Desde meados de 2003 eu estava trabalhando no núcleo central do governo Lula, numa coisa que se chamava, precisamente, Núcleo de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, o que nunca me impediu de formular julgamentos essencialmente críticos sobre a patota que alimentava sonhos de monopólio do poder, que eu ainda tentava transformar num projeto de governo, como revelado no trabalho abaixo.
Do projeto de poder a um
projeto de governo
Paulo Roberto de Almeida
Doutor em ciências sociais
Brasília, 27 de janeiro de 2004
revista Espaço Acadêmico (Ano
III, nº 33, fevereiro 2004)
1. A “Atlântida” do projeto nacional
Mistério
insondável parece ser o da “Atlântida” dos projetos de governo do maior partido
do Ocidente, atualmente ocupando o governo no maior país da América do Sul. Em
algum momento de um passado indefinido, ainda não identificado exatamente pelos
guardiães dos registros históricos e das coordenadas geográficas, esse imenso e
vibrante continente, rico em idéias mágicas, regurgitando de vontade política e
submergido num mar cartorial de projetos nacionais, parece ter-se perdido nas
brumas de um cataclismo obscuro e incomensurável. Os vagalhões provocados pelo
que deve ter sido uma ruptura fundamental das placas geológicas do projeto de
governo permaneceram aparentemente indetectáveis nos sismógrafos dos
observadores políticos e com isso a Atlântida do projeto nacional desapareceu
da vista dos cartógrafos.
Tudo indica que o
projeto de governo, se algum dia existiu, foi tragado pela vitória eleitoral,
permanecendo em seu lugar apenas o projeto de poder. Pelo menos foi o que
disseram alguns arautos do ancien régime,
mas tudo pode não passar de lutas inter-clânicas que não deveriam impedir esse
maior partido de apresentar o seu projeto de governo. O curioso é que não
faltavam idéias e concepções sobre como deveria ser o projeto nacional. De repente,
tudo isso desapareceu e ficamos com a administração do que é possível e uma
grande esperança carente de resultados efetivos.
Como isso foi
possível? A despeito das diretrizes de governo do primeiro semestre de 2002,
dos compromissos prometedores firmados em meados do ano, das propostas
medianamente claras enunciadas logo após a vitória, do trabalho de diagnóstico
e de sistematização de propostas de toda uma equipe de transição no final desse
mesmo ano e de um rico discurso de posse no primeiro dia de 2003, a linha de
continuidade entre a conquista do poder e a administração do governo parece ter
se rompido em algum ponto desse itinerário, sem que seja possível, agora, ver
de modo claro quem cortou o fio de Ariadne ou quem embaralhou as estrelas de Ulisses.
Perdido nas profundezas do mar do Estado real – e não aquele imaginado nas
pranchetas oceânicas da arquitetura oposicionista ‑ , o projeto de governo, se
existente, ainda está tentando alcançar as praias de Ítaca, mas o rumo é
indefinido. De fato, o governo navega em sua própria odisséia, sem que se saiba
quando e aonde, exatamente, ele quer ou pretende chegar.
Sim, sabemos das
linhas básicas do grande plano estratégico: desenvolvimento com inclusão
social, mas a carta de navegação — os comandantes antigamente falavam de
“derrota”, ou seja, curso ou itinerário — aparece com imensos claros de mar
bravio e muitas terras incógnitas. Enfim, segundo alguns representantes do ancien régime, por certo maldosos, o
partido da reforma tinha um projeto de poder, mas não consegue apresentar um
projeto de governo. Será isso verdade?
Seria possível
desmentir esses oposicionistas e até mesmo alguns antigos aliados, hoje mais
preocupados em redigir manifestos de protesto do que em ajudar a conceber
planos de governo? Alguém poderia dizer qual é o projeto de governo da atual
maioria e, se for possível, não de forma reativa ou simplesmente
circunstancial, mas com base nos grandes princípios de atuação do partido da
reforma, naquelas diretrizes de transformação da sociedade brasileira que
sempre constituíram sua marca distintiva no panorama político nacional?
