O que é este blog?

Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

terça-feira, 26 de maio de 2020

A “nova guerra do ópio”, desta vez a da China - Rodrigo Silva

A Guerra Fria Econômica assume ares de confrontação colonial, como nas velhas guerras do ópio, só que agora é a China que está na posição de potência agressora, contra a população de Hong Kong. Os “bárbaros estrangeiros” não podem fazer muita coisa...
Paulo Roberto de Almeida

Rodrigo da Silva
Essa história começa com uma flor.

Há seis mil anos os sumérios a chamavam de planta da alegria.

Na Mesopotâmia, ela era utilizada para sanar doenças como insônia e constipação intestinal. Assírios e babilônios extraiam o suco dos seus frutos para produzir remédios. Logo a sua fama alcançou o mundo.

Consta que Deméter, a deusa da agricultura na Mitologia Grega, conhecia suas propriedades tão bem que, desesperada com o estupro de sua filha Perséfone, ingeriu suas substâncias para dormir e, assim, esquecer seu sofrimento.

Egípcios, indianos, persas, árabes e romanos fizeram uso generalizado de sua natureza, mencionada nos textos médicos mais importantes do mundo antigo, incluindo o Papiro de Ebers e os escritos de Dioscórides, Hipócrates, Cláudio Galeno e Avicena.

Homero a descreveu na Odisseia.

Chama-se Papaver somniferum, mas você provavelmente a conhece como papoula.

Essa planta é a origem de um narcótico conhecido como ópio.

O principal agente narcótico do ópio é a morfina.

A curto prazo, seu efeito pode ser descrito como um desligamento do mundo exterior, acompanhado de um prazer intenso.

A longo prazo, sua dependência é perigosa.

Em abstinência, os riscos são imensos: há produção em excesso de noradrenalina, uma das monoaminas com maior influência no humor, na ansiedade, no sono e na alimentação. O coração dispara e o usuário corre seríssimo risco de um ataque cardíaco.

Na China, o ópio foi introduzido por comerciantes árabes na longínqua dinastia Tang, que durou entre 618 a 907. Mas por mil anos foi consumido via oral, como medicamento para aliviar a tensão e a dor, utilizado em quantidades limitadas.

O hábito de fumar ópio só foi introduzido no país no século 17, pelos holandeses. Foi um sucesso. Com o tempo sua importação foi expandida - inicialmente pelos portugueses, depois pelos franceses e finalmente pelos ingleses.

O consumo mostrou-se indispensável à saúde da economia europeia.

Os britânicos usavam os lucros da venda de ópio no Oriente para comprar artigos de luxo como porcelana, seda e chá, com alta demanda no Ocidente.

O comércio, no entanto, desagradava a China, incomodada com o crescimento da dependência do narcótico.

A primeira proibição de consumo de ópio no país é datada em 1729, mas teve pouco efeito prático.

A coisa degringolou de vez apenas mais de um século depois, em 1839, quando o governo chinês destruiu uma imensa quantidade de ópio, equivalente a um ano de consumo, nas mãos de mercadores britânicos.

Os ingleses reagiram com fúria, enviando ao Oriente navios abarrotados de soldados.

Era o início da Primeira Guerra do Ópio.

Os britânicos derrotaram os chineses três anos após o incidente, obrigando-os a assinar um tratado de abertura dos portos e de indenização pelo ópio destruído. O consumo do narcótico, no entanto, continuava proibido.

O negócio complicou de novo em 1856, quando autoridades chinesas revistaram um barco britânico à procura de ópio contrabandeado. Era a desculpa que a Grã-Bretanha precisava para declarar a Segunda Guerra do Ópio, vencida novamente pelos ingleses, em 1857 - dessa vez com apoio dos americanos e dos franceses.

Como preço pela derrota, a China teve de engolir a legalização da importação de ópio para o país por quase um século. O narcótico só voltou a ser proibido em 1949, após a tomada do poder pelos comunistas.

Mas a humilhação não restringiu-se ao consumo de ópio.

