismo acadêmico típico, a gente não sabe o que vai ser... o que é o
socialismo? É o máximo de igualdade econômica. Por exemplo, sou um professor
aposentado da Universidade de São Paulo e ganho muito bem, ganho provavelmente
50, 100 vezes mais que um trabalhador rural. Isso não pode. No dia em que, no Brasil,
o trabalhador de enxada ganhar apenas 10 ou 15 vezes menos que o banqueiro,
está bom, é o socialismo.
Em outros termos, o professor
aposentado pensa o socialismo como a realização da igualdade, ou mais
exatamente, como a diminuição das desigualdades existentes. Ora, essa
compreensão está em completo desacordo com a teoria marxista e com as premissas
sobre as quais foram construídos os sistemas marxistas, ou dos socialismos
realmente existentes, no século XX. Para os teóricos do marxismo, o socialismo
– e, na sua sequência, o comunismo – seria a abolição das relações de produção
capitalistas, não a simples aproximação dos rendimentos médios do trabalhador
assalariado das categorias mais bem pagas da sociedade capitalista. A premissa
básica seria a abolição do conceito mesmo de propriedade privada, com a
socialização completa das forças produtivas, colocadas sob controle da
categoria universal alegadamente detentora da solução final para as
contradições fundamentais de toda sociedade de classes, e que por isso mesmo
redundaria na abolição de todas as classes sociais, especificamente na
dominação política de uma classe dominante sobre as demais. Quem não partilha
dessas premissas não pode, legitimamente, pretender-se comunista, ou socialista
marxista. A menos, claro, que pretenda na prática afirmar-se como social
democrata, que seria a versão reformista, light, ou rósea, do socialismo
marxista (e, como tal, denunciada em vários escritos dos que se pretendem
comunistas verdadeiros).
O mais surpreendente, ainda, é
que o velho mestre se mostra singularmente desinformado sobre as realidades do
socialismo real ao redor do mundo, como também especialmente confuso sobre o
tipo de sociedade existente sob o modo de produção capitalista. Perguntado
sobre o que “o socialismo conseguiu no mundo de avanços?”, ele argumentou:
AC: O socialismo é o cavalo de Troia
dentro do capitalismo. Se você tira os rótulos e vê as realidades, vê como o
socialismo humanizou o mundo. Em Cuba eu vi o socialismo mais próximo do socialismo.
Cuba é uma coisa formidável, o mais próximo da justiça social.
Pronunciando-se, logo em
seguida, sobre como ele via a sociedade capitalista, o mestre consegue, em
poucas frases desvendar sua incompreensão total do que seja uma sociedade de mercado
– que pode ser, ou não, capitalista – e de como funciona, de fato, a sociedade
de consumo; ele revela, ademais, uma ignorância fundamental sobre a própria
natureza do processo produtivo – sob qualquer modo de produção, registre-se –, já
opondo-se, de fato, a qualquer avanço tecnológico, sob qualquer pretexto. A
ingenuidade, ou ignorância, é abissal, e surpreende que banalidades desse tipo
sejam recebidas sem qualquer comentário crítico por marxistas e não marxistas
da academia, que teriam, pelo menos, a obrigação da coerência epistemológica e
da adequação dos argumentos aos fatos materiais da vida como ela é. Registre-se
alguns extratos finais, portanto:
AC: A coisa mais pérfida do capitalismo
–por causa da necessidade cumulativa irreversível – é a sociedade de consumo.
Marx não conheceu, não sei como ele veria. A televisão faz um inculcamento sublimar [sic] de dez em
dez minutos, na cabeça de todos (...) imagens de whisky, automóvel, casa,
roupa, viagem à Europa – cria necessidades. E claro que não dá condições para
concretizá-las. A sociedade de consumo está criando necessidades artificiais e
está levando os que não têm ao desespero, à droga, miséria... Esse desejo da
coisa nova é uma coisa poderosa. O capitalismo descobriu isso graças ao Henry
Ford. O Ford tirou o automóvel da granfinagem e fez carro popular, vendia a 500
dólares. Estados Unidos inteiro começou a comprar automóvel, e o Ford foi
ficando milionário. De repente o carro não vendia mais. Ele ficou desesperado,
chamou os economistas, que estudaram e disseram: “mas é claro que não vende, o
carro não acaba”. O produto industrial não pode ser eterno. O produto artesanal
é feito para durar, mas o industrial não, ele tem que ser feito para acabar,
essa é coisa mais diabólica do capitalismo. E o Ford entendeu isso, passou a
mudar o modelo do carro a cada ano. Em um regime que fosse mais socialista
seria preciso encontrar uma maneira de não falir as empresas, mas tornar os
produtos duráveis, acabar com essa loucura da renovação. Hoje um automóvel é
feito para acabar, a moda é feita para mudar. Essa ideia tem como miragem o
lucro infinito. Enquanto a verdadeira miragem não é a do lucro infinito, é do
bem-estar infinito.
Os dois conjuntos de
argumentos são propriamente inaceitáveis por quem quer que examine o mundo
real, seja a situação efetiva na Cuba “socialista”, seja as formas pelas quais
está organizada a sociedade de consumo – que pressupõe uma sociedade produtiva,
em primeiro lugar – em qualquer regime imaginável de organização social da
produção, inclusive o da produção “artesanal”. Tomar suas palavras como
possuindo um grau mínimo de aderência à realidade – o que elas não possuem,
obviamente –, seria como se em Cuba não existisse sociedade de consumo, como se
os cidadãos cubanos não consumissem produtos – de quaisquer origens – e como se
a ausência de uma maior variedade de produtos, ou até a existência concreta de
um regime de penúrias, como aquele registrado na Cuba socialista, fosse a
realização suprema da “justiça social”. O consumo existe em qualquer sociedade
do mundo, de qualquer época histórica e de qualquer sistema produtivo, sendo
aliás inerente à natureza do ser socialmente produtivo que é o homem – e isto é
puro marxismo, estando mais explícito em textos de Engels -- o fato de se estar
sempre avançando na escala produtiva, pela inovação de produtos ou de processos
que permitam oferecer os bens essenciais e, depois, vários bens “supérfluos”,
aos melhores preços possíveis para o consumo da maior parte da sociedade.
No decorrer de um longo
processo histórico, o sistema produtivo que mais próximo se acercou desse ideal
de crescimento sustentado com base em transformações produtivas incrementais –
algumas delas, aliás, revolucionariamente inovadoras – e na distribuição social
dos benefícios desse crescimento foi justamente o capitalismo, não o
socialismo. Daí a resiliência do capitalismo aos desafios revolucionários que
ele enfrentou ao longo do tempo, advindo não apenas de contradições sociais que
são inerentes a toda e qualquer forma de organização social da produção, mas
igualmente de alternativas ideológicas que foram sendo servidas ao longo da
história para tentar conceber um sistema que fosse ou mais eficiente, ou mais
justo e igualitário, ou ambos.
Não é preciso retomar aqui o
resultado efetivo dessa competição entre sistemas e ideias, pois sabemos que a
forma mais disseminada nos supermercados da história foi mesmo, anda que
temporariamente, a do capitalismo, que nada mais é do que uma das formas da
economia de mercado, aparentemente tão desprezada pelo velho mestre Antônio
Cândido. Chega a ser, assim, patético, ler suas considerações sobre a sociedade
de consumo ou sobre o capitalismo, pois elas nada mais revelam do que uma
incompreensão fundamental quanto ao modo de funcionamento das sociedades – de
qualquer sociedade – e do sistema de produção de mercado, inclusive suas formas
capitalistas ou proto-capitalistas. O silêncio de marxistas, de socialistas, ou
de comunistas – assumidos como tais – sobre tais tipos de argumentos pode representar
concordância básica quanto às suas premissas, discordância discreta e não
explicitada quanto aos fundamentos históricos de afirmações tão absurdamente
equivocadas, ou simplesmente incapacidade de raciocinar com base na lógica
elementar e nos princípios da coerência epistemológica. Em qualquer dos casos,
parece suficientemente grave, pois materiais desse tipo do registrado neste
texto elementar de crítica acadêmica circulam de modo amplo pelas salas e
corredores das universidades públicas brasileiras e são comentados nos sites e
blogs mais vinculados a esse universo mental.
3. Comunismo:
apenas um sistema de crenças, sem consistência real
Retomemos, aqui, a questão
central do que pretende ser um debate atinente aos cursos de ciências sociais
de nossas academias: qual é o estatuto social, ou ideológico, dos argumentos em
defesa do socialismo – e por extensão do comunismo – que continuam a impregnar
não só a didática e a docência no universo das humanidades, como também a
estruturação de movimentos políticos que pretendem oferecer um tipo qualquer de
alternativa ao capitalismo realmente existente? A postura deste autor já foi
colocada na seção introdutória, qual seja: o conjunto de argumentos que
sustenta a defesa da doutrina – e das propostas de organização social e
econômica – do comunismo (em seus fundamentos marxistas) remete a um universo
mental que poderia ser chamado de crença ou assimilado às crenças. Estas
constituem uma assemblagem de “explicações mágicas” sobre a realidade que não
respondem a quaisquer testes provados no mundo real, ou seja, que não sustentam
o teste da realidade, mas que ainda assim continuam, como todas as crenças, a
suscitar adesões inquestionadas a suas premissas equivocadas por alguma
necessidade psicológica de seus aderentes de não enfrentar o mundo real.
