Entre o primeiro e o segundo turno das eleições de outubro de 2002, quando já se dava por confirmada a vitória do candidato do PT, um jornalista conhecido da
Gazeta Mercantil, então o mais importante jornal de economia do Brasil, contatou-me em Washington para pedir minha opinião sobre uma série de questões relativas à política externa do futuro governo. Concordei em expressar algumas ideias desde que fosse em caráter reservado, ou seja, não identificado. Ele mandou-me as questões, eu respondi, mas ignoro se foram ou não aproveitadas em alguma matéria daquele momento.
Como o texto nunca foi divulgado, e como o assunto agora não tem muita importância -- isso em termos práticos, pois continua a ser relevante pois vários dos temas continuam pendentes -- resolvi divulgar este trabalho, no momento em que faço uma revisão de todo o meu seguimento das relações entre partidos políticos e política externa.
O
tom geral é bastante otimista, talvez até demais. Uma das questões tocava no
problema das esquerdas, ao que eu respondi da seguinte forma: “Não teremos um governo de “esquerda
partidária” no Brasil, mas um governo identificado com forças progressistas. A
ideologia política não deveria influenciar a ação governamental, ainda que
algumas declarações de dirigentes políticos (não necessariamente na
Chancelaria) possam induzir a essa identificação com “velhas amizades” nas ONGs
progressistas.” Como se vê, enganei-me completamente: o que tivemos,
justamente, foi uma política externa partidária, e até secretamente sectária (o
que precisa obviamente ser provado).
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 22/10/2017
Hipóteses de Política Externa –
Novo Governo do PT
[Paulo Roberto de Almeida
NÃO CITAR SEM AUTORIZAÇÃO DO AUTOR
1) Mostrar o quadro daqui pra frente,
os principais desafios. O que terá que ser enfrentado pelo PT no campo externo,
a partir de novembro? Algum desafio sério?
O principal seria o eventual recrudescimento da
turbulência econômica, fuga de capitais e coisas do gênero. Creio que a equipe
econômica de transição, que será suficientemente confiável, tem condições de,
em pleno entendimento com a equipe atual, debelar esses focos, ainda que algum
rescaldo (maior desvalorização, etc) possa ocorrer.
No plano negociador externo, creio
que as tomadas de posição quanto à Alca, Mercosul, relações com os EUA, serão
igualmente responsáveis e profissionais, sem qualquer ameaça de derrapagens
verbais ou conflitos retóricos. Não creio, pessoalmente, que grandes mudanças
possam ocorrer em relação à postura já adotada pelo Itamaraty (e que
corresponde à orientação de FHC) na maior parte dos temas da agenda externa.
Poderá haver alguma ênfase verbal na defesa do “interesse nacional”, na busca
de resultados equilibrados na Alca e nas demais negociações comerciais, mas
nada que destoe excessivamente do que já vem sendo dito ou praticado
atualmente.
2) Haveria uma mudança de postura ou
continuidade com mudança de tom e ritmo?
Depende de quem seria o chanceler. Se
for um profissional da Casa, dificilmente haveria grandes mudanças, mesmo com
alguma concessão à retórica dos novos tempos. Se for um político ou personagem
partidário, haveria inevitavelmente mudança de estilo e na forma de atuação,
mas não acredito que possa haver alteração substancial dos métodos e formas de
trabalho diplomático do Itamaraty.
3) A Alca, o TNP, negociações com UE
e na OMC, aproximação com a Asia, a Africa , o projeto de integração
sul-americana etc.
Tenderá o discurso a ser mais
afirmado nas relações com o Sul e outros grandes países “periféricos” (onde o
programa coloca além da Índia, a China e a Rússia, sic), mas creio que não se
voltará atrás no TNP (o mais razoável seria deixar como está, pois qualquer
mudança seria não só contraproducente, como inutilmente desgastante). Na Alca e
na OMC, será a retórica desenvolvimentista, ou seja, nada de muito
extraordinário em relação ao que já tivemos no passado e de certa forma ainda
hoje.
4) Importante: o relacionamento com
os EUA. O que podemos prever? Sabemos que a embaixadora Donna Hrinak está
fazendo um trabalho bom, em Washington, para convencer diferentes atores que o
Lula e o PT não são bichos-papões.
Sem dúvida, a Embaixadora desempenha
um importante papel “apaziguador”, junto aliás com o RAB em Washington. São
profissionais, que sabem lidar com as pequenas ou grandes dificuldades de uma
relação assimétrica. As relações continuarão boas no plano político (sem o
calor dos tempos FHC-Clinton, ambos da Terceira Via), e com as dificuldades
conhecidas, e todas identificadas, no plano comercial, bilteral, hemisférico ou
multilateral. Mas, não há porque pensar que essas dificuldades redundarão em
maior tensão ou desgaste adicional. Brasil e EUA presidirão as negociações da
Alca com bastante profissionalismo e sentido da importância do processo. Mas,
como o processo todo é muito complexo, e dependente de soluções a serem
alcançadas em Genebra, poderá haver algum atraso no calendário originalmente
estabelecido para a Alca (término no final de 2004 ou começo de 2005).
Algumas inconsistências americanas
terão de ser resolvidas daqui até lá, como por exemplo, a recusa em discutir
determinados “temas sistêmicos” (como subsídios à agricultura) na Alca,
remetendo-se acertos a Genebra, e sua insistência em discutir outros temas
sistêmicos na Alca, como propriedade intelecual ou compras governamentais. Se o
assunto é acesso a mercados, por exemplo, nada impediria os EUA de reduzirem as
barreiras tarifárias e não tarifárias em agricultura, para nossos produtos
competitivos, na Alca, e deixar o tema subsídios para a OMC. Mas se nem isso
eles querem conceder, então pode ficar difícil. Creio que o Brasil pode
insistir nisso.
5) Nova doutrina de segurança dos
EUA, Plano Colômbia, tudo isso significa desafios novos para a diplomacia
brasileira?
Não, nada de novo a rigor, ainda que
a doutrina do “pre-emptive strike” seja relativamente inédita nas relações
internacionais (mas a Carta da ONU reconhece o direito a auto-defesa). No caso
da Colombia, o elemento importante é mais a atitude do novo governo Uribe do
que propriamente a ação americana, que continua interessada na ajuda ao governo
daquele país para conter o problema do narcotráfico.
Quanto ao problema da pacificação do
país, o Brasil deve continuar manifestando sua boa disposição para ajudar
diplomaticamente no diálogo interno entre os grupos políticos colombianos, mas
não temos intenção de oferecer cooperação militar. Isso os EUA entendem muito
bem.
6) Cuba: O PT deve continuar com a
postura tradicional da diplomacia brasileira? Regionalmente, como seria a
politica do PT (México, Argentina em especial)?
Não haverá mudanças
básicas, pois a postura do Brasil sempre foi favorável ao término do isolamento
diplomático de Cuba. Poderá haver alguma retórica adicional, mas nada de
substantivamente diferente. Cone Sul e América do Sul serão claramente
prioritários, e com o México as relações devem continuar no patamar correto em
que estão hoje.
7) A esquerda mundial, em especial na
Europa, representaria alguma forma de apoio adicional ao projeto do PT, ou o PT
é que exerceria influência na esquerda (latino-americana em especial), com nova
forma de governar e conduzir processos de mudanças? Nesse aspecto, haveria
então reflexos na política externa?
Não teremos um governo de “esquerda
partidária” no Brasil, mas um governo identificado com forças progressistas. A
ideologia política não deveria influenciar a ação governamental, ainda que
algumas declarações de dirigentes políticos (não necessariamente na
Chancelaria) possam induzir a essa identificação com “velhas amizades” nas ONGs
progressistas.
8) Haveria algum modelo comparativo
de politica externa já adotada e a que o PT pretende realizar?
Não conheço, e duvido que o PT atue
segundo modelos genéricos. A fase de governar segundo “rótulos” já passou e nem
o PT pretende ser guiado por algum princípio abstrato de política externa. Pelo
que se tem visto nas últimas semanas, o novo governo será bastante pragmático
em matéria de política externa, o que significa que não se diferenciará muito
do atual, inclusive quanto à falta de um slogan unificador (e necessariamente
redutor). Salvo um vago desenvolvimentismo (expressa na diretiva do programa de
campanha, segundo a qual a política externa terá papel importante no processo
de desenvolvimento do País), o PT atuará segundo as linhas tradicionais da
política exerna do Brasil, que já se define como uma “diplomacia do
desenvolvimento”.
9) Os barbudinhos do Itamaraty
estariam de volta? O que isto significa?
Não se pode dizer que haverá um
“grupo” coeso de diplomatas identificados com uma determinada linha. Isso era
válido na época da “nova ordem econômica internacional”, em que o Brasil tinha
uma grande identidade com as reivindicações transformistas do Terceiro Mundo.
Tudo isso mudou e hoje o pragmatismo impera. Não há um grupo dominante que
possa ser identificado por traços ideológicos, políticos ou sequer faciais.
10) No mais, como diria o
Guerreirinho, a melhor tradição do Itamaraty e saber renovar-se...Como seria
esta renovação?
Uma retórica mais afirmada na defesa
dos interesses nacionais, a busca de benefícios econômicos claros nas
negociações comerciais, um caráter mais operacional e destacado aplicado à
diplomacia econômica e a renovação, com forte ênfase, do compromisso com o
Mercosul e o Cone Sul. No resto, tudo segue igual.
PRA, 23/10/2002
SEM CITAÇÃO NOMINAL.
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