Em 1842, para encerrar o primeiro confronto, os chineses cederam aos britânicos, "para sempre", o controle de uma pequena ilha rochosa ao sul, escassamente habitada por pescadores, como um porto livre com direitos de comércio para o continente. Era a Ilha de Hong Kong.

Em 1860, com a derrota no segundo confronto, os chineses acabaram também cedendo a Península de Kowloon, ampliando os poderes dos britânicos na região.

Em 1898, por fim, para garantir o abastecimento da colônia, Londres assegurou ainda os Novos Territórios, uma região agrícola acima da ilha de Hong Kong e da Península de Kowloon, através de um terceiro tratado. Este último, um arrendamento com prazo de validade: 99 anos. Ou seja, com domínio assegurado até 1997.

Assim, Hong Kong, como todo o território é conhecido, passou a ter um desenvolvimento particular sob cuidado dos britânicos.

A região quase inabitada no século 19, alcançou o século 21 como uma das mais densamente povoadas do planeta. E em poucas décadas, se tornou também um dos territórios mais ricos do mundo.

Um cidadão médio de Hong Kong não é apenas cinco vezes mais rico que um cidadão médio da China continental - também é mais rico que um habitante médio do próprio Reino Unido.

Em setembro de 1982, quando Margaret Thatcher, a primeira-ministra inglesa, sentou-se para negociar uma renovação do arrendamento do território com Deng Xiaoping, o líder político chinês, os comunistas foram irredutíveis: não queriam apenas a devolução dos Novos Territórios, prevista no terceiro acordo, mas de toda a região.

Para os chineses, os tratados anteriores eram injustos.

Thatcher assumiria, anos mais tarde, que Deng ameaçou, sem rodeios, tomar Hong Kong à força caso suas solicitações não fossem atendidas - e que não havia absolutamente nada que os britânicos pudessem fazer para impedi-lo.

Assim, em dezembro de 1984, Londres e Pequim estabeleceram que Hong Kong voltaria ao domínio chinês após 156 anos de administração colonial britânica: à meia noite do dia 1º de julho de 1997.

Em comum acordo, ingleses e chineses aceitaram um processo de transição que transformaria Hong Kong numa Região Administrativa Especial.

Numa estrutura conhecida como "Um país, dois sistemas", originalmente proposto pelo próprio Deng Xiaoping, a China prometeu não alterar o sistema em vigor no território por 50 anos.

O que significa dizer que, com o novo tratado, Hong Kong continuaria a ser um porto livre e um centro financeiro internacional até 2047 - com autonomia interna, inclusive fiscal, e amplas liberdades individuais aos seus habitantes, exceto nas áreas de defesa e política externa.

Na última década, no entanto, esta autonomia vem sendo sistematicamente violada por Pequim, gerando uma série de protestos populares em Hong Kong, brutalmente confrontados pela polícia com sprays de pimenta, gás lacrimogêneo e canhões de água.

E é exatamente nesse cenário que alcançamos 2020.

Ao longo de abril e maio, enquanto o mundo prestava atenção na pandemia de coronavírus, Hong Kong foi flagrantemente perdendo sua condição de território independente.

Primeiro, Pequim foi atrás de seus maiores opositores.

Em abril, 15 dos seus principais ativistas pró-democracia foram presos.

Simultaneamente, o Gabinete de Ligação, o mais alto representante do governo chinês em Hong Kong, anunciou que não estava vinculado ao Artigo 22 da Lei Básica.

A Lei Básica de Hong Kong serve como o documento constitucional do território. Essa é a legislação que regula a região desde a queda do domínio britânico, em 1997.

O Artigo 22 da Lei Básica diz que “nenhum departamento do Governo Popular Central e nenhuma província, região autônoma ou município diretamente sob o governo central, pode interferir nos assuntos administrados internamente pela Região Administrativa Especial de Hong Kong”.

Na prática, Pequim admitiu não respeitar o acordo de "um país, dois sistemas", estabelecido até 2047.

Na última semana, o governo chinês assumiu que criará por decreto uma lei de segurança nacional em Hong Kong, contornando o processo legislativo autônomo da região para enfrentar diretamente a dissidência política contra o Partido Comunista.