Não tenho, nem
posso pretender ter, nenhuma pretensão de formular um projeto de governo, seja
de encomenda, seja por vontade própria, uma vez que não sou membro nem aspirante
a membro de qualquer partido, pretendendo, ao contrário, continuar ostentando
minha virtual independência de opinião e julgamento. Mas posso, talvez, tentar
alinhar alguns elementos de um eventual projeto de governo, uma vez que sou
membro da tribo dos sociólogos, aqueles mesmos que, segundo Mário de Andrade,
praticam a arte de tentar salvar rapidamente o Brasil. De resto, como cidadão
ativo e (aparentemente) dotado de reflexão própria, partilho muitas das
preocupações sociais ostentadas pelo partido da reforma, o que me dá, pelo
menos, credenciais intelectuais, digamos assim, para me aventurar em terreno
nunca dantes navegado em meus trabalhos de puro onanismo sociológico.
2. Reversão de expectativas
Eu começaria,
talvez, pelo lado inverso de um programa de governo, isto é, pelo que NÃO
deveria conter, numa hipótese provocadora, um programa de governo. Com efeito,
acredito que seria ilusão esperar que um governo, qualquer governo, possa fazer
tudo pela sociedade. Como sabemos, sua capacidade de transformação da sociedade
é limitada, sua eficácia duvidosa e os seus meios bastante precários (a
despeito da voracidade orçamentária). Em uma palavra: o governo é poderoso, mas
não é onipotente, muito menos omnipresente e, sobretudo, não é onisciente (a despeito
de bons serviços de estatística e de alguma capacitação em coleta de
informações).
Por isso, um
programa de governo não precisaria ser exaustivo ou absolutamente abrangente,
ainda que assim o recomenda a tradição política. A essa regra não escrita do
caráter totalizador dos programas de governo parecem se conformar os líderes
brasileiros, pelo menos nos últimos 70 anos. De fato, houve tempos, no Brasil,
em que o governante julgava que sua missão era a de abrir estradas. Depois,
como o avanço do “iliberalismo” (ou do “social-desenvolvimentismo”), a partir
dos anos 30, se julgou que o Estado deveria ocupar-se um pouco de tudo, não
apenas as funções clássicas da manutenção da ordem, da segurança e serviços
públicos básicos, mas também a promoção do desenvolvimento, quando não o
empreendedorismo direto, na gestão de atividades produtivas ou de serviços
diversos (que em outras épocas tinham ficado sob domínio privado, como
transportes e comunicações).
A crise fiscal do
Estado “keynesiano”, a partir dos anos 70, mostrou os limites da ação estatal,
que de fator de estímulo à atividade econômica, passou a ser, em muitos casos,
um elemento de “deseconomia”, não só no setor público mas crescentemente também
nas áreas exclusivamente controladas pelo setor privado. Taxação excessiva, overregulation, exigências burocráticas,
instituições precárias ou deficientes, enfim, externalidades negativas
acarretadas por altos custos de transação, são os principais elementos dessas
disfunções estatais que afetam, por vezes profundamente, a atividade dos
agentes econômicos e, sobretudo, a vida dos cidadãos comuns.
Por isso se
deveria talvez partir de uma nova concepção de programa de governo que se
propõe, pelo menos parcialmente, não formular novos campos, mecanismos e
instrumentos para a atuação e intervenção do Estado mas, quiçá, retirar o
Estado da economia e dos setores mais dinâmicos da vida social. Quem poderia,
por exemplo, negar o fato essencial de que hoje, no Brasil, o Estado
converteu-se, na verdade, no principal “obstaculizador” do processo de expansão
do setor produtivo, o único criador de riquezas e disseminador de renda. Poucos
gostam de admitir que o Estado, em lugar de ser um “redistribuidor” eficiente
da riqueza social, tornou-se um concentrador altamente voraz dessa mesma
riqueza, retirando assim recursos que poderiam estar sendo empregados em atividades geradoras de emprego e de
renda.
Poucos governos
concordariam, assim, em que um bom programa de governo poderia começar por um
planejamento de “retirada estratégica” do Estado de setores nos quais ele
tornou-se disfuncional e/ou nos quais ele sequer deveria ter entrado. Decisão
difícil essa, mas certamente corajosa, em que um governo reconhece que não pode
fazer tudo, e se empenha então em fazer um “controle dos gastos públicos”. Mas
esse controle não quer dizer, simplesmente, combate à corrupção, à ineficiência
da máquina estatal, à incompetência e o desperdício de dinheiro público, mas
basicamente a redução das despesas e reconversão estrutural das finanças públicas.
Se houver
concordância quanto ao diagnóstico da disfuncionalidade atual do Estado para os
fins do desenvolvimento econômico e social do Brasil, então não será difícil
admitir que um bom programa de governo poderia começar, não pelo que o Estado
pode fazer para o bem de todos e a felicidade geral da Nação, mas sim pelo que
o Estado pode deixar de fazer para
concorrer, justamente, para o bem geral dos cidadãos e dos agentes econômicos.
Minha primeira recomendação, portanto, seria por uma aceitação honesta,
sincera, e quem sabe até entusiasta, do princípio de que um programa de governo
NÃO precisa comportar tudo o que um governo é humanamente possível de fazer
(geralmente bem, mas de forma crescentemente freqüente, mal).
Um novo programa
de governo pode ser também um esforço para que o Estado NÃO faça mais tudo o
que, hipoteticamente, a imaginação criadora dos políticos acredita que ele deva
idealmente fazer. A “retirada estratégica” do Estado pode, em certas
circunstâncias (ou até mesmo como tendência “estrutural” dos tempos modernos),
constituir-se em um bom programa de governo. Pode-se, por exemplo, condenar o
“tatcherismo” econômico, sem deixar de reconhecer que a administração britânica
conservadora dos anos 80 do século passado, recolocou o Reino Unido no mapa dos
investimentos globais e retirou-a do itinerário de declínio que já tinha virado
uma indústria acadêmica nas belas universidades daquele reino. Não tenho,
porém, nenhuma ilusão de que essa orientação inovadora encontre guarida nos
partidos no poder ou nas lideranças políticas do maior país da América do Sul.
3. Ajuste estrutural das intenções de
governo
O que, então,
poderia, ou deveria conter, um programa de governo? Não farei aqui digressões
teóricas ou generalizações sociológicas sobre o que pode ou deve conter um
programa de governo supostamente “ideal”. Como não sou conselheiro do príncipe,
farei tão simplesmente algumas sugestões pessoais em torno do que poderia
constituir um eventual programa desejável de governo para uma administração
que se coloca como missão a inclusão social e que se organiza em torno da
hegemonia ideológica da reforma não-excludente (para empregar uma terminologia zeitgeist).
Deveríamos
começar pelo básico e pelo factível, o que implica em operar uma
seleção (necessariamente limitada) das iniciativas nas quais (ou em torno das
quais) o governo poderia atuar de maneira modesta e racional (mas por vezes com
recursos concentrados), consoante as premissas fundamentais que sempre guiaram
a ação do PT.
O partido foi criado
e cresceu exponencialmente com a missão histórica de preconizar um tipo de
mudança estrutural na sociedade brasileira que tem a ver com os conceitos de igualdade e de justiça social. Este é o seu compromisso
básico com o povo brasileiro e a ele o partido deve voltar agora que ocupa
o poder (e o governo, cumpre não esquecer). Mas, o longo caminho para o poder
foi sendo marcado, igualmente, pelo crescimento institucional do aparato
burocrático do partido que, como toda a burocracia, tende a criar suas próprias
razões e justificações “existenciais”. Daí o crescimento correspondente de
“programas de governo” que não só aumentam de tamanho mas tendem a assumir ares
de complexidade e de “profundidade”, uma vez que o partido precisa provar a si
mesmo, e a uma parte da sociedade (os chamados “formadores de opinião”), que
ele é capaz de efetivamente governar a máquina política complexa em que se
converteu o moderno Estado brasileiro. A partir de um certo momento o que era
assessório se apresenta como essencial, e o partido tende a esquecer o que era
básico.
O básico, não
esqueçamos, era justiça social e um pouco de igualdade, não no modelo ingênuo
do distributivismo principista, que atua sobre os estoques antes que sobre os
fluxos de riqueza social, mas no sentido de igualdade de oportunidades — que só
pode ser dada pela educação — e de correção das desigualdades gritantes, via
maciços programas de investimento social. A este básico temos de agregar
demandas derivadas do quadro de anomia social que degenerou em índices
elevadíssimo de delinqüência social, urbana mais precisamente, mas que
contamina progressivamente todo o tecido social (em vista da corrupção maciça
que campeia em certos setores, como o uso da máquina pública). Em outros
termos, a população brasileira deseja bem-estar
e segurança.
Ora, o Estado
brasileiro atual parece ser totalmente incapaz de prover um ou outro desses
bens públicos, em quantidades razoáveis ou comensuráveis com as necessidades da
população, o que nos leva a examinar agora o que pode ser factível de ser incorporado num programa de governo credível.
4. Uma proposta modesta de projeto de
governo
Qualquer projeto
de governo que não pretenda navegar pela ilha da utopia, precisa partir das
circunstâncias presentes e das condições concretas, ainda que arriscando-se a
cair num certo conjunturalismo. Pode-se concentrar a análise da conjuntura em
torno de três dimensões da ação governativa: a econômica, a política e a moral
(ou ética). Ora, a conjuntura econômica apresenta-se, agora, como razoavelmente
satisfatória (em vista do bom trabalho realizado no sentido de se consolidar a
estabilização e preparar as bases do crescimento sustentado), o cenário
político tende a abandonar o estado de incertezas em que esteve mergulhado nas
últimas semanas de 2003 (com a definição, no início de 2004, de uma nova equipe
de conselheiros do príncipe) e o cenário moral, ou ético, que corria o risco de
criar uma sensação de déjà vu ou de
leniência com pequenos desvios de conduta, parece recuperar a imagem de correção
que constitui provavelmente o principal capital político da liderança
reformista.
Com efeito, do
ponto de vista da economia, ao contrário do que vêm dizendo os críticos mais
renitentes (que, por acaso, são antigos e/ou velhos aliados da causa), a postura
assumida pelo governo, a despeito dos riscos inerentes ao baixo crescimento e o
escasso potencial de criação de empregos, tem sido capaz de enfrentar os atuais
desafios e incertezas nos planos interno e externo. Os economistas “de
oposição”, propositores de uma política desenvolvimentista e distributivista,
falharam redondamente, até aqui, em propor alguma estratégia factível de gestão
econômica alternativa, que logre assegurar estabilidade e que promova o
crescimento, dentro das limitações
empíricas existentes (que são totalmente ignoradas por esses críticos).
Do ponto de vista
da política, por outro lado, não há como deixar de reconhecer que o sistema
teve de assumir os “custos administrativos” de um processo de transição inédito
para os padrões da política brasileira, com desajustes setoriais que deverão
ser a partir de agora absorvidos pela maior experiência da nova equipe.
Espera-se, portanto, uma sintonia mais fina na governabilidade, o que foi
difícil de assegurar na constituição do primeiro time de assessores, fruto de
uma composição partidária específica ao momento da subida ao poder. No plano
moral, enfim, o desafio é o de introduzir um novo estilo de fazer política –
consoante aliás velhas receitas partidárias – no sentido de se dar combate implacável
à corrupção, dentro e fora do governo, e de se colocar a ética pública como um
dos princípios guias do comportamento governamental.
Tais observações
derivam da constatação que autoridades públicas desenvolvem manifestações de
autismo político que as tornam surdas aos reclamos da planície. Muitos líderes
(até bem intencionados) são levados, uma vez no cimo do poder, a galgar ainda
mais alto, indo literalmente até os limites da estratosfera, perdendo o contato
com a realidade, que apenas a convivência com pessoas normais pode prover. Os
áulicos e cortesãos são propensos a elogiar, justificar e racionalizar cada
ação do governante, o que obviamente só tende a aumentar a entropia em que todo
poder central vive.
Sem mais
conjunturalismos administrativos, caberia agora propor elementos de reflexão
para uma possível proposta de governo. Trata-se de combinar, aqui, modéstia e
ousadia, já que se deve ter presente o alerta inicial de que o governo não pode
fazer tudo, nem ostentar pretensões exageradas. Por isso, uma recomendação
razoável seria ater-se a um número limitado de objetivos concretos que
correspondem ao compromisso histórico do partido da reforma: justiça social e
distribuição. Esses objetivos macro podem ser representados pelo atingimento de
metas quantificáveis em campos bem determinados, um pouco como no caso das
chamadas “metas do milênio”. Esses campos poderiam ser: educação, saúde,
infra-estrutura social e segurança pública.
Se há um consenso
entre especialistas e economistas do desenvolvimento é sobre o aspecto
estratégico que representa a educação
formal e a capacitação profissional na elevação dos padrões de produtividade do
trabalhador brasileiro, único meio de aumentar sua renda pessoal, expandir o
bem estar familiar e promover uma mudança gradual nos coeficientes absurdamente
iníquos de distribuição de renda codificados no indicador de Gini. Propõe-se,
portanto, que a melhoria da qualidade do ensino público, sua contínua
universalização e aprofundamento curricular nos ciclos elementar, médio e
técnico-profissional constitua o núcleo central das atividades de um governo
comprometido com a inclusão social. Articuladas com as políticas educacionais,
federal e setoriais, devem andar as políticas de assistência social direta e de
complementação indireta da renda, com o objetivo de paliar as carências sociais
mais graves (inclusive do ponto de vista da ação afirmativa), num contexto no
qual os efeitos da qualificação educacional demoram a apresentar resultados.
A política de
educação aqui contemplada pensa mais na qualidade do ensino estrito senso, isto
é, primordialmente no professor (inclusive em termos salariais), do nos
atributos físicos ou de equipamento pesado implícitos igualmente nessa equação:
em outros termos, trata-se mais de melhorar o soft, do que atuar sobre o hard.
Não é preciso tampouco dizer que, independentemente da importância do ciclo
superior para o processo de desenvolvimento nacional, não é a solução da atual
crise das universidades públicas – que não é puramente orçamentária, ou
administrativa, mas também moral e política – que vai mudar dramaticamente o
quadro de carências sociais que tem caracterizado o Brasil e sua sociedade, na
atualidade e historicamente. Um país incapaz de prover o básico em termos de
educação fundamental e média nunca será capaz de corrigir distorções que se
acumulam e se aprofundam nos níveis superiores de ensino.
Ao lado da
absoluta centralidade da educação formal (e de todos os seus complementos
eventuais, sob forma de ensino à distância e inclusão digital, por exemplo)
para a melhoria do padrão de distribuição de renda no Brasil, os investimentos
em saúde (essencialmente preventiva)
e em infra-estrutura aparecem como o
complemento natural de políticas sociais bem calibradas. Tanto na parte de
saúde e de educação não se pode eludir a questão da chamada “focalização” dos
gastos, por mais que velhos preconceitos relativos à chamada “universalização
do investimento social” possam ser esgrimidos em defesa de teses legítimas em
sua consistência intrínseca mas inoperantes na prática real da ação pública por
parte do Estado. Um exemplo concreto de focalização na área da saúde é o
controle da natalidade – por mais que proteste a Igreja – em direção das
camadas pobres da população, sobretudo áreas rurais e populações marginais do
setor urbano, onde se concentra uma proporção anormalmente elevada de mães
solteiras ou de adolescentes precocemente ingressadas na fecundidade efetiva.
Esse fator regressivo de acumulação de miséria precisa ser enfrentado de
maneira decisiva, inclusive como forma de diminuir outros indicadores sociais
nefastos a qualquer título.
Finalmente, a
questão da segurança pública
afigura-se como crucial no ambiente de quase descrédito das ações
governamentais em direção das populações mais atingidas pela violência urbana
ocasional ou da criminalidade organizada. A sensação de frustração por parte da
população mais atingida – exatamente as camadas mais humildes ‑ e a percepção
da inoperância do sistema público de segurança são os dois elementos que podem
causar imensos prejuízos políticos aos governantes, sem considerar seus
aspectos de direitos humanos ou de afirmação dos valores da cidadania.
Por fim, já no
terreno mais macro da governança, volta-se à necessidade de operar uma
“retirada estratégica” do Estado para áreas mais tradicionais da ação
governamental, abrindo espaços para a atuação mais efetiva dos agentes
privados. Nessa área não há como deixar de recomendar o controle efetivo dos
(já imensos) gastos públicos, sua redução progressiva e, sobretudo, o desenho
de um programa de médio prazo para a diminuição efetiva da “derrama fiscal”
hoje praticada pelo Estado contra as empresas e os contribuintes de renda
média. A agenda da reforma tributária deve continuar na pauta da ação política
mas, retirada sua urgência orçamentária, o foco deveria ser a racionalização e redução dos gastos públicos, não o
aumento de receitas, como a situação de crise de curto prazo parece impor ao
governo.
Em síntese,
governo enxuto, focado em programas direcionados para a correção das imensas
desigualdades sociais brasileiras (educação, saúde, segurança) e voltado, no
médio prazo, para a diminuição do peso morto representado pelo Estado sobre a
economia privada parecem ser os elementos centrais de um novo projeto de governo,
suscetível de corresponder às promessas de mudança com que há muito sonham os
brasileiros.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 27 de janeiro de 2004
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