Resumindo: a pessoa que, hoje
em dia, se proclama comunista – algumas até orgulhosamente – está demonstrando
uma crença num conjunto de preceitos que remete a um universo especial, o do salvacionismo,
um movimento vinculado ao utopismo e a todas as seitas que pretendem ter a
chave mágica do universo, para a salvação da humanidade, com base num conjunto
de princípios de “engenharia social” e de valores não testados nos laboratórios
da realidade. O comunismo (e não apenas hoje em dia) é parente direto das
concepções utópicas sobre a organização social e econômica das sociedades, não
obstante a pretensão de seus proponentes e seguidores de insistir em seu
“caráter científico”. A lógica elementar e confronto com os dados da história permitem
esclarecer e descartar suas afirmações muito rapidamente, ainda mais facilmente
no caso de frases sem sentido como as transcritas aqui de um respeitado
intelectual brasileiro. Uma discussão final, atinente ao problema da apreensão
do mundo real e à questão do registro histórico, tocará nestes pontos, ainda
que de modo sumário.
O próprio da ciência é
trabalhar com um conjunto de hipóteses que deverão, em seguida, ser testadas
para que se comprove sua fiabilidade em face dos dados do real. Pode até
existir uma teoria prévia à formulação das hipóteses, mas o mais comum é que a
teoria apareça após testes repetidos das concepções iniciais, para que daí se
extraiam regras gerais e, portanto, “leis” quase invariáveis de
desenvolvimento. Nem sempre é assim, e algumas teorias sobrevivem mesmo na
ausência de testes comprobatórios, mas pode-se deduzir a fiabilidade de uma
teoria por meio de deduções inteligentes. Por exemplo, é muito difícil observar
a “evolução”, mas é possível aderir à teoria da seleção natural darwiniana, com
base nos registros geológicos e nos dados da história natural (para isso basta
visitar qualquer museu de história natural). Aliás, seria impossível trabalhar
de modo adequado nas ciências geológicas e nas biológicas sem a aceitação dos
princípios básicos da seleção natural. O trabalho de laboratório é todo ele
fundamentado nas ideias darwinianas, que sustentaram gloriosamente os testes do
tempo e da realidade.
Pode-se, por acaso, dizer o
mesmo do conjunto de afirmações que sustentam a crença na “teoria materialista
da história”, na luta de classes como fundamento da evolução das sociedades
humanas? É possível acreditar na “evolução” determinista das sociedades
existentes em direção ao comunismo, como apregoado pela “teoria marxista”? Por
fim: existe alguma base real para confirmar as predições de Marx e seguidores
sobre o “curso inevitável” das sociedades capitalistas em direção ao comunismo?
Os “testes” do tempo e da
realidade, efetuados até aqui nos “laboratórios” dos capitalismos e dos
socialismos realmente existentes, desmentem – não apenas uma ou outra, mas – todas
as afirmações marxistas e leninistas sobre a marcha da história e a evolução
das sociedades. O registro “geológico” do longo – segundo as concepções arrighianas
– ou “breve” – de acordo com Hobsbawm – século XX não permite sustentar,
apoiar, comprovar, de alguma forma corroborar qualquer uma das premissas e
previsões marxistas, que sustentam a fé – não existe outro conceito – no ideal
socialista ou do modelo comunista de sociedade e de organização social da
produção.
Pode-se, assim, desafiar os
marxistas, em geral, a retomar qualquer uma das análises de Marx e de Lênin
sobre o desenvolvimento do capitalismo, ou qualquer uma das suas “hipóteses de
trabalho” sobre a emergência das sociedades comunistas, e, com base nelas, comprovar
que estas análises e hipóteses são, não apenas logicamente dedutíveis de suas
premissas (como ocorre, por exemplo, com a “teoria” da seleção natural), mas
materialmente possíveis a partir de desenvolvimentos empíricos aferíveis (da
mesma forma como ocorre em laboratórios de biologia com as manipulações de
espécies, no caso em exame). Ou seja, pode-se esperar que o socialismo seja o
resultado natural, quase automático, do desenvolvimento e das contradições
internas do modo de produção capitalista e que sua eficácia produtiva seja
comparável ou superior ao do modo imediatamente anterior? Com base em qual tipo
de raciocínio lógico, pode-se afirmar que o “socialismo”, se efetivado, conseguiria
superar contradições inerentes às economias de mercado, em sua aparente
“anarquia” produtiva?
