Mais de um mês antes das eleições de 2002, eu já tinha certeza de quem iria ganhar, mas não tinha muita certeza quanto às políticas a serem aplicadas pelos companheiros. Por isso mesmo tentei orientar os companheiros, sobre as boas políticas a serem implementadas, mas nem eu dispunha de bons canais de comunicação, nem me cabia "dar ordens" aos apparatchiks do PT. Em todo caso tentei. Por não me terem seguido, eles fizeram todas aquelas coisas que redundaram em perdas para eles e sobretudo para o Brasil.
Apresento abaixo meus conselhos pré-eleitorais aos companheiros.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 22/10/2017
Companheiros, muita calma: trata-se agora de não errar!
As conseqüências econômicas da vitória
(ou: manual de economia política para momentos de transição)
Paulo Roberto de Almeida
(Washington, 947: 22 de setembro de 2002)
1. Princípios básicos da economia
política dos partidos no sistema brasileiro
No momento em que escrevo estas linhas, 21-22 de
setembro de 2002, antes portanto de qualquer definição eleitoral, parece estar ficando
muito claro que o Brasil prepara-se para atravessar uma das mais importantes
fases de transição política em toda a sua história contemporânea, equivalente,
talvez, ao desmantelamento do Estado econômico varguista, supostamente operado
durante os oito anos da administração FHC.
De fato, o País passou a viver, a partir do início
da campanha eleitoral, em meados de 2002, uma situação de nítida recomposição
das forças políticas e da própria estrutura da representação
político-eleitoral, resultando no desmantelamento do sistema político varguista
instalado a partir de 1945. Com efeito, todos os partidos representados no
Congresso, à exceção de um, provinham do ordenamento político tradicional
conhecido no Brasil a partir da era Vargas: um grande partido oligárquico de
direita, eventualmente dividido em uma corrente atrasada e ruralista e outra de
feição mais urbana; um grande centrão, moderadamente reformista; movimentos de
centro esquerda, de inspiração trabalhista ou social-democrática; e os mais que
tradicionais partidos da esquerda socialista – o velho Partidão, reconvertido
em PPS, e o PCdoB, que mesmo sendo anti-sistema, constitui o que mais de
oficial pode haver no cenário político.
Apenas um partido, como se disse, escapa a essa
regra não escrita da democracia brasileira, que faz com que todos eles acabem
sendo dominados por lideranças políticas tradicionais, líderes profissionais
que fazem do jogo político-parlamentar o seu modo de vida e o seu negócio
público, eventualmente por via das práticas também tradicionais do populismo,
do clientelismo, do fisiologismo e de outros “ismos” mais ou menos nefastos do
ponto de vista da verdadeira representação do eleitorado. Esse partido nasceu
de forma independente e alheia ao jogo habitual das transações políticas e
emergiu com uma proposta tendente a transformar o panorama social do Brasil,
tendo conhecido, ao longo dos últimos vinte anos, uma trajetória de sucessos
contínuos, mesmo tendo sido derrotado três vezes na busca do que se chama,
usualmente, “suprema magistratura” do País. Esses sucessos foram dados pelo
crescimento constante em termos de presença capilar nos mais diversos
recônditos de um país imenso, pelo aumento da representação parlamentar, em
todos os níveis, e pela assunção de responsabilidades executivas em unidades
importantes da federação. Não se pode, de toda forma, falar em “derrota” quando
o líder desse partido aumentou, progressiva e constantemente, sua aceitação
junto a faixas cada vez maiores do eleitorado e conduziu o movimento ao centro
do sistema político brasileiro.
Cabe enfatizar essa realidade, inédita e
surpreendente em toda a história política brasileira: esse partido, seja como
referência positiva ou negativa, ocupa uma posição absolutamente central no
sistema copernicano da política brasileira, em torno do qual todos os demais
atores passam a se posicionar, a favor ou contra (não importa), como se ele
fosse o paradigma de fato desse sistema político-partidário. Talvez no cenário
pós-eleitoral essa centralidade venha a retroceder, em termos de forças e pesos
reais na arena parlamentar, mas do ponto de vista político-ideológico ela
parece destinada a perdurar.
Quando se disse que esse partido constitui uma
exceção às regras não escritas da democracia brasileira, isto não significa que
ele mesmo possa escapar às “leis de bronze” dos sistemas de partidos, algumas
delas “codificadas” um século atrás por sociólogos como Robert Michels. Essas
“leis” se traduzem na “rotinização do carisma” – seguindo aqui Max Weber –, na
burocratização do aparelho partidário, na profissionalização dos quadros, na
rigidificação das linhas hierárquicas, na profusão de normas e rituais que
retiram algo do espírito espontâneo dos antigos tempos militantes e idealistas
e, mesmo, na internalização de alguns hábitos pouco recomendáveis – e
anteriormente censurados – dos velhos partidos “burgueses” ou “oligárquicos”.
Trata-se de uma evolução normal, na medida em que os velhos quadros se acomodam
a estruturas de poder e de participação no jogo parlamentar que acabam se
distanciando da vibração e do entusiasmo juvenil dos tempos heróicos de
emergência e afirmação de um partido que, primeiro, era “out-system”, depois
virou anti-sistema e que, ulteriormente, converteu-se em partido do sistema,
ainda que comprometido com a transformação desse mesmo sistema. Tudo isso não
impede esse partido de conservar intacta sua mensagem transformadora e de
operar segundo regras democráticas pouco vistas nas demais agrupações
político-partidárias.
Desenhado o quadro básico da transição política
brasileira, caberia agora capturar, de um ponto de vista analítico, a economia
política da mutação, de maneira a operar da melhor forma possível o salto para
a vitória, e, de outro lado, num plano mais empírico e programático, contribuir
para o debate de teses e propostas de políticas públicas que possam vir a ser
testadas na realidade em algum momento do futuro próximo, de maneira mais
concreta, a partir de janeiro de 2003.
O autor desta análise econômica não-acadêmica não
pertence a nenhum partido oficial, mas pode ser considerado como simpático às
causas “transformistas” que são defendidas pelo novo movimento “paradigmático”
– introduzir mais justiça social no panorama brasileiro, colocar a economia a
serviço da maioria, contribuir para a correção das desigualdades sociais e
regionas do Brasil, favorecer um sistema político marcado pela ética etc. –
ainda que não concorde com alguns dos métodos ou com muitas das políticas
setoriais que vêm sendo avançadas e defendidas por dirigentes ou economistas
desse partido “central”. Entendo, porém, que o receituário de política
econômica proposto pelo partido foi concebido como uma síntese das propostas
apresentadas em assembléia democrática, a serem depois afinadas em função dos
requerimentos de administração concreta da máquina pública, segundo a mesma
perspectiva evolutiva que já determinou a passagem do antigo programa
partidário “maximalista” para um programa de campanha eleitoral moderadamente
reformista e que aponta, portanto, para uma aplicação ainda mais “realista”
dessa plataforma, processo durante o qual deve operar-se a inevitável
compatibilização entre o politicamente desejável e o financeiramente possível,
ou entre o socialmente necessário e o operacionalmente factível.
2. As leis fundamentais da economia política burguesa: devagar com a
louça
O sistema político pode estar sendo transformado de
maneira radical pelo novo centro político, mas este ainda não conseguiu abolir,
no campo econômico, a lei da oferta e da procura. Caberia, por isso, atentar
para o funcionamento dos grandes equilíbrios macroeconômicos ainda em vigor no
cenário brasileiro. Segundo um dos preceitos não escritos do método econômico
voluntarista, o princípio da escassez tem uma aplicação apenas relativa no
receituário prático de política econômica. Ele existe, mas não é um
constrangimento absoluto, de onde decorre que as escolhas dos agentes
econômicos poderiam ser mais bem delimitadas pelos administradores econômicos
do que pelas possibilidades reais do sistema produtivo. Estas possibilidades
podem ser estendidas no limite dos recursos disponíveis, daí as propostas de
voltar a crescer 4, 5 ou mesmo 6%, regularmente encontradas nos discursos e
textos de alguns dirigentes e economistas.
Uma coisa é constatar, no plano da retórica, que o ajuste neoliberal impôs um baixo dinamismo econômico e que
portanto seria preciso, no novo governo, mobilizar a capacidade produtiva
instalada na indústria, na agricultura e nos serviços. Outra, bem diferente é
achar que a proposta de um novo modelo de crescimento – modificando o estilo de
desenvolvimento concentrador e excludente – pode ser feita à base de exortações
e de boa vontade: constatar a “abundância de terras férteis” – elas serão
vertidas para a agricultura capitalista ou para a propriedade familiar? –,
indicar a capacidade não utilizada em importantes segmentos produtivos – o
empresário estaria trabalhando aquém de suas possibilidades, mas por quê,
exatamente? – e lamentar a mão-de-obra qualificada desocupada – formados sem
oferta de emprego no setor – não bastam para superar os limites do crescimento
no Brasil. O discurso de campanha disse apenas que a utilização dos recursos
disponíveis carece de políticas públicas adequadas, sobretudo as fiscais,
creditícias e de abastecimento, mas a introdução de medidas práticas de
adminstração econômica precisa ir além dessas generalidades.
Considerando-se que a
política de abastecimento do futuro governo pode ser a resultante de um
casamento feliz entre as leis da oferta e da demanda – se elas não forem
maltratadas até lá –, restariam as políticas fiscais e monetárias como cerne
das propostas de políticas macroeconômicas. Alguns economistas parecem
acreditar que seria possível aproximar o Brasil do PIB potencial desde que as
políticas “corretas” sejam efetivamente aplicadas. Nâo há nenhum impedimento
teórico a essa crença mas, do ponto de vista prático, será preciso determinar
como recuperar, com o orçamento existente,
a capacidade de investimento público, tão importante para alavancar o
crescimento econômico.
Pergunta-se, aliás, se
esse investimento deve mesmo ser público e, se for este o caso, por que
exatamente, a equipe econômica identificada com a administração FHC
arriscou-se, durante tanto tempo, a sofrer acachapante derrota eleitoral ao
manter baixo nível de crescimento e poucas oportunidades de emprego e renda?
Supondo-se que os atuais defensores do modelo “neoliberal”, ainda que legítimos
representantes da classe dominante e dos interesses do grande capital, não
sejam todos um bando de idiotas e alienados, eles também deveriam ter,
supostamente, interesse em fazer o País crescer a taxas mais altas, inclusive
como forma de perpetuar-se no poder através da criação de empregos e da
expansão da renda agregada. Se eles não o fazem, não deveria ser por mera
ausência de vontade, mas por constrangimentos reais no investimento global,
fatores que por sua vez remetem à baixa taxa de poupança do sistema econômico e
à alta propensão à “despoupança” estatal, notoriamente conhecida nos últimos
anos (ou décadas) de economia política real no Brasil.
Em outros termos, do ponto
de vista fiscal e monetário, aumentar o crédito e os incentivos para o
crescimento e baixar os juros para a irrigação adequada do aparelho produtivo
capitalista não dependem apenas da vontade do ministro da economia ou do
presidente, mas de certos equilíbrios econômicos cujas variáveis não são todas
dominadas pelo governo. Ao contrário: o governo pode ele mesmo constituir um
fator limitador do crescimento econômico, ao “drenar” uma parte dos recursos
necessários para o setor privado investir em novas atividades produtivas. E por
que isso acontece? Porque a oferta e a procura de dinheiro são em grande medida
determinados, não pelas necessidades da sociedade mas, pelas necessidades do
governo, que como sabemos não constitui toda a sociedade (ainda que ele absorva
um terço de tudo o que ela produz).
O novo centro da política
brasileira pode, assim, até achar que vai imprimir uma nova “dinâmica de
crescimento” no sistema produtivo, mas ele não poderá negar que a maximização
da capacidade manipuladora do governo – inclusive para aplicar “boas” políticas
– resulta numa minimização das possibilidades de investimento do setor privado,
o único, finalmente, que produz empregos não inflacionários no País (no sentido
em que a oferta atende, supostamente, a uma demanda real, caso contrário o
capitalista não arriscaria o seu dinheiro).
Por outro lado, a maximização
da “utilidade marginal” do capitalista, por via de
políticas públicas de financiamento e de políticas setoriais de indução do
investimento e produção, resultam na minimização de recursos públicos para fins
de atendimento da população mais carente, que seria supostamente objeto de
atenção prioritária no novo governo. Não sendo elásticos esses recursos, a não
ser pela via da indução inflacionária (isto é, irresponsabilidade
emissionista), corre-se o risco de, por um lado, distribuir dinheiro para quem
já é rico e de, por outro lado, deixar ao relento quem realmente precisa, que
são justamente aqueles setores não organizados da sociedade que menos chance
têm de fazer passar suas reivindicações (por certo difusas e comuns aos milhões
de excluídos existentes pelo Brasil afora) à frente das reinvindicações e
programas muito precisos apresentados por aqueles grupos de interesse
organizados que conseguem provar que tal ou tal atividade setorial será
responsável pela criação de tantos empregos diretos e milhares de outros
indiretos.
Que tal se, por uma vez, o
novo governo deixasse agir sozinha a lei da oferta e da procura? Existe,
obviamente, um tremendo preconceito contra a economia política burguesa, mas
porque não usar essa lei contra a
burguesia, que sempre vem reclamar do governo algum tratamento especial que a
dispense, justamente (e sem ironia), de enfrentar essa lei? Registre-se,
apenas, que a “lei” antecede e ultrapassa o reino burguês e a dominação
capitalista conhecidos nos últimos cinco século, sendo mais propriamente um
mecanismo condizente com o funcionamento de mercados livres. Mas, se o novo governo
desconfiar dos mercados e pretender fazê-lo “funcionar melhor” – em benefício
dos “pobres”, entenda-se – o mais provável que ocorra é que os beneficiários
desse tipo de intervenção estejam mais bem situados nos estratos superiores da
distribuição de renda do que nas camadas inferiores. Não há uma teoria
econômica conhecida que explique esse fenômeno curioso – a despeito do famoso
senso comum da “lei das conseqüências involuntárias” – mas a experiência
histórica tem indicado que políticas ativas em certos setores de atividades
tendem a gerar fluxos de renda que são capturados pelos operadores principais
daqueles setores, que raramente comportam excluídos e pobres em geral entre
seus clientes imediatos.
3. Princípios de economia política e do imposto: David Ricardo
vingativo?
Hoje, como nos tempos de Malthus e David Ricardo, os
impostos representam uma parte da produção e do trabalho de um país, colocados
à disposição do governo, e que são, em última instância, uma subtração ao
capital e à renda nesse país. Naqueles tempos, os principais impostos
existentes eram aqueles sobre a renda da terra e as taxas aplicadas a produtos
importados (até o início do século 20, a principal fonte das receitas do
Estado). A economia moderna inventou uma quantidade incrível de novas fontes de
renda para o Estado, a começar pelos impostos indiretos sobre todo tipo de
produção (geralmente sobre valor agregado ou venda de produtos ou serviços), o
imposto direto sobre a renda pessoal e diferentes taxas sobre transações e transferências
de ativos.
David Ricardo era um crítico dos impostos, uma vez
que eles tendiam a aumentar o preço dos produtos (penalizando portanto os
trabalhadores, ou pelo menos aumentando o seu custo de reprodução, como Marx
aprendeu com ele), reduzindo, por outro lado, a renda disponível para
investimentos. Em nenhum momento ele concebeu o sistema de impostos como
mecanismo redistributivo inter-classes ou como instrumento corretor de
desigualdades, muito embora ele não fosse desatento a esse aspecto também. Esse,
porém, é o aspecto que mais tende a ser ressaltado nos conceitos elementares da
taxação, tal como apresentados nos manuais econômicos do novo centro político
brasileiro. Nessa visão, o imposto não é simplesmente um expediente menos que
perfeito para atender a algumas das obrigações sociais da administração
pública, mas a forma principal pela qual pode ser introduzida a justiça social.
A regra nº 1 parece ser: “eles são ricos, por isso
devem pagar”, o que traduz uma percepção vingativa do mundo e das relações
sociais. A regra nº 2 parece rezar: “se nós somos pobres, é porque nosso
trabalho foi expropriado pelos ricos”, daí a necessidade de não apenas aumentar
os impostos sobre o capital, como também elevar salários e os benefícios
sociais, na certeza de que isso vai corrigir as distorções acumuladas ao longo
de anos e anos (décadas?; séculos de extração de mais valia?) de crescimento
econômico segundo um modelo excludente e concentrador.
Uma derivação dessa segunda regra é a que se aplica
ao comércio exterior e aos investimentos estrangeiros e está excelentemente bem
refletida no comentário do líder do MST ao argumento da Embaixadora dos EUA,
quando da entrega dos resultados do plebiscito sobre a Alca, sobre a pobreza
persistente na América Latina: “só existem esses 80 milhões de pobres porque as
multinacionais norte-americanas vêm aqui nos explorar”, o que justifica
plenamente, portanto, a manutenção de altas tarifas na importação e várias
normas restrititvas ao investimento direto estrangeiro. Os industriais da FIESP
agradecem tão zelosa defesa dos seus interesses e mandam avisar que vão, sim,
aproveitar a deixa para defender a manutenção de altas tarifas e algumas outras
“reservas de mercado” para os capitalistas nacionais e que, com seus outros
colegas do IEDI, vão oferecer estudos e propostas para justificar políticas
públicas “ativas” em seus setores de interesse (se possível todos eles, da
extração da borracha à indústria eletrônica, do setor bancário aos estaleiros
navais).
O novo centro político seria em princípio favorável
a essa orientação ativista da política industrial, que promete ser seletiva e
vertical, e que pelo visto deve privilegiar o setor microeletrônico, apontado
como o grande vilão da balança comercial. Apesar de que se proclame a vontade
de não criar novos cartórios, podemos ter certeza de que os candidatos já estão
articulando seus novos projetos de investimentos com o cálculo já embutido dos
ganhos adicionais a serem obtidos com isenções fiscais e outros incentivos
tributários e creditícios. O próprio David Ricardo, se vivo fosse, se
surpreenderia com essa contradição econômica que consiste em taxar o conjunto
da sociedade para entregar o dinheiro a quem já é rico.
A justificativa para esse tipo de comportamento
pouco racional seria a de que, ao estimular atividades produtivas produtoras de
emprego e renda, são gerados novos fluxos de renda e, ainda que os ricos fiquem
um pouco mais ricos, o Estado pode então taxá-los de maneira adequada para
transferir esses recursos aos grupos sociais mais necessitados. O problema,
como sempre, será o de escolher os ganhadores desse jogo administrativo –
alguém, afinal, precisa dizer, com a sapiência dos números oficiais e uma
concepção esclarecida do processo histórico da industrialização, quem tem direito
ao maná – e de explicar a todos os demais como e por que apenas alguns são
beneficiados. Nada contra esse exercício de imaginação, mas convenhamos que a
receita não é nova, tendo o mais recente exemplo de planejamento indicativo
ocorrido sob a República dos militares, por acaso o modelo perfeito de
concentração de renda e de forte aumento nas desigualdades distributivas.
Trata-se, talvez, de uma nova versão da teoria
econômica do “fazer o bolo crescer primeiro, para depois distribuir”, ainda que
se possa, obviamente, tentar uma síntese dialética entre os dois métodos,
crescer e distribuir ao mesmo tempo, ainda que essa economia política do
possível seja extremamente difícil na sua dosagem apropriada. A distribuição,
nas atuais condições orçamentárias brasileiras, só pode acontecer com novas
fontes de receita ou com arrecadação mais eficiente, o que é uma possibilidade
teórica real, mas dependente de certas variáveis que não serão totalmente
controladas pelo novo executivo.
Quanto ao aspecto “externo” da economia política do
imposto, a intenção iria justamente no sentido inverso ao da desgravação
tributária e do incentivo às atividades selecionadas no plano interno:
manutenção de alta proteção tarifária e de regras e normas de acesso
condizentes com a preservação da soberania nacional, mesmo se em detrimento do
bem-estar da maioria da população. Aqui se pensa que o imposto de importação e
as barreiras de acesso ao investimento estrangeiro apresentam virtudes
“punitivas” contra o capital “espoliativo” vindo de fora, quando as únicas
desvantagens ficam com o próprio consumidor brasileiro (eventualmente também o
trabalhador, privado de uma nova fonte de emprego, ao dificultar-se o
tratamento nacional ao investidor estrangeiro). Como essa visão tende a garantir
que não haverá mesmo uma Alca anexacionista (ou pelo menos não com a presença
do Brasil), o resultado previsível é a continuidade das linhas tradicionais de
industrialização substitutiva, com pleno aproveitamento das possibilidades do
mercado interno. De resto, cabe continuar brigando na OMC para a liberalização
dos mercados agrícolas, talvez mais bem tratados na relação política mais
equilibrada entre o Mercosul e a UE, um bloco comercial dotado do senso prático
da correção das desigualdades socio-regionais (pelo menos para os seus próprios
membros).
4. A organização social da produção ao estilo do programa de Gotha
As evidências empíricas das aventuras econômicas
conduzidas sob o governo de Salvador Allende e na primeira fase de François
Mitterrand indicam que o novo centro político tenderá a atuar mais segundo as
linhas de Felipe Gonzalez e de Jacques Delors do que em função de um programa
maximalista que tenderia a proclamar “de cada um segundo sua capacidade, a cada
um segundo suas necessidades”. Ainda asim, parece haver uma tendência a
acreditar que a conformação de um modelo “democrático e popular” de gestão
econômica poderá superar alguns dos limites materiais colocados à economia
real.
Como isso poderia ser feito? Talvez negociando
diretamente com a burguesia nacional (o aumento dos investimentos com o máximo
possível de oferta de novos empregos), com os banqueiros especuladores (o
alongamento da dívida interna, por exemplo) e com os investidores estrangeiros
(trabalhando com eles na seleção da melhor alocação de fatores mobilizados no
projeto de internalização de capital, maximizando o aproveitamento da dotação
interna e das possibilidades de exportação). Tal tipo de solução seria perfeito
se a teoria econômica voluntarista não se chocasse de frente com o que se
poderia chamar de “equação Mané Garrincha”, aquela que faz depender o resultado
esperado da boa vontade do adversário (este representado pelos mesmos
personagens acima referidos, que parecem preferir guardar sua própria margem de
manobra, sem depender da consciência esclarecida de algum burocrata
governamental).
Não que seja terrivelmente difícil induzir
capitalistas nacionais e estrangeiros a investir numa pujante economia
nacional, com promessas de retornos ampliados, pois que tudo estará sendo feito
para ampliar o mercado interno. Mas o problema é que essa indução sempre vem
acompanhada de pedidos de favores especiais, os mesmos referidos acima sob a
forma de isenções fiscais, de créditos tributários e outros mecanismos de
“facilitação de negócios”. A experiência dos anos 1990 conheceu fartos exemplos
desse tipo de política industrial, geralmente feita por governadores à cata de
alguns empregos a serem criados por multinacionais chantagistas. Caberia agora
fazer um balanço honesto dos resultados da “guerra fiscal” desse período, para
ver quanto custou cada emprego criado e avaliar se não teria sido melhor fazer
esforço similar na direção da formação da mão-de-obra e na capacitação técnica
da população, em primeiro lugar mediante programas universais de educação
ampliada para os setores mais desfavorecidos.
O ambiente regulatório das relações sociais de
produção na fase de transição para uma economia democrática e popular pode vir
a chocar-se, igualmente, com demandas conflitantes e contraditórias no plano da
legislação trabalhista, na qual o neoliberalismo neodefunto operou, ao longo
dos últimos anos, uma não tão grande (mas certamente lenta) transformação, no
sentido da flexibilização das relações contratuais como forma de incrementar as
chances de empregabilidade (aqui interessando apenas o mercado formal).
Nesse campo, os desafios são gigantescos, sobretudo
no terreno do mercado de trabalho informal, ou pouco qualificado, onde a
presença sindical é nula ou marginal. Os problemas mais graves de pobreza e de
exclusão se encontram aliás nesse setor, onde as regras contratuais sequer
encontram aplicação. A menos que o Estado pretenda organizar uma NEP da fase de
transição, caracterizada por uma “economia filantrópica” com fortes injeções keynesianas
na demanda agregada (o que parece orçamentariamente difícil), a solução desse
imenso problema passa justamente por mais flexibilização do que por mais
regulação. Tal tipo de proposta pode chocar mais de uma consciência preocupada
com o funcionamento do mercado de trabalho, mas não se trata aqui de atender
nenhuma teoria econômica ou alguma conveniência ideológica, e sim de resolver
uma tragédia nacional, que é a auto-exclusão do mercado de trabalho de imensos
contingentes de brasileiros que simplesmente não encontram ocupação por
“desqualificação” absoluta. A regulação e os investimentos nacionais ou
estrangeiros, para eles, têm influência nula, zero completo.
O problema, para o novo centro político, é que
programas ao estilo de Gotha, de tendências lassalianas ou não, se dirigem a
trabalhadores organizados e já integrados ao mercado formal, aliás dotados de
um mínimo de proteção social e aspirando à conquista do poder político (que
está, como se sabe, ao alcance da mão). A realidade da exclusão social do
Brasil recomendaria trabalhar com um programa pré-Gotha, condizente com as
necessidades mais elementares das grandes massas ditas subalternas: educação,
saúde, saneamento básico, acesso à segurança e à justiça, enfim aqueles
requisitos mínimos da cidadania que parecem ainda ser uma miragem para grandes
contingentes da população.
Por isso, a grande missão histórica do novo
paradigma do sistema político no Brasil não precisaria ser – ou pelo menos não
deveria ser – ajudar a burguesia nacional e os capitalistas estrangeiros a
ficarem mais ricos, mas tão simplesmente implementar políticas universais que
seriam suscetíveis de tornar os pobres menos pobres, de fazer com que as
crianças das escolas públicas tenham uma educação de qualidade e, de modo geral,
diminuir a desigualdade de chances nos mercados laboral e educacional. Se
apenas isso fosse feito, já seria uma imensa revolução social no Brasil,
totalmente compatível com o espírito e a letra do programa do novo centro
político.
Washington, 947: 22 de setembro de 2002
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