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terça-feira, 24 de março de 2020

Um livro contrarianista: A Grande Mudança (2003) - Paulo Roberto de Almeida

Dando prosseguimento à minha iniciativa de disponibilizar meus livros fora do mercado – mas não fora dos sebos, que aproveitam as leis elementares da oferta e procura para pedir preços absurdos por alguns deles –, tenho o prazer de oferecer hoje este meu livro "contrarianista", um dos meus preferidos, e o primeiro decididamente provocador, feito justamente para contrariar meus amigos petistas e o imenso contingente de estudantes e neófitos na economia e na política, que acreditavam naquela conversa mole do "grande líder", que prometia "um outro Brasil".
Sim, foi um "outro Brasil": o da incompetência administrativa e o da megacorrupção. Eu sabia que eles eram incompetentes, mas esperava que aprendessem na prática da governança, o que fizeram apenas parcialmente, e sabia que companheiros sindicalistas eram "geneticamente" corruptos, mas não imaginavam que seriam tão corruptos, praticamente ao nível de uma organização mafiosa. Desde o início vim a constatar esse lado da "ética petista", comportamento confirmado em 2004 e que explodiu no escândalo do Mensalão em 2005. Eu tinha uma leve percepção disso, em 2002, pois conhecia muitos dos neobolcheviques, antigos geurrilheiros reciclados na luta apenas política, e não mais armada, e que se apoderaram do partido, junto com os sindicalistas.

Disso eu não sabia inteiramente, quando escrevi este livro, ainda ANTES do primeiro turno das eleições de 2002 (mas eu já sabia, desde o início do ano, que os petistas iriam ganhar). Achava que os petistas fariam uma trajetória similar ao do SPD alemão – o Bad Godesberg, de 1958 – ou do New Labour, cujo líder, Tony Blair havia mudado, em 1994, o programa marxista de 1919.
O título original, que eu havia dado ao livro – na verdade uma coletânea de artigos que eu havia escrito nos primeiros meses de 2002 –, era A Grande Transformação, para imitar, pelo menos em parte, título similar de Karl Polanyi, mas meu excelente editor, João Quartim de Morais, sugeriu este, como o qual eu concordei. 

Ele escapou do pesado jargão sociológico que eu havia mantido até então, e deu início a uma série de escritos políticos que continua até hoje.
Eis o livro: 



A Grande Mudança: consequências econômicas da transição política no Brasil 
(São Paulo: Editora Códex, 2003, 200 p.; ISBN: 85-7594-005-8).

Eis a apresentação que preparei para a orelha (no final de 2002, ou seja, antes da posse do novo governo em janeiro de 2003): 

O Brasil passa por profundo processo de transformação, não apenas em suas formas de representação política, mas sobretudo em suas prioridades sociais, em seu sistema econômico e em suas opções educacionais.
Este livro analisa os problemas reais ligados a essa grande mudança: no discurso das lideranças políticas, nas mentalidades, na agenda pública e sobretudo no terreno econômico e nos compromissos sociais. Ele o faz, entretanto, praticando um saudável exercício de “contrarianismo” e demonstrando que a promessa de “mudar tudo isso que está aí” acaba confrontando-se com algumas duras realidades, tanto no contexto econômico interno como no cenário financeiro internacional. Daí resulta uma inevitável “reversão de expectativas” que altera o conteúdo e até mesmo a forma de alguns velhos discursos políticos e de alguns antigos remédios simplistas no domínio econômico.

Realizada, contudo, essa adaptação à realidade dos fatos, o Brasil tem a oportunidade histórica de operar uma das maiores transformações sociais desde sua emergência enquanto nação independente.
Ostentando um ceticismo sadio em relação ao discurso político, o autor está, no entanto, plenamente otimista quanto à capacidade da nova maioria social de realizar com sucesso essas transformações.


PAULO ROBERTO DE ALMEIDA é cientista social e diplomata, autor de diversos livros sobre as relações econômicas internacionais do Brasil, sua história econômica e o processo de integração no Mercosul.


O prefácio, levemente irônico, com os companheiros:


Como e por que sou e não sou diplomata
(à maneira de Gilberto Freyre)

Não sou nem pretendo ser diplomata puro. Mais do que diplomata, creio ser cientista social. Também me considero um tanto historiador e, até, um pouco, pensador.
Mas o que principalmente sou creio que é escrevinhador. Escrevinhador – que me perdoem os demais cientistas sociais a pretensão e os políticos profissionais a audácia – político. E, ao lado do diplomata, reconheço haver em mim um antidiplomata.
Se aqui destaco minha condição de diplomata – diplomata, é certo, impuro e nada ortodoxo –, é que essa condição é, em mim, irredutível. Só sendo um tanto diplomata eu me poderia dar o luxo de ser também an­tidiplomata em várias das minhas tendências.
São essas contradições que sempre procurei expor e, por vezes, comentar em meus trabalhos de diplomacia e de sociologia política. Quase despretensioso e nada apologético – o que seria uma apologia pro “diplomacia sua” –, quase sempre chego à autocrítica, contra minha profissão de sociólogo e por vezes contra minha própria condição profissional.
Reúnem-se aqui trabalhos que, aliás, podem ser considerados como pouco conectados à minha incerta condição de diplomata: tão incerta, para uns tantos diplomatas, como, para outros, críticos da vida cotidiana, a de escrevinhador político – condição que também procuro considerar. Mais do que diplomata ou sociólogo, sou antes de tudo cidadão brasileiro, que foi o que de fato me motivou a escrever os ensaios coletados neste volume.
Ao tentar explicar-me como possível diplomata, não poderei deixar de referir-me ao que, ao lado dessa minha discutida condição, há em mim, bem ou mal, de cientista social, de historiador e, talvez, de pensador, tornando ainda mais difícil a classificação que se pretenda fazer de homem tão desajeitadamente multidisciplinar, tão diverso, sem que tal multi­pli­cidade de interesses signifique mérito ou virtude superior.
O possível diplomata – como o cientista social, o historiador, o pensador também possíveis – só existe, no meu caso, ligado ao escrevinhador político. Quase nunca como didata, quase sempre como autodidata. Nem como pesquisador profissional, pois que não tenho meu ganha-pão nessas demais orientações e sim na condição primeira de diplomata. Nem efetivamente burocratizado nisto ou naquilo: consultor, assessor, perito, acadêmico, funcionário, sem pertencer a qualquer instituto ou agremiação política ou social. Sou um ser livre, tanto quanto me permite o pertencimento a uma instituição bissecular, altamente burocratizada, hierarquizada e disciplinada a ponto de enquadrar seus membros numa teia de comprometimentos diretos e indiretos com o chamado esprit de corps, que possuo no grau mais tênue possível.
Os parágrafos acima foram inteiramente calcados em peça similar elaborada pela pluma do escritor Gilberto Freyre – extraída do prefácio de seu livro Como e por que sou e não sou sociólogo (Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1968) –, que detém portanto todos os direitos autorais, intelectuais e morais sobre a forma, o conteúdo e a disposição desse texto precedente, que pretende justamente homenageá-lo enquanto pensador brasileiro, original e iconoclasta. Da mesma forma, os ensaios que seguem são devidos inteiramente à minha própria pluma (no caso, computador), também ico­noclasta, e respondo integralmente pela forma, conteúdo e disposição, bem como pela paternidade moral das poucas ideias originais que eles possam conter.
Esses ensaios são autoexplicativos e autossuficientes – uma nota final restabelece a cronologia original em que foram escritos –, mas talvez devesse chamar a atenção para o fato de que, à exceção de um único, todos eles, sobretudo aqueles que antecipam a grande transformação política em curso no Brasil, foram pensados e elaborados antes que quaisquer resultados eleitorais viessem confirmar a magnitude das mudanças em im­ple­mentação. Outros trabalhos elaborados nesse mesmo contexto, como por exemplo os que analisam os programas de campanha de cada um dos candidatos nas eleições presidenciais de 2002, com especial ênfase na questão da política externa e das relações internacionais do Brasil, deixaram de ser incluídos no presente volume, uma vez que se prendem mais a um enfoque descritivo e de debate crítico dessas plataformas partidárias e de sua adequação ao contexto diplomático brasileiro do que a uma reflexão sobre um processo original de mudança política e social, que ainda está longe de revelar todas as suas implicações e desenvolvimentos futuros.
 Esses textos representam, por assim dizer, minha contribuição cidadã a um debate amplo sobre questões relevantes do processo de transformação em curso no Brasil, nos planos interno ou externo, e são uma amostra muito pequena de uma contínua produção de textos que, mais do que algum eventual propósito didático, têm por finalidade servir ao auto-esclarecimento e a uma reflexão ponderada sobre escolhas por vezes difíceis que se apresentam tanto ao observador acadêmico quanto ao administrador público. Como buro­crata especializado numa determinada área, a diplomática, mas também como sociólogo livre-atirador, achei que poderia contribuir com algo para esse debate.
Não tenho certeza de ter respondido satisfatoriamente a muitas das questões de natureza sociológica, ou outras infindáveis dúvidas no plano das relações econômicas internacionais do Brasil, que se colocam em relação a esse processo de mudanças, ainda carente de mapeamento preciso e análise adequada. Provavelmente não, uma vez que realidades como essa são complexas em demasia para receberem tratamento analítico adequado num simples volume de dimensões modestas. Em todo caso, foi minha intenção colocar todas as perguntas pertinentes – algumas até de forma bastante provocadora – que poderiam ser relevantes para um debate esclarecido, do tipo so­crático, sobre o importante fenômeno de mudança em curso no país.
O título escolhido para esta compilação de ensaios remete a uma conhecida obra (publicada em 1944) do famoso cientista social e “liberal-uto­pista” Karl Polanyi, autor de vários outros trabalhos provocadores – como Our Obsolete Market Mentality – e que poderia ser descrito como socialista e conservador ao mesmo tempo. Simultaneamente crítico dos pensadores liberais e dos marxistas teóricos (em relação aos quais descartava a visão estreitamente classista do processo histórico), Polanyi apreciava o papel dos mercados, mas não fazia disso uma profissão de fé. Como escreveu em The Great Transformation: “There was nothing natural about laissez-faire; free markets could never have come into being merely by allowing things to take their course. [...] Laissez-faire itself was enforced by the state”. (Não havia nada de natural em relação ao laissez-faire; os mercados livres nunca poderiam ter sido estabelecidos meramente pela ação rotineira das coisas. […] O próprio laissez-faire foi implementado pelo Estado.)
Partilho inteiramente dessa concepção multidisciplinar sobre o processo histórico e venho tentando, em muitos dos meus trabalhos de história econômica e de sociologia política, introduzir essa visão abrangente e não convencional sobre fenômenos relativamente complexos como o papel dos partidos políticos na política externa ou a interação entre a diplomacia e a sociedade nacional no itinerário evolutivo das relações econômicas internacionais do Brasil. Estes ensaios se situam nessa continuidade, ainda que tenham sido concebidos num espírito bem mais provocador do que o tom convencional utilizado nos meus trabalhos acadêmicos. Em todo caso, eles respondem a uma necessidade, tanto interna quanto propriamente “social”, de contribuir para o debate aberto em torno do importante processo de mudança inaugurado no Brasil a partir do segundo semestre de 2002 (ou provavelmente antes disso). Eu me sentirei satisfeito se eles despertarem, primeiro uma indignação de surpresa, depois alguma manifestação de ceticismo sadio e, finalmente, a sensação de que eles permitiram a abertura de novas avenidas de reflexão sobre o Brasil e sua inserção internacional. Cabe agora ao leitor julgar se fui bem-sucedido nesse empreendimento.
Paulo Roberto de Almeida
Washington, 2 de novembro de 2002

Eis o índice: 


Índice


Prefácio
Como e por que sou e não sou diplomata (à maneira de Gilberto Freyre)...... 13

Primeira Parte
Imaginando um novo tipo de política para o Brasil 

1.   Carta aberta ao próximo presidente (qualquer que seja ele)... 19
Não tente inovar apenas para se diferenciar de seu predecessor.... 20
Cuidado com as más companhias...... 20
Não atenda a grupos especiais de interesse em troca de apoio político... 21
Não confie na onipotência do governo...... 22
Não cometa os pecados do vizinho: protecionismo sempre afeta os mais pobres... 24
Políticas sociais por via burocrática têm um alto custo de administração. 25
Salário mínimo obrigatório diminui a empregabilidade e prejudica os mais pobres... 25
Esqueça o conceito “fixação da taxa de juros”: diminua a despoupança estatal..... 26
Liberte-se da praga das concessões de rádio e TV; esqueça a publicidade oficial...... 27
Não acredite quando disserem que “direitos adquiridos” são imutáveis.... 28
Tente acabar com o feudalismo laboral e o regime de guildas profissionais.. 28
Uma última ideia maluca: tente inovar do ponto de vista tributário..... 29

2.   Dez coisas que eu faria se tivesse poder (licença poética imaginária, mas justificada em uma fase pré-eleitoral).... 31
Mudaria o hino nacional, colocando “bem-estar e desenvolvimento” em seu âmago..32
Acabaria com os chamados “direitos adquiridos”.... 33
Tornaria a educação pública de base prioridade absoluta de governo durante uma geração inteira.... 33
Transformaria o Estado em agente do bem-estar coletivo, retirando-o de atividades produtivas ou de setores dotados de melhor eficiência quando de caráter privado... 34
Mudaria o caráter e a orientação das forças armadas..... 35
Aprofundaria a abertura econômica e a inserção internacional do país.... 36
Tornaria a elaboração e execução orçamentárias totalmente transparentes, visíveis na internet.... 37
Promoveria uma reforma tributária radical, com imposto único de transações financeiras e poucas taxas seletivas de natureza social.... 37
Abriria creches públicas em todas as regiões dotadas de uma certa densidade potencial de mães..... 38
Abriria bibliotecas públicas infantis em todas as regiões dotadas de uma certa densidade potencial de crianças.... 39

3.   A indiscutível leveza do neoliberalismo no Brasil: avaliação da era neoliberal........ 41
Os parâmetros conceituais do neoliberalismo......... 41
O contexto histórico-econômico do neoliberalismo no Brasil... 45
O núcleo duro do neoliberalismo no Brasil e seu desempenho histórico... 50
Questões de sustentabilidade interna e externa do neoliberalismo no Brasil.. 58
À guisa de conclusão: a insustentável leveza teórica do neoliberalismo no Brasil.... 61

Segunda Parte
As consequências econômicas da vitória

4.   Companheiros, muita calma: trata-se agora de não errar!........ 67
Princípios básicos da economia política dos partidos no sistema brasileiro.. 67
As leis fundamentais da economia política burguesa: devagar com a louça.. 69
Princípios de economia política e do imposto: David Ricardo vingativo?.... 72
A organização social da produção ao estilo do programa de Gotha..... 75

5.   Administrando as relações econômicas internacionais do Brasil.. 79
Introdução: os grandes temas de “economia internacional” da nova maioria.. 79
Desequilíbrios das transações correntes (“Exportar é a solução?”)..... 80
Dívida externa (e suas relações com a dívida pública interna)........ 81
Regime cambial e paridade do real (“Chamem um operador experiente!”)... 82
Controles de capital (e outros remédios amargos)........ 83
Relações com o FMI e pacotes de ajuda financeira (consenso sobre o dissenso) 84
Mercosul, ALCA e OMC (malabarismos sub-regionais, hemisféricos e multilaterais)... 85
Relações econômicas e políticas com o império (não há como escapar)... 86
Investidores estrangeiros, especuladores internacionais
      et caterva (“Hello boys”)....... 87
Outros assuntos pertinentes (inclusive o valor de troca dos
      economistas da casa)........... 88

6.   Preparado para o poder? Pense duas vezes antes de agir..... 91
O sindicalista amigo: salário e empregos na corda bamba........ 93
José Bové e outros socialistas bovinos de la campagne française: gordos subsídios...... 94
Consenso de Washington, imposições do FMI e Wall Street: distância deles?.. 95
Antinaftalinos, antialcalinos e antiglobalizadores em geral: muy amigos?...... 96
A boa e velha burguesia nacional: aliada contra o imperialismo?................ 98
O bispo da CNBB: um mensageiro espiritual da nova economia política........ 99

7.   Consequências econômicas da derrota: identificando vencedores e vencidos... 103
As novas partículas elementares... 103
O combate de ideias.... 107
Relações econômicas internacionais.... 108
Economia doméstica....... 111

Terceira Parte
Sinais trocados no cenário internacional

8.   A globalização e as desigualdades: quais as evidências?...... 117
Tendências à divergência e à concentração na economia mundial..... 117
O peso da demografia: a globalização promove a transição..... 118
Mudanças tecnológicas: os fatores determinantes são domésticos..... 119
O mito do “intercâmbio desigual”....... 119
Globalização financeira: para o bem e para o mal..... 120
A globalização como bode expiatório de políticas nacionais..... 121

9.   O boletim do império..... 123
Segurança e estabilidade internacionais..... 128
Desarmamento e não-proliferação......... 128
Promoção do direito internacional e da cooperação entre os Estados....... 129
Contribuição ao consenso através do multilateralismo e de regras comuns... 129
Elevação dos padrões internacionais em direitos humanos e direitos sociais. 129
Defesa dos direitos laborais e dos direitos coletivos..... 130
Defesa da democracia e promoção da boa governança e da luta contra a corrupção..... 130
Defesa do meio ambiente, preservação de áreas comuns, estabelecimento de padrões...... 130
Contribuição ao progresso de outros povos via cooperação ao desenvolvimento... 130
Abertura econômica, manutenção do crescimento com estabilidade e acesso dos demais países a seu mercado, sem requerimentos de reciprocidade... 131

10. Camaradas, agora é oficial: acabou o socialismo........ 135
A última e definitiva “pá de terra” no caixão do socialismo?.... 135
Uma medida simples, mas altamente simbólica: de volta ao mercado capitalista........ 136
A longa marcha da Rússia, do capitalismo periférico à periferia do capitalismo, com uma torturada (e tortuosa) transição pelo socialismo....... 139
Um debate de ideias econômicas: marxianos contra marxistas..... 142
Análise marxista da ascensão e queda do socialismo......... 146

11. Democratização do poder mundial: possível, realizável, imaginável ou simplesmente desejável?..... 151
Introdução.... 151
A abordagem histórica e conceitual da democratização do poder mundial... 152
Existe um poder mundial que possa ser democratizado?...... 154
A ordem mundial e a democracia política no plano doméstico...... 156
A base censitária da velha democracia e os desafios da expansão... 157
A igualdade de direito, a desigualdade de fato........ 159
Ameaças à democratização depois do 11 de setembro de 2001.. 160
A democratização e a formação do novo império......... 162
O caso do hegemonismo benevolente: a democratização parcial do Big Brother......... 167

12. Sinais trocados na ALCA: teria a esquerda deixado de ser progressista?.... 169
As razões dos antialcalinos: uma definição pouco definitiva.... 169
No meio do caminho tinha um mercado: o grande obstáculo mental.... 171
Os candidatos a Dom Quixote e o moinho de vento da soberania nacional. 173
A teoria da dependência dos antialcalinos: admirável mundo velho... 175
A recusa pouco dialética do livre comércio: o que Marx teria a dizer?.. 176
A proposta da não-ALCA e as evidências econômicas: melhor sem ela?. 178
Um novo padrão de acumulação de bobagens: o capital dos antialcalinos..180
Antialcalinos ao norte e ao sul: todos têm razão ao mesmo tempo?...... 182
A oposição à ALCA responde aos interesses dos trabalhadores latino-americanos?..... 185
Existe algum “progressismo” na campanha contra a ALCA?...... 187

Posfácio
O que sou então?........... 189
Notas sobre os textos constantes deste volume....... 195
Nota sobre o autor............. 197


A Grande Mudança:
consequências econômicas da transição política no Brasil

Quarta Capa:

O BRASIL JÁ MUDOU, MAS AINDA PRECISA CONSTRUIR UM QUADRO INSTITUCIONAL E ESTRUTURAS ECONÔMICAS QUE ESTEJAM MAIS EM ACORDO COM AS NOVAS REALIDADES POLÍTICAS E SOCIAIS QUE VIERAM FINALMENTE À TONA A PARTIR DO PROCESSO ELEITORAL DE 2002.
PAULO ROBERTO DE ALMEIDA APONTA, NESTE LIVRO, QUAIS SÃO OS COMPONENTES DESSA AGENDA TRANSFORMADORA, CHAMANDO A ATENÇÃO PARA ALGUMAS SURPREENDENTES “INVERSÕES DE PRIORIDADES”.
ESTE É O PRIMEIRO LIVRO A SER PUBLICADO EM 2003 QUE COLOCA NUMA DIMENSÃO MAIS AMPLA A AGENDA ECONÔMICA DO NOVO GOVERNO INAUGURADO EM 1º DE JANEIRO, ANTECIPANDO DESENVOLVIMENTOS E POSIÇÕES QUE JÁ ESTAVAM IMPLÍCITOS NOS TEXTOS AQUI COMPILADOS, A MAIORIA DELES ELABORADOS AINDA ANTES DA VITÓRIA EM OUTUBRO DE 2002.
UM LIVRO PROVOCADOR COMO A NOVA REALIDADE BRASILEIRA, MAS QUE DEVE SER LIDO POR TODOS AQUELES QUE DESEJAM ENTENDER O QUE EXATAMENTE ESTÁ FAZENDO, E POR QUAIS RAZÕES, O GOVERNO DA NOVA MAIORIA SOCIAL.


Este livro, capa e miolo, encontra-se disponível nos seguintes links: 



segunda-feira, 23 de outubro de 2017

A grave crise da governança no Brasil (2004) - Paulo Roberto de Almeida

Esta foi mais uma tentativa de chamar a atenção do governo lulopetista – para o qual eu trabalhava, sublinhe-se – para a grave crise de governança no país. Obviamente, o chefe de governo não estava interessado nesse tipo de conselho, pois se julgava autossuficiente e capaz de resolver qualquer problema. Mal sabia eu, e toda a sociedade, que a essa altura – eu escrevia em abril de 2004 – eles já tinham resolvido o problema da governança por um método mais direto: passaram a comprar todo mundo, bancadas inteiras. Essa foi a origem do Mensalão.
Lido a esta distância, este texto revela uma boa disposição para ajudar, mas que pode ter sido considerado pelos companheiros apenas como demonstração de suprema ingenuidade...
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 23/10/2017


A grave crise da governança no Brasil
Duas ou três coisas que eu sei dela e algumas maneiras de superá-la

Paulo Roberto de Almeida
Espaço Acadêmico (nº 36, maio de 2004)
Brasília (1241), 9 de abril de 2004.


A despeito do que se crê e do que se afirma frequentemente, o Brasil não enfrenta nenhuma crise econômica, ou mesmo política. Ele tem, sim, uma séria e grave crise de governança, que: (a) paralisa a máquina pública; (b) aumenta a volatilidade do ciclo econômico; (c) diminui a confiabilidade do e no sistema de solução de controvérsias (judiciário) e (d) influencia de modo negativo o quadro político-institucional. Esse quadro termina por: (e) acirrar artificialmente alguns conflitos menores e (f) diminuir, de modo dramático, as perspectivas de melhoria da mesma governança. Desejo, desde já, sublinhar o adjetivo “grave”, pois o quadro compromete a possibilidade de quaisquer políticas.
Não há crise econômica no País. Esta afirmação pode soar irônica ou irrealista, em vista do crescimento negativo do PIB, do aumento do desemprego, da fragilidade continuada das contas públicas e da incapacidade de enfrentar novas demandas por recursos públicos por parte dos agentes públicos e da própria sociedade. Tudo isso pode ser verdade e, no entanto, o País não está e nem corre o risco de enfrentar uma crise econômica. Os indicadores negativos atualmente exibidos decorrem de um pequeno ciclo de falta de confiança despertado pela conjuntura eleitoral de 2002, que veio agregar-se aos problemas gerados anteriormente em escala regional a partir da crise argentina desde antes da derrocada, no final de 2001. O Brasil tem problemas de fragilidade interna e externa desde muitos anos, praticamente desde a fase da redemocratização – que jamais produziu anos de crescimento sólido e sustentável – e vinha penosamente, ao longo dos anos 1990, tentando colocar em ordem esses desequilíbrios, com base em políticas consistentes e adeptas do rigor fiscal, com maior ênfase a partir da mudança no regime cambial em 1999. O comando econômico precisaria continuar virtuoso, sem hesitações.
A retomada de um processo de crescimento sustentado, compatível com as taxas historicamente registradas no passado (com exceção do interregno 1962-1965), depende, ao meu ver, da manutenção daquelas políticas, o que entretanto foi colocado em dúvida na conjuntura eleitoral de 2002. Pagamos o preço por uma transição política extremamente saudável do ponto de vista democrático e bem vinda do ponto de vista político e social. Devemos reconhecer que a democracia tem um certo preço em termos de aumento da cacofonia no processo decisório, mas ela é, em qualquer hipótese, infinitamente mais saudável, inclusive no plano econômico, do que qualquer sistema autoritário de debates (restritos) e de tomada (arbitrária) de decisões.
O aparelho político precisaria estar “aparelhado” para acomodar esse aumento na dispersão de opiniões, mas qualquer melhoria na institucionalidade do Estado depende dramaticamente da qualidade dos homens públicos, fator notoriamente carente na nossa tradição social e cultural. Não se pode sempre dispor de condições ideais para o processo de desenvolvimento, mas as improvisações podem por vezes custar caro. Ora, temos hoje, no comando da máquina econômica, uma equipe realista, preparada e inimiga declarada de qualquer improvisação ou magia econômica. Esta equipe é um poderoso fator para a superação das dificuldades econômicas conjunturais, mas ela não pode, obviamente, ocupar as demais vertentes da governabilidade, que dependem do governo como um todo e não apenas dos limitados poderes da equipe econômica.

Não há, tampouco, o menor sinal de crise política no País. Oposição e situação vêm cumprindo, com graus razoáveis de ativismo e de engajamento, suas funções respectivas: criticar e apontar caminhos alternativos a primeira, processar e votar leis a segunda. Ruídos e “golpes baixos” correspondem ao que se poderia esperar de um sistema político baseado em “jogo de soma zero”, como o brasileiro, e a um certo estilo de fazer política, marcado mais pelo apelo a uma retórica de teatro do que apoiado em argumentos racionais de governança responsável. A grande imprensa parece moderada, e não tem insuflado os ânimos ou paixões políticas, nem acuado o governo com demandas excessivas de explicações para os impasses atuais da governança.
O sistema político-partidário e, reconhecidamente, mesmo o regime democrático-representativo apresentam, no Brasil, baixa qualidade intrínseca e baixíssimos níveis de eficiência e não há qualquer expectativa de progresso no futuro previsível. Não obstante, o funcionamento do Legislativo não se deteriorou nos últimos quinze meses, mas tampouco experimentou melhora sensível, como corresponderia à “nova era” da política. Mas não se pode esperar, no curto prazo, correção de fatores estruturais como estes.

Não hesito portanto em dizer que o atual quadro brasileiro não se caracteriza por qualquer crise econômica ou política, ainda que possam existir indicadores preocupantes na primeira vertente e “ruídos” agora mais “ruidosos” na segunda, aliás derivados quase que inteiramente do dramático quadro de governança que passo agora a registrar.

É um dos truísmos da vida prática, e até da teoria política, o fato de que o poder especificamente político não se divide, nem deve ser dispersado, devendo existir de forma concentrada numa única fonte de autoridade. Esta tem de deter, legítima e incontestavelmente, por delegação dos eleitores, o comando do processo decisório, que deve então funcionar de maneira eficiente a partir dessa fonte unitária de decisões.
Não é uma revelação inédita o fato de que, no Brasil atual, as fontes de poder estavam e estão relativamente dispersas, ainda que de maneira informal, passando a estar um pouco mais diluídas a partir de conhecido episódio no comando central do governo, que fragilizou uma dessas fontes legítimas e reconhecidas de poder. Sem qualquer avaliação sobre o caráter mais ou menos ético, ou eficiente, da “solução” que se deu ao episódio em questão, deve-se reconhecer que ambos, o evento e seu “encaminhamento”, impactaram tremendamente a natureza e o exercício da governança no Brasil. (Não me manifesto aqui sobre o impacto público, e suas consequências em termos de imagem, desses elementos ligados à simbologia e ao próprio exercício do poder, mas refiro-me, tão simplesmente, aos seus efeitos sobre a qualidade e a “quantidade” da governança. Mas pode-se também notar que esse processo, assim como o episódio ainda em aberto da compra do novo avião presidencial representam um enorme custo político e moral para a autoridade do poder central, difíceis de serem revertidos no curto ou no médio prazo.)
A recomposição de uma única autoridade central e a existência de um comando político reconhecido constituem, ao meu ver, condições indispensáveis para a superação da atual crise de governança no Brasil. Sem isso, todo o mais, em termos de políticas públicas e setoriais, está e ficará comprometido pelo resto do período de governo. Não é preciso dizer que autoridade não se proclama, mas sim se exerce, de modo claro e direto, com consequências imediatas – demissão ou afastamento – para os mais recalcitrantes e eventuais candidatos a rebeldes. Tergiversações e hesitações costumam ser mortais.

Mas o quadro é ainda mais grave quando se passa da autoridade “para dentro” para a autoridade “para fora”, isto é, em direção de fontes concorrentes de poder ou no âmbito do exercício real da autoridade legítima, delegada pela sociedade e pelo sistema constitucional, para o cumprimento das leis. Ora, não é preciso muito esforço visual, ou apelo a registros impressos, para se constatar que diminuiu enormemente o respeito à lei e aos contratos nos últimos quinze meses. Sem considerar questões partidárias ou mesmo de cunho ideológico (e persiste uma certa confusão aqui), deve-se reconhecer que essa situação faz aumentar, tremendamente, a volatilidade do cenário econômico, além de agregar custos reais ao funcionamento do sistema como um todo e de contribuir para agravar o quadro de anomia social e de desrespeito generalizado ao quadro legal no País.
A justiça, em si, já constitui um ônus terrível, direto e indireto, para o sistema econômico, diminuindo o PIB potencial. Mas o desrespeito à lei, endossado inclusive por ministros de Estado, constitui um imenso desincentivo aos investimentos (estrangeiros e nacionais) e à iniciativa privada, únicos capazes de criar empregos e disseminar renda no País. É dramático saber, por exemplo, que juízes de província podem criar obrigações para o Executivo sem qualquer amparo na legislação em vigor, que governadores podem promulgar leis anticonstitucionais ou que os mandatários, em geral, se eximem de fazer cumprir a lei em casos claríssimos de violação de direitos dos cidadãos (como as muitas invasões de propriedades). O desrespeito à legalidade chegou a níveis preocupantes no Brasil, mas isso não parece preocupar nem o sistema judiciário nem o próprio Executivo.

A desgovernança existente aparece em primeiro lugar na própria máquina pública, hoje ineficiente e descoordenada ao ponto da paralisia. Algo pode ser debitado aos custos da transição, na qual uma parte da tecnocracia foi substituída pela militância, dedicada e entusiasmada com a causa da mudança, mas nem sempre habilitada a lidar com as reais complexidades da administração pública. Se o ministro da área não possui competências executivas, ou não dispõe de prévia experiência anterior no seu setor, o quadro pode ficar ainda mais dramático, dando a impressão de que os ministérios atuam em ordem dispersa, cada um com suas próprias prioridades políticas e um escasso comprometimento com as diretrizes gerais do governo (quando elas existem naquele setor).
Não há uma solução simples a esse problema, pois qualquer estrutura ministerial, grande, média ou pequena – e a atual é desmesurada –, só pode funcionar bem se a qualidade da gestão, em suas diferentes vertentes, for razoavelmente satisfatória, com metas claras e cobranças regulares. A continuidade da atual lógica político-partidária na montagem ministerial significa a continuidade da inoperância administrativa na mesma proporção. Ainda que eu recomende uma completa reestruturação ministerial, reconheço que isso traria problemas na frente congressual. Cabe ao supremo mandatário julgar o que seria possível fazer para aumentar a eficiência da “sua” máquina executiva.

A ausência de prioridades claras de governo e sobretudo a dispersão do comando central, com a persistência de dúvidas relativamente ao apoio às orientações econômicas até aqui seguidas – e que certamente permitiram reverter o quadro dramático existente no final de 2002 –, tem atuado para aumentar a volatilidade do ciclo econômico, pois os agentes são levados a adotar um compasso de espera (seja para precaver-se contra uma possível mudança de regras, seja no aguardo de medidas que possam representar uma melhoria relativa das condições da atividade econômica). O problema aqui é tanto a falta de uma clara manifestação em favor da política econômica atual, com o engajamento do conjunto do governo, quanto o próprio fato de que agentes do Estado ainda determinam, por vezes de modo arbitrário, o comportamento de vários setores da economia, o que obviamente dá margem à manutenção do já referido quadro de incertezas.
Um exemplo, entre outros, da contradição entre as orientações gerais do governo e a implementação concreta de medidas setoriais revelou-se no caso da discriminação entre companhias nacionais e de capital estrangeiro nos financiamentos concedidos pelo mais importante órgão do setor. Independentemente da legalidade ou da oportunidade de tal tipo de medida discriminatória, o fato a ser destacado é, justamente, a possibilidade de que órgãos subordinados possam atuar contraditoriamente às orientações do governo. Isto se chama ausência de autoridade e repercute na crise geral da governança pública.

A situação da justiça e do ordenamento legal é provavelmente um dos fatores mais negativos que afetam a governabilidade do e no País, aumentando dramaticamente os custos da atividade econômica. Não me refiro apenas à possível e provável existência de disfuncionalidades no aparato judicial, com manifestações de corrupção e nepotismos que podem e devem ser coibidos por alguma forma de controle externo (como aliás deve ser o caso com qualquer poder: não é possível, por exemplo, que o Legislativo e o Judiciário possam criar fontes de despesas sem qualquer tipo de disciplina orçamentária). O que desejo destacar é a própria anomia dos processos jurídicos, nas três esferas da federação e em vários setores de atividade (nas relações de trabalho, por exemplo). Mais: controles internos e externos devem ser implementados para coibir a extraordinária profusão de medidas liminares, várias dotadas de escasso ou nenhum embasamento legal.
Um exemplo pode ser citado na determinação ilegal de fichamento de turistas americanos ingressando no Brasil, ainda mais dramatizada pelo endosso oficial (isto é, do Executivo) a essa medida que claramente carece de amparo na legislação existente. Outro é o fato de estados federados introduzirem, também ilegalmente, restrições à circulação de mercadorias em seus territórios (soja supostamente transgênica), sem que qualquer autoridade federal coibisse imediatamente tal usurpação inconstitucional de autoridade. A falta de iniciativa do Executivo ou do Judiciário redunda em imensos custos econômicos para os agentes privados: produtores, transportadores, compradores ou simples cidadãos.
Podem ser multiplicados várias vezes os casos de ausência de controle – o que não é, senão, uma manifestação a mais de falta de autoridade – de medidas “legais” que afetam gravemente a confiabilidade do sistema judicial em nosso País e aumentam, de modo exponencial, a volatilidade com que tem de se haver o sistema econômico. Uma possível recomendação seria a constituição de um grupo de trabalho para examinar esse tipo de controle, que não está sendo cogitado no atual processo de reforma do Judiciário.

Um governo, qualquer governo, não é feito para provar teses acadêmicas ou testar programas partidários. Ele tampouco atua com base em “grandes teorias” (aliás mais proclamadas do que reais). Ele é eleito, e constituído, para produzir o máximo de bem estar para os cidadãos, pelos meios os mais pragmáticos e racionais possíveis. Parece estar havendo hoje, no Brasil, uma luta contra o passado e uma dispersão de esforços no presente. A luta contra o passado se exerce tanto contra antigos “adversários” (o que é revelado pela tese da “herança maldita”), como em relação às teses anteriores, que não podem (e não devem) ser o centro do debate das alternativas de políticas econômicas.
Essa obsessão com um passado mítico, seja para condenar (o dos outros), seja para se justificar (o seu próprio), tem ocupado uma parte substancial da atividade retórica do governo, o que constitui obviamente um grande perda de energia e um desvio do foco próprio da governança atual. Mas também existe, hoje, uma grave dispersão de esforços em diferentes áreas de atividade, mesmo quando elas não são prioritárias para o aumento do bem estar do povo, em setores concretos sob responsabilidade governamental.
O exemplo mais conspícuo é, obviamente, o da chamada política industrial, não porque ela esteja absolutamente errada, mas porque ela é claramente não prioritária no rol imenso de problemas graves que deve enfrentar o governo para melhorar a qualidade de vida da maioria da população. Corretamente apresentada como sendo “tecnológica” e de “comércio exterior”, essa política não vai conseguir, concretamente: (a) aumentar a oferta de empregos, (b) distribuir renda e (c) capacitar profissionalmente a mão-de-obra, três objetivos que estariam, supostamente, no coração da política social do governo (cujo foco não é, ou pelo menos não poderia ser, a assistência a necessitados, assim preservados).
Infelizmente, pode-se antecipar que essa política industrial vai: (a) criar poucos empregos, (b) pode concentrar ainda mais ou, no máximo, ser neutra em relação à iníqua distribuição de renda e (c) vai formar poucos trabalhadores nas habilidades mínimas que se espera de um país voltado para o incremento das oportunidades sociais via aumento da produtividade dos recursos humanos (num sentido amplo, e não apenas como foco setorial). A criação de mais uma agência pública pode representar, por outro lado, mais um cartório de espera para alguns esperançosos em dádivas públicas, o que continuará influenciando negativamente o quadro de expectativas microeconômicas em nosso País (em lugar do livre empreendedorismo, o possível leilão de favores governamentais).
Ainda que a política industrial possa oferecer, um dia, todas as virtudes que se esperam dela, não me parece que ela venha a alterar, dramaticamente, as condições sob as quais o Brasil já participa da economia internacional, ou sequer arranhar as condições sob as quais labuta a maioria dos trabalhadores, em grande medida à margem do mercado formal de relações contratuais. Esse tipo de dispersão e de perda de foco me parece grave, num governo que foi eleito para cuidar dos trabalhadores e não dos patrões, que deveriam ser deixados à sua própria sorte, e sobretudo com menos interferência estatal.

A tentativa de mudar um pouco de tudo, no Brasil e no mundo, e que parece estar no centro do ativismo governamental, aliás mais pelo lado das intenções do que pelo das realizações, pode constituir um entrave concreto ao exercício de uma boa governança em favor dos mais pobres e dos absolutamente carentes. Como as expectativas eram, de modo legítimo, muito grandes, o governo tem se esforçado para corresponder a todas elas, dando a impressão de que vai conseguir mudar tudo no curto espaço de quatro anos.
Entretanto, mais de um quarto do tempo alocado a este governo já se passou e um balanço (talvez impressionista) do quadro da governança poderia ser assim apresentado:
1) Um notável desempenho macroeconômico, que conseguiu reverter um quadro dramático de deterioração dos indicadores internos e externos com base no bom senso e também na certeza de que o único caminho disponível é o que foi efetivamente seguido. A construção da confiança só não foi total porque, no interior do próprio governo e nas bases “naturais” de sustentação, a demanda por magia continua alta e não coibida. Minha única recomendação concreta, aqui, seria a persistência na via adotada e um enquadramento de todo o governo com a política determinada pela autoridade máxima, que neste caso é também a política de maior racionalidade intrínseca.
2) Um pífio desempenho administrativo, em talvez na metade dos ministérios, o que é amplamente reconhecido até dentro das hostes governamentais. O inchaço da máquina e a seleção dos titulares por critérios alheios a preocupações com o desempenho são os responsáveis por esse quadro lamentável. A recomendação geral seria por um total remanejamento da máquina e dos titulares, mas não é possível oferecer neste espaço sugestões concretas sobre quais áreas devem e precisam mudar. Já ofereci a hipótese de que o governo tem muito Antonio Gramsci e carência de Peter Drucker. Talvez uma boa consultoria externa, dessas voltadas para organização e métodos para resultados, pudesse ajudar um pouco na reorganização da máquina do governo. Recomendo, sem pudores.
3) Um desempenho externo extremamente ativo e variado do Brasil-Estado, com impacto notável nos meios de comunicação, internos e externos, mas com resultados até aqui pelo menos duvidosos do ponto de vista da solução dos problemas concretos, e graves, do outro Brasil, o Brasil-Nação. Pode-se certamente assegurar, por essa via, uma maior presença do Brasil no cenário internacional, mas ela pode ser igualmente alcançada por uma melhoria da nossa situação econômica e social, pela maior solidez dos grandes equilíbrios macroeconômicos, pela confiança gerada nos investidores internos e externos ou ainda por um diálogo aberto com todo tipo de parceiro, sobretudo os mais relevantes. A segunda via é certamente mais lenta, mas não se deve descurar o fato de que um precoce engajamento em novas responsabilidades internacionais gerará uma demanda por recursos escassos, em meios militares e/ou cooperação técnica e financeira, que ainda fazem dramaticamente falta no plano interno. Minha recomendação, até por um questão de respeito aos eleitores deste governo, seria a de que uma atenção prioritária fosse agora dedicada ao plano interno, em especial em direção dos setores carentes.
4) Uma deterioração dramática do quadro político-institucional, sobretudo no que se refere ao cumprimento da lei, ao respeito da legalidade e à administração de conflitos sociais. O Estado, aos olhos de muitos, não faz cumprir a lei, ou por falta de vontade ou por falta de capacidade, ou por ambas, o que é, reconheçamos, extremamente grave. Uma caracterização desse tipo, se suficientemente embasada em fatos claramente delimitados, pode prestar-se a uma acusação de crime de responsabilidade, contra qualquer um dos agentes públicos, inclusive o mais alto. Minha singela recomendação seria em favor de uma revisão séria e ponderada da situação do quadro jurídico-legal no País e sobretudo no sentido de uma decisão superior em prol do seu estrito cumprimento pelo Estado. A experiência histórica nos ensina que o mais rápido e seguro caminho para a desgovernança prática começa pelo desrespeito à lei.

Não tenho a pretensão de oferecer soluções adequadas a todos os problemas de que padece atualmente (e estruturalmente) o País, em especial na vertente governamental. Tenho consciência, porém, de que um dos requisitos para encontrar respostas apropriadas está na correta formulação das perguntas pertinentes e no oferecimento de um diagnóstico ajustado aos problemas. Creio ter indicado os problemas que me parecem mais graves no Brasil atual, a começar pela crise de governança, que resulta ser uma crise da autoridade legal. Espero ter assim contribuído, com total ânimo cooperativo, para diminuir o quadro nebuloso que dificulta até mesmo visualizar a falta de governança no Brasil atual.

Paulo Roberto de Almeid
Brasília (1241), 9 de abril de 2004.