Independentemente, porém, do
registro histórico que comprova o tremendo fracasso material do socialismo
marxista, e do comunismo, no século XX, na tentativa de se criar um modo de
produção “superior”, ou “harmônico”, existe um outro conjunto de testes que se
vinculam ao modo de organização interna de qualquer regime socialista, ou seja,
a seus fundamentos materiais, o que também envolve o aspecto puramente lógico
sobre as formas de estruturação e de funcionamento de qualquer sistema
produtivo baseado nas premissas “econômicas” marxistas. Essa questão tem a ver
com o problema fundamental do cálculo econômico, e com a função dos preços –
como sinalizadores da escassez relativa – num sistema de organização da
produção para o mercado, ou seja, o de qualquer modo de produção concebível em
uma sociedade complexa, seja ela escravocrata, feudal, capitalista ou
“socialista”. Esse problema, insolúvel num sistema socialista puramente
marxista – ou seja, comunista –, já tinha sido tratado desde os primórdios da
revolução bolchevique por um jovem economista austríaco, Ludwig Von Mises, que,
com base numa análise puramente racional dos fundamentos “lógicos” da economia socialista,
concluiu que esta não conseguiria funcionar, justamente, por falharem
princípios básicos da organização racional da produção e distribuição de
insumos, de bens intermediários e de bens finais.
E, no entanto, diriam os true believers da causa socialista e
comunista, a despeito de todas essas “previsões” catastrofistas e condenatórias
do socialismo enquanto doutrina e enquanto forma alternativa de organização
social da produção, o fato é que o socialismo “funcionou” durante setenta anos,
e nada impediria, em princípio, que ele voltasse a funcionar em novas bases,
corrigidos alguns “pequenos erros” que impediram seu funcionamento mais
eficiente da “primeira vez”. Como as apostas e as esperanças dos verdadeiros
crentes na causa socialista não se apoiam em evidências de fato, mas justamente
num sistema de crenças que demanda adesão inquestionada – sem que eles sejam
chamados comprovar suas teorias, um pouco como os criacionistas – não se prevê
o desaparecimento fácil ou imediato desse tipo de falácia fundamentalista.
Não seria, na verdade, a
primeira, nem a última vez, que crenças equivocadas conseguem manter-se durante
tanto tempo no circuito das teorias possíveis: a “teoria geocêntrica”, por
exemplo, comandou durante séculos as reflexões dos homens e as explicações
geográficas, até ser superada por uma melhor explicação, com base na observação
direta da realidade e na experimentação empírica. O socialismo já teve sua fase
de experimentação empírica – que foram as sete décadas de experimentos de engenharia
social desde o advento do modelo bolchevique de organização social da produção
e suas diversas variantes ao longo do tempo – mas seu rotundo fracasso não
parece ainda ter conseguido alterar o conjunto de crenças mantidas pelos true believers.
Uma das razões possíveis pode
ser o fato que a maior parte dos aderentes ao credo não conheceu, não visitou, não
conviveu, não experimentou, de fato, o “modo socialista de produção”, cujas
bases de funcionamento são desconhecidas aos true believers, que continuam a repetir algumas fórmulas “sagradas”
da doutrina original. Nenhum deles, por exemplo, parece próximo de acreditar
que o socialismo marxista, tal como materializado na Eurásia, constituiu o
equivalente funcional de formas modernas do escravagismo antigo ou do
despotismo oriental. Aparentemente, evidências não bastam, quando se decide não
aceitar evidências concretas que vão contra as crenças.
Em todo caso, o autor destas
linhas acredita que um trabalho sério de pesquisa histórica, de constatação de
evidências materiais e alguns poucos raciocínios lógicos poderia ajudar a
desmontar o grau de irracionalidade conceitual e de não adequação material que
caracterizam as crenças socialistas, tal como consubstanciadas em sua vertente
marxista clássica. Ele não tem, entretanto, nenhuma ilusão de que “velhos
socialistas” ou de que acadêmicos enviesados venham a recompor sua estrutura
mental e suas posturas sociais e políticas a partir dessas constatações de fato
e de raciocínio. Ele espera, pelo menos, que um número maior de alunos, talvez
entediados pela repetição aborrecida das mesmas velhas fórmulas ultrapassadas,
possa encontrar um novo campo teórico de explicações científicas que escape do
terreno das crenças para o mais modesto das explicações possíveis em torno da
modernidade capitalista.
Brasília, 2 de agosto de 2011
Resumo: Crítica às crenças fundamentalistas do
socialismo marxista na substituição de um modo de produção resultante de
processos sociais incontrolados e impessoais, como o capitalismo, por um outro,
concebido de maneira ideológica e pretendendo operar um exercício de engenharia
social com base em premissas equivocadas e pressupostos equivocados sobre o
funcionamento de uma economia de mercado.
Palavras-chave: Marxismo; Socialismo; Comunismo;
Fundamentalismo; Capitalismo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário