Mais um dos textos, este bem mais curto, resumindo a informação e análise sobre as plataformas dos diferentes candidatos em temas de política externa e relações internacionais do Brasil nas eleições presidenciais de 2002. Como nos outros casos, nunca foi divulgado, pois eu os fazia para minha própria informação em primeiro lugar, como registro para trabalhos posteriores, o que de fato ocorria em artigos de cunho acadêmico, ou em algum dos meus livros.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 22 de outubro de 2017
A política externa e a campanha presidencial de 2002
Paulo Roberto de
Almeida
A campanha presidencial de 2002 teve início em meio a uma
ameaça de crise financeira, com a provável negociação de um novo acordo de
apoio por parte do FMI, como aliás já tinha acontecido durante a campanha
anterior, em 1998. O debate sobre a crise financeira tinha sido em grande parte
eludido durante a campanha presidencial de 1998, graças a uma atuação
relativamente hábil do Governo FHC. Com efeito, seu governo soube combinar uma
política econômica ortodoxa — juros altos e mecanismos de atração do capital
estrangeiro de curto prazo — ao apoio externo do sistema financeiro
internacional — com promessas de sustentação por parte do FMI e do G-7 — e uma
retórica política tranquilizadora na frente interna — como a preservação do
poder de compra da moeda e a prioridade na luta contra a inflação.
O Governo FHC logrou assim delongar um inevitável
processo de ajuste que já vinha sendo anunciado desde vários meses antes das
eleições pelo candidato Ciro Gomes, em especial no que se refere à opção pela
flexibilização cambial. A preservação da semi-rigidez cambial foi, com efeito,
um dos principais elementos em que se apegaram economistas de “esquerda” e de
“direita” para condenar um dos elementos centrais do programa de estabilização
monetária conduzido desde 1994, e que tinha sido em grande medida responsável
pela vitória fácil do candidato FHC em ambos os escrutínios.
O rompimento da camisa de força cambial, em janeiro de
1999,1 quase
no imediato seguimento do primeiro memorando de entendimento com o FMI — no
final de 1998 — não foi todavia devidamente capitalizado pelos aparelhos
partidários de oposição, talvez porque essa ruptura tenha ocorrido no bojo de
uma perturbação “semi-populista” do sistema político de atuação “normal” dos
grupos partidários no âmbito congressual ou através da mídia, qual seja: o
anúncio da moratória da dívida estadual pelo recém empossado governador de
Minas Gerais, Itamar Franco. Some-se a isso as dificuldades subsequentes de
constituição de uma frente de oposição ao Governo FHC que conseguisse unir
interesses conjunturais de caráter econômico-orçamentário — bastante
fragmentados aliás, em vista de situações diversas no plano administrativo —e
interesses de mais longo prazo no terreno político-eleitoral.
O debate político, em que pese as advertências
formuladas anteriormente pelo candidato Ciro Gomes e por economistas da
oposição, deslocou-se de certo modo dos aspectos conceituais da política
econômica para mergulhar em aspectos mais prosaicos de caráter jornalístico,
como os meandros da desvalorização cambial, os extraordinários lucros alcançados
na passagem ao regime de flutuação por grandes grupos financeiros e a atuação
do Banco Central em ações especialmente nebulosas nesse período nervoso em que
foi mergulhado o Brasil de meados de janeiro a meados de março de 1999. Com a
relativa estabilização da paridade cambial sob o regime de flutuação, a
urgência do debate nessa área perdeu muito de sua natureza “ideológica”,
deixando praticamente a questão de ser explorada pelos partidos de oposição.
Ganharam realce, sobretudo, os aspectos eventualmente lesivos dos acordos com o
Fundo Monetário Internacional e com os países do G-7.
De modo geral, não se pode dizer que os desenvolvimentos
recentes de “política prática” no Brasil, em especial os desdobramentos da
crise financeira e seus efeitos na agenda congressual, tenham alterado de modo
substancial as posições dos ex-candidatos e atuais participantes do jogo
político-partidário no que se refere às principais “soluções” escolhidas por
cada um deles para enfrentar os dilemas da conjuntura econômica e às opções de
mais longo prazo que devem — ou deveriam — orientar a inserção internacional do
Brasil. Grosso modo, o presidente FHC continuou a ser partidário de uma ativa
participação do Brasil nos processos de globalização e de integração regional,
aceitando as implicações da interdependência combinadas a uma moderada postura
de controle no caso dos chamados capitais voláteis. O principal líder da
oposição também continuou a condenar de forma veemente a “submissão” do governo
brasileiro aos “ditames” do FMI e sua abertura ao “capital internacional”, mas
a retórica não esconde uma posição sobretudo pragmática em relação, por
exemplo, aos investimentos diretos estrangeiros.
Pouco a pouco, porém, com a continuidade da fragilidade
financeira do Brasil, sua relativa baixa competitividade nas exportações, os
exemplos patentes de protecionismo comercial (em especial agrícola) por parte
dos principais parceiros nas negociações comerciais externas e, sobretudo, os
desastres ocorridos na Argentina a partir do momento em que se tornou evidente
a insustentabilidade de seu modelo de conversibilidade cambial, os principais
líderes políticos foram assumindo uma postura mais realista em matéria de
política econômica externa, aliás necessária em vista da complexidade dos desafios
que se colocam ao Brasil no plano internacional.
De novo mesmo, na campanha presidencial de 2002, é a
notável diminuição do número de candidatos, com as exceções de praxe (dois
representantes sem qualquer importância social de partidos insignificantes de
extrema esquerda). Como um dos aspectos saudáveis, também, a confirmação de
que, se o jogo político se apresenta ainda relativamente personalizado, a
construção de alianças e os esquemas eleitorais seguem linhas claramente
partidárias, consolidando, portanto, um espectro partidário que passa a
apresentar as linhas clássicas dos sistemas pluripartidários mais avançados:
grandes agrupações à direita e à esquerda do cenário e um bloco de tipo
centrista, ainda que fragmentado, que dá sustentação ao governo em exercício.
Outro aspecto que merece destaque na campanha de 2002 é
a relativa convergência observado em temas econômicos ou mesmo de política
externa, como a demonstrar que as duas administrações FHC conseguiram, de fato,
alterar a agenda interna e externa do País, no sentido de esterilizar os velhos
debates principistas contendo mais slogans do que ideias e suscitar uma
discussão responsável em torno de algumas opções fundamentais para o país:
entre elas se situava a responsabilidade fiscal, o respeito aos contratos
constituídos (e portanto o repúdio à moratória tão facilmente aventado
anteriormente) e a “desideologização” das relações com o FMI.
Do ponto de vista da campanha eleitoral, estavam
registrados seis candidatos, dos quais quatro com estruturas e lideranças
representativas do leque político-partidário, sendo que um deles, o candidato
Anthony Garotinho (PSB), tinha muito poucas propostas no plano da política
externa e das relações internacionais.
De fato, eram três as coalizações e candidatos que merecem
análise detalhada nesse particular: (a) Luís Inácio “Lula” da Silva, desta vez
com uma coalização que incluía, além dos tradicionais partidos de extrema
esquerda, um pequeno partido de “direita” (PL); (b) Ciro Gomes, ainda vinculado
ao pequeno PPS, mas desta vez representando uma coalização trabalhista que
incluía ademais o PDT e o PTB, mas contando também com o apoio de setores do
PFL e do próprio PSDB; (c) José Serra, ex-ministro do Planejamento e da Saúde
nos dois governos FHC, defendendo parte da antiga coalizão governista numa
aliança entre o PSDB e o PMDB.
1. Lula e o novo realismo diplomático
Ainda que partindo na frente de todos os demais
candidatos, tanto em termos de candidatura oficiosa como no que se refere aos
índices de aceitação eleitoral, o candidato do PT e o próprio partido foram
desta vez extremamente cautelosos na formulação das bases da campanha política,
a começar pela aliança contraída com o pequeno Partido Liberal para viabilizar
uma sustentação “centrista” ao candidato tradicional das esquerdas, apoio
personificado no candidato a vice-presidente, o industrial e senador por Minas
Gerais José de Alencar. Lula foi também bastante cauteloso na exposição de sua ideias,
ainda que algumas delas, ainda no início da campanha, tenham sido exploradas
por seus adversários (como por exemplo o apoio às políticas subvencionistas da
agricultura europeia ou a proposta de que o Brasil deveria deixar de exportar
alimentos até que todos os brasileiros pudessem se alimentar de maneira
conveniente). Nessa fase, ele ainda repetia alguns dos velhos bordões do
passado (contra o FMI e a Alca, por exemplo), que depois foram sendo corrigidos
ou alterados moderadamente para acomodar as novas realidades e a coalizão de
forças com grupos nacionais moderados que se pensava constituir de forma
inédita.
Em matéria de política externa, mais especificamente, a
intenção – aliás partilhada com os demais candidatos e, de certa forma,
implementada pelo governo FHC – era a de ampliar as relações do Brasil com
outros grandes países em desenvolvimento, sendo invariavelmente citados a
China, a Índia e a Rússia (sic). No plano econômico, o compromisso – também
expresso pelos demais candidatos – era o de diminuir o grau de dependência
financeira externa do Brasil, mobilizando para tal uma política de promoção
comercial ativa, com novos instrumentos para esse efeito (possivelmente uma
secretaria ou ministério de comércio exterior). Segundo a “Carta ao Povo
Brasileiro”, divulgada por Lula em 22 de junho, o povo brasileiro quer “trilhar o caminho da redução de
nossa vulnerabilidade externa pelo esforço conjugado de exportar mais e de
criar um amplo mercado interno de consumo de massas”. De maneira ainda mais
enfática, nesse documento, Lula afirmou claramente que a “premissa dessa transição
será naturalmente o respeito aos contratos e obrigações do País”.
Depois de algumas ameaças iniciais de se retirar das
negociações da Alca (que seria “mais um projeto de anexação [aos EUA] do que de
integração”), Lula passou a não mais rejeitar os pressupostos do
livre-comércio, exigindo apenas que ele fosse pelo menos equilibrado, e não
distorcido em favor do parceiro mais poderoso, o que constituiu notável
evolução em relação a afirmações de poucas semanas antes. O principal assessor
econômico do candidato, deputado Aloizio Mercadante foi bastante cauteloso na
qualificação das eventuais vantagens da Alca: “Esta
não deve ser vista como uma questão ideológica ou de posicionamento pró ou
contra os Estados Unidos, mas sim como um instrumento que pode ou não servir
aos interesses estratégicos brasileiros” (Valor Econômico, 15.07.02). Os contatos mantidos pela cúpula do PT
com industriais, banqueiros e investidores estrangeiros tendiam todos a confirmar esse novo realismo
diplomático, e sobretudo econômico, do candidato.
De fato, os principais dirigentes do PT começaram, em
plena campanha, a se afastar cautelosamente das propostas tendentes a realizar
um plebiscito nacional sobre a Alca (a ser presumivelmente organizado pela CUT,
pelo MST e pela CNBB), uma vez que ele teria resultados mais do que
previsíveis, todos negativos para a continuidade dessas negociações. De modo
ambíguo, porém, o assessor Mercadante parecia acreditar na possibilidade de um
acordo bilateral com os EUA, sem explicar como e em que condições ele poderia
ser mais favorável do que o processo hemisférico: “é
importante que, independentemente da Alca, o Brasil e os Estados Unidos iniciem
um processo de negociação bilateral direcionado para a ampliação do seu
intercâmbio comercial e a distribuição mais justa de seus benefícios”.
O PT parece ter iniciado, ainda que de maneira
hesitante, o caminho em direção ao reformismo moderado, o que foi amplamente
confirmado pela divulgação de seu programa oficial (disponível no website de
campanha do candidato: www.lula.org.br).
Talvez mais importante para medir a distância entre a antiga retórica militante
e a nova postura moderada seja uma leitura desse programa em confronto com as
resoluções que tinham sido aprovadas em convenção do partido realizado no
Recife, em dezembro de 2001, e na conferência de elaboração de diretrizes
programáticas, realizada no final do primeiro semestre de 2002.2 De fato, o programa constitui uma solução
essencialmente pragmática para encaminhar os dilemas de um partido ainda
relativamente dividido entre os compromissos de esquerda assumidos até 2001 e o
novo realismo necessário a uma agremiação que se coloca como alternativa de
poder.
2. Ciro Gomes e o trabalhismo
reformista: inovação cautelosa
Apoiado numa coligação que unia o seu pequeno PPS aos
“irmãos-inimigos” trabalhistas PDT e PTB, Ciro Gomes lançou-se novamente desde
cedo como candidato da oposição “responsável” ao governo FHC. Ele foi também o
primeiro a organizar o seu website de campanha e apresentar um programa
estruturado, ainda que parcial em determinados aspectos. Ele recomendava, por
exemplo, negociar a Alca “sem pressa e sem medo”, afirmando também que o Brasil
deve fortalecer seu poder de barganha nesse processo negociando simultaneamente
com a UE, a China e a Índia. De fato, para ele, o Brasil “rejeita a ideia de
inevitabilidade da Alca”, pois que a “formação de um espaço das Américas
transcende os interesses apenas comerciais”, mas ele indicava que, em seu
governo, a diplomacia brasileira “insistirá em condicionar a integração
comercial a políticas igualizadoras seguindo nisso o modelo da UE e não o do
Nafta” (sem explicar contudo como tal mudança no formato das negociações
poderia ser materializada).
Essas alianças estratégicas também teriam um sentido
mais elevado, buscando a própria reforma da ordem mundial, uma vez que a nova
diplomacia deveria “aproximar-nos estrategicamente de outros grandes países
periféricos, sobretudo a China e a Índia, e buscar aliados para a luta pela
reforma da ordem econômica e política mundial”. Essa luta seria em prol de “um
mundo pluralista, mais aberto à diversidade de trajetórias nacionais de
desenvolvimento”, sem elucidar, contudo, a aparente contradição entre a busca
de uma coalizão com outros parceiros “periféricos” com o objetivo de preservar
“trajetórias nacionais”.
Ao propor mais especificamente uma política externa
ativa, de “integração do Brasil com o mundo”, o candidato começava por uma
proposta aparentemente em sentido contrário às tendências liberalizantes e
privatizantes dos anos 90 ao afirmar que a “indústria de armamentos será
integralmente estatizada e posta sob o controle das Forças Armadas.” Um certo
irrealismo quanto à relação de forças também se desenhava em uma de suas
principais propostas: “O Brasil trabalhará com os outros grandes países
continentais marginalizados - a China, a Índia, a
Rússia e a Indonésia - para reformar as organizações do sistema Bretton Woods (o FMI, o Banco
Mundial e a Organização Internacional [sic] do Comércio). Atuará, junto com
seus parceiros políticos e econômicos, para impedir que essas organizações
sirvam de instrumentos para a imposição das políticas de desenvolvimento
preferidas pelas potências dominantes e pelos países ricos.” Da mesma forma,
sem considerar as dificuldades práticas no que se refere à reforma da Carta da
ONU, Ciro Gomes pretendia que o Brasil proponha o “revigoramento e
reorganização do sistema das Nações Unidas para refletir as realidades e as
ansiedades atuais, inclusive por meio do redimensionamento do Conselho de
Segurança.”
3. José Serra: continuidade sem
continuísmo
Apoiado numa coalização governista que reunia apenas o
PSDB e o PMDB, como grandes partidos (uma vez que o PFL, desgostoso com o
tratamento dado a sua pré-candidata, a governadora do Maranhão, resolveu
afastar-se do governo), Serra demorou a apresentar seu programa, mas adotou um
atitude cautelosa em relação às políticas e práticas do governo FHC.
Aparentando endossar a maior parte das posições de política econômica e de
política externa da administração que lhe dava apoio político, Serra também
deixava em aberto, como Ciro Gomes, as opções do Brasil no processo da Alca.
De forma geral, sua política externa seria, em grande
medida, uma política econômica externa, com forte ênfase na promoção das
exportações e numa política industrial capaz de substituir importações.
Revelando sua intenção de criar um Instituto do
Comércio Exterior, o candidato Serra confirmou sua intenção de, via incentivos
fiscais, gastos públicos e investimento em infraestrutura, privilegiar a
exportação e a substituição de importações. Ao contrário de outros
candidatos, Serra não vê a globalização como
problema, mas como um dado da realidade, embora enfatize que esse processo deva
ser compatível com os interesses e as possibilidades da economia nacional. A
trajetória desta última precisa ser inserida num contexto progressivo de
redução da vulnerabilidade externa do Brasil, basicamente derivada de sua
fragilidade financeira.
Serra, em lugar de avançar posições principistas ou
slogans políticos contra a Alca, faz um diagnóstico basicamente correto desse
desafio para o Brasil. Como ele declarou em entrevista, a “Alca vai depender mais dos Estados Unidos que do Brasil. Os
EUA são amplamente protecionistas pelo mecanismo não-tarifário e o Brasil não
tem praticamente esses mecanismos” (revista Época,
1/07/02). Ele ostenta, por outro lado, à diferença dos demais candidatos, uma
atitude relativamente cética em relação ao Mercosul, baseado na premissa de que
se avançou rápido demais e de que o Brasil precisaria recuperar sua liberdade
de fazer política comercial sozinho.
Com efeito, na sua mais explícita
crítica ao bloco do Cone Sul, Serra disse que “fortalecer o Mercosul significa
revisá-lo de maneira criteriosa. (…) O Mercosul quis fazer em quatro anos o que
a União Europeia fez em 40. Acabou não dando certo. (…) Mas deveremos enfatizar
a zona de livre-comércio e dar mais liberdade no que se refere à tarifa externa
comum. Até porque assim o Brasil vai poder negociar com o resto do mundo
tratados de livre-comércio autônomos. Hoje, para fazer isso, é preciso levar o
Mercosul junto” (idem).
Em outros termos, pode haver um certo
retorno a políticas dirigistas, com tinturas desenvolvimentistas,
como convém a um antigo expoente do pensamento cepaliano. Pelo exposto,
confirma-se portanto a ideia de que a diplomacia terá forte viés
“economicista”, com o uso das políticas comercial, industrial e tributária como
forma de fazer avançar os interesses exclusivos do Brasil, o que de certa forma
pode significar uma reversão das linhas de política externa seguidas desde a
administração Sarney, baseadas numa aliança com a Argentina e na afirmação do
caráter estratégico do projeto de integração regional.
=
Paulo Roberto de Almeida
Washington, 929: 30/07/2002
Notas:
2. Coletei os programas oficiais e os principais documentos de campanha dos
principais candidatos em meu site acadêmico, www.pralmeida.org,
onde eles podem ser consultados na rubrica “Dossiê Eleições 2002”.
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