Em 2003, as tentativas de aprovar uma legislação semelhante provocaram manifestações em massa, fazendo o esforço ser descartado.

Dessa vez, as regras de distanciamento social dificultam os protestos. Mas manifestações aconteceram neste domingo. Pelo menos 180 ativistas foram presos. Inúmeros acabaram hospitalizados.

Nesses últimos 23 anos, essa é a medida mais ousada de Pequim para tomar o controle total de Hong Kong. A tendência é que a legislação seja aprovada ainda nesta semana.

A medida tende a agravar as tensões nas relações da China com os Estados Unidos.

Trump disse há poucos dias que os Estados Unidos responderiam fortemente a qualquer tentativa das autoridades chinesas de impor uma repressão a Hong Kong.

Mike Pompeo, o secretário de Estado americano, disse que as ameaças chinesas podem fazer com que os Estados Unidos reavaliem o tratamento especial que o território recebe como região autônoma sob a lei americana.

Pat Toomey e Chris Van Hollen, dois membros do Senado americano, assumiram na última quinta-feira que apresentarão um projeto de lei capaz de permitir aos Estados Unidos sancionar autoridades e entidades chinesas que aplicarem novas leis de segurança nacional em Hong Kong.

Neste domingo, Robert O'Brien, conselheiro de Segurança Nacional dos Estados Unidos, disse que o país instituirá sanções à China caso a legislação seja aprovada:

"A China depende de capital do resto do mundo para fazer com que sua economia cresça e amplie a classe média. Eles dependem de liquidez e dos mercados financeiros. Se eles perderem acesso a isso por meio de Hong Kong, será um estrago real para Xi Jinping e para o Partido Comunista. Eu espero que eles levem isso em conta, enquanto refletem sobre o próximo passo."

O mercado de ações em Hong Kong, um dos principais centros financeiros do mundo, desabou na última sexta-feira, depois que Pequim anunciou o plano.

Há poucos dias, o Senado americano aprovou um projeto de lei que ameaça proibir empresas chinesas de serem listadas nas bolsas americanas ou angariar fundos de investidores norte-americanos.

O projeto de lei exige que empresas de qualquer nacionalidade, interessadas em participar do mercado de ações nos Estados Unidos, certifiquem às autoridades que “não pertencem ou são controladas por um governo estrangeiro”. A medida atrapalha os planos de algumas das maiores empresas da China, umbilicalmente ligadas a Pequim.

O projeto foi aprovado por unanimidade por republicanos e democratas.

Joe Biden, candidato à presidência pelo partido Democrata, disse à CNBC na última sexta-feira que os Estados Unidos não deveriam se calar em relação a Hong Kong e, se ele fosse presidente, levaria o assunto às Nações Unidas.

“Governamos não apenas pelo exemplo de nosso poder, mas pelo poder de nosso exemplo... e não devemos permanecer calados. Deveríamos pedir ao resto do mundo que condene suas ações.”

Na sexta, o Washington Post publicou que os Estados Unidos cogitam realizar seu primeiro teste nuclear em 28 anos.

Três dias depois, o governo chinês disse que "usará medidas necessárias" caso os Estados Unidos interfiram em Hong Kong.

Hoje, terça-feira, graças ao crescimento das tensões com os americanos, Xi Jinping alertou a China para estar preparada para um combate militar.

A guerra fria do século 21 alcançou o seu verão.

Covid-19 mais grave para diabéticos - Grupo de pesquisadores brasileiros (Fapesp)


Pesquisadores desvendam mecanismo que torna COVID-19 mais grave em diabéticosMaior nível de glicose no sangue é captado por células de defesa e serve como fonte de energia que permite ao vírus se replicar mais, desencadeando resposta imunológica que mata células pulmonares e desregula sistema imune (imagem: Wikimedia Commons)

Pesquisadores desvendam mecanismo que torna COVID-19 mais grave em diabéticos

25 de maio de 2020

André Julião | Agência FAPESP – Um grupo brasileiro de pesquisadores desvendou uma das causas da maior gravidade da COVID-19 em pacientes diabéticos. Como mostraram os experimentos feitos em laboratório, o teor mais alto de glicose no sangue é captado por um tipo de célula de defesa conhecido como monócito e serve como uma fonte de energia extra, que permite ao novo coronavírus se replicar mais do que em um organismo saudável. Em resposta à crescente carga viral, os monócitos passam a liberar uma grande quantidade de citocinas [proteínas com ação inflamatória], que causam uma série de efeitos, como a morte de células pulmonares.
O estudo, apoiado pela FAPESP, é liderado por Pedro Moraes-Vieira, professor do Instituto de Biologia da Universidade Estadual de Campinas (IB-Unicamp), e por pesquisadores que integram a força-tarefa contra a COVID-19 da universidade, coordenada por Marcelo Mori, também professor do IB-Unicamp e coautor do trabalho.
O artigo encontra-se em revisão na Cell Metabolism, mas já está disponível em versão preprint, ainda não revisada por pares.
“O trabalho mostra uma relação causal entre níveis aumentados de glicose com o que tem sido visto na clínica: maior gravidade da COVID-19 em pacientes com diabetes”, diz Moraes-Vieira, pesquisador do Experimental Medicine Research Cluster (EMRC) e do Centro de Pesquisa em Obesidade e Comorbidades (OCRC), um Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPID) apoiado pela FAPESP, com sede na Unicamp.
Por meio de ferramentas de bioinformática, os pesquisadores analisaram inicialmente dados públicos de células pulmonares de pacientes com quadros médios e severos de COVID-19. Foi observada uma superexpressão de genes envolvidos na chamada via de sinalização de interferon alfa e beta, que está ligada à resposta antiviral.
Os pesquisadores observaram ainda no pulmão de pacientes graves com COVID-19 uma grande quantidade de monócitos e macrófagos, duas células de defesa e de controle da homeostase do organismo.
Monócitos e macrófagos eram as células mais abundantes nas amostras e as análises mostraram que a chamada via glicolítica, que metaboliza a glicose, estava bastante aumentada.
As análises por bioinformática foram realizadas pelos pesquisadores Helder Nakaya, professor da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo (FCF-USP), e Robson Carvalho, professor do Instituto de Biociências de Botucatu da Universidade Estadual Paulista (IBB-Unesp).
Glicose e vírus
O grupo da Unicamp realizou, então, uma série de ensaios com monócitos infectados com o novo coronavírus, em que eles eram cultivados em diferentes concentrações de glicose. Os experimentos foram feitos no Laboratório de Estudos de Vírus Emergentes (Leve), que tem nível 3 de biossegurança – um dos mais altos –, e é coordenados por José Luiz Proença Módena, professor do IB-Unicamp apoiado pela FAPESP e coautor do trabalho.
“Quanto maior a concentração de glicose no monócito, mais o vírus se replicava e mais as células de defesa produziam moléculas como as interleucinas 6 [IL-6] e 1 beta [IL-1β)] e o fator de necrose tumoral alfa, que estão associadas ao fenômeno conhecido como tempestade de citocinas, em que não só o pulmão, como todo o organismo, é exposto a essa resposta imunológica descontrolada, desencadeando várias alterações sistêmicas observadas em pacientes graves e que pode levar à morte”, diz Moraes-Vieira.
Os pesquisadores usaram então, nas células infectadas, uma droga conhecida como 2-DG, utilizada para inibir o fluxo de glicose. Eles observaram que o tratamento bloqueou completamente a replicação do vírus, assim como o aumento da expressão das citocinas observadas anteriormente e da proteína ACE-2, aquela pela qual o coronavírus invade as células humanas.
Além disso, usaram uma droga que está sendo testada em pacientes com alguns tipos de câncer. Assim como alguns análogos, a 3-PO inibe a ação de um gene envolvido no aumento do fluxo de glicose nas células. O resultado da sua aplicação foi o mesmo da 2-DG: menos replicação viral e menos expressão de citocinas inflamatórias.
Os resultados que indicaram maior atividade da via glicolítica frente à infecção foram obtidos por meio de análises proteômicas dos monócitos infectados, realizadas em colaboração com Daniel Martins-de-Souza, professor do IB-Unicamp apoