O texto que segue abaixo antecipou um dos encontros do Fórum Social Mundial em Porto Alegre, a capital -- durante os anos do reinado petista na prefeitura, e depois no estado -- dos alternativos aloprados e dos antiglobalizadores em geral, pretendendo fazer um contra-evento ao Fórum Econômico Mundial, de Davos. Nele eu ironizava o turismo político de vários ministros socialistas franceses na capital gaúcha, e antecipava os resultados do encontro, todos condenatórios da globalização, da economia de mercado, do capitalismo perverso, do Consenso de Washington, e uma série de outras bobagens costumeiras.
A publicação desse artigo no Estadão me valeu uma punição de Brasília, ao abrigo da chamada "lei da mordaça", a segunda, depois de uma entrevista para as Páginas Amarelas de
Veja, alguns meses antes (disponível neste link:
http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2016/02/uma-entrevista-normal-pela-qual-o.html), à qual se seguiria uma terceira vez, alguns meses depois.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 1 de outubro de 2017
A esquerda jurássica marca encontro em Porto
Alegre
Paulo Roberto de Almeida
O Estado de São
Paulo (Sábado,
26 de janeiro de 2002, seção “Espaço Aberto).
Num momento em que
até os socialistas franceses, bem conhecidos pelos infantilismos com que ainda
alimentam seu proverbial anti-imperialismo (doublé
de um antiamericanismo primário), arejam suas idéias e publicam livros que
ousam constestar algumas das idées reçues (falsos conceitos) de um
credo vetusto, num momento em que o bom senso econômico parece enfim ter
penetrado o cérebro embotado de alguns anticapitalistas arcaicos, num momento,
emfim, em que até no Brasil o debate político-eleitoral parece encaminhar-se
para um pouco de racionalidade, soam estranhos alguns dos slogans que vêm sendo
agitados em preparação ao Foro de Porto Alegre.
Pomposamente
designado como “Foro Social Mundial” (como se o tradicional foro econômico de
Davos fosse infenso ao debate das questões sociais), o jamboree alternativo de Porto Alegre promete muito frisson e pouca sensatez, num mundo já
sacudido por impulsos fundamentalistas e ataques simplistas ao neoliberalismo.
Até os socialistas franceses que prometem desembarcar en masse, já não dispõem das antigas certezas e não contam mais com
a unanimidade do pensamento único socialista.
Recentemente, três
(ex-?)esquerdistas franceses, da ala moderna da tecnocracia socialista,
publicaram livros que ousam nadar contra a corrente da qual emergiram. Com
efeito, Pascal Lamy (atual comissário europeu para questões comerciais) e Jean
Pisani-Ferry, com L’Europe de nos
volontés (A Europa que nós queremos)
e Dominique Strauss-Kahn (ex-ministro socialista da economia), com La flamme et la cendre (A chama e as cinzas), acabam de revelar
sua discordância (discreta, é verdade) em relação a alguns dos tabus mais
entranhados nessa mesma esquerda: o papel do Estado, a extensão do setor
público, a defesa da (famigerada, para nós) Política Agrícola Européia e, quelle horreur!, a chamada “exceção
cultural”, também conhecida na indústria do audio-visual como exception française. Em seus respectivos
livros, eles reconhecem a dificuldade especificamente francesa de aceitar a
revisão de algumas idéias bem entranhadas na ideologia estatizante que
caracterizou desde sempre o socialismo francês. O francês típico, até mais do
que o socialista, tem realmente um bloqueio mental em relação aos chamados droits acquis, também conhecidos entre
nós como “direitos adquiridos” (lembram-se perene arenga com que os nossos
socialistas e estatocratas agitam a defesa de solenes “princípios
constitucionais”?).
Posso estar
errado, mas creio que esses três tecnocratas modernistas da esquerda francesa
não acompanharão a meia dúzia de seus outros colegas de ministério e dezenas de
outros expoentes da gauche française
no périplo deste final de mês em Porto Alegre, que promete converter-se
temporariamente numa filial da Rive
Gauche. Mas o que exatamente eles poderiam vir fazer na capital do
socialismo moreno?: veicular suas teses contestadoras das velhas idées reçues da maior parte dos participantes
naquele convescote? Que ousadia!. Eles seriam tremendamente vaiados e
praticamente escorraçados pelos anti-globalizadores de todos os matizes que
estarão reunidos em Porto Alegre, não para lançar as sementes de uma nova
reflexão crítica sobre a globalização e eventuais políticas reformistas de
cunho social, mas sim para confirmar a aceitação acrítica das mesmas
banalidades de sempre.
Estarei exagerando
na crítica premonitória? Não creio. Em todo caso, anotemos desde já algumas das
“conclusões” e resoluções que resultarão do piquenique de Porto Alegre e
marquemos encontro em fevereiro para conferir a lista efetiva das meias
verdades que dali emergirão. Em Porto Alegre, a vanguarda do atraso aprovará,
aclamará, confirmará as seguintes contribuições geniais para a análise dos
tempos modernos (atenção, a lista não é exaustiva):
1) A globalização
produz inevitavelmente crises, desigualdades e retrocesso social, como
“demonstrado” pelas turbulências financeiras dos anos 90, pela divergência cada
vez maior entre países pobres e ricos e pelo aumento da concentração de renda
em todos eles.
2) A estagnação e
o colapso de países outrora ricos (como a Argentina) foram provocados pela
adesão às regras do “consenso de Washington”, isto é, pela adesão acrítica e
incondicional às políticas neoliberais, a começar pela fixação do câmbio,
recomendada e sustentadas pelo FMI; essas mesmas políticas também estão
causando recessão e retrocessos sociais em outros países da América Latina, a
começar pelo próprio Brasil.
3) A soberania
nacional precisa ser defendida contra o projeto imperialista de uma zona de
livre comércio hemisférica, imposta contra a vontade dos povos
latino-americanos pelo capital monopolista americano, que pretende nivelar o
terreno para criar um espaço econômico ampliado para a “acumulação ampliada de
capital”.
4) Deve-se, sim,
defender a legitimidade de políticas públicas de “reserva de mercado” e de
apoio a uma “agricultura multifuncional”, inclusive e principalmente os
generosos subsídios estatais que marcam essa invenção genial de políticos de
direita e tecnocratas de esquerda que é a Política Agrícola Comum.
5) O racismo, a
discriminação contra a mulher, a opressão dos povos periféricos e o próprio
terrorismo fundamentalista são o resultado da globalização e de um processo
histórico marcado pela ocupação imperialista, que insiste em preservar
“estruturas de dominação”, inclusive mediante o “terrorismo de Estado”.
6) Mas, como
demonstrado pelo Foro de Porto Alegre, um outro mundo é possível e políticas alternativas
são, não apenas desejáveis como, necessárias. Essas políticas passam pela
promoção dos direitos humanos à frente dos direitos do capital e os fluxos
especulativos desse parasita social devem ser adequadamente controlados e
reprimidos, se possível pela aplicação universal da Tobin Tax.
Essas são, em
síntese, algumas das meias verdades e das velhas mentiras que resultarão do rendez-vous de Porto Alegre. Não
acredita? Marquemos rendez-vous em
fevereiro para verificar a lista das resoluções (uma comparação com os debates
do Foro Econômico Mundial, que este ano se reune em Nova York, não seria
despropositada).
Paulo Roberto de Almeida é
sociólogo, com especialização em
[Washington: 854: 24.01.02]
Publicado n’O Estado de São Paulo (Sábado, 26
janeiro 2002, seção “Espaço Aberto”).
Relação de publicados nº 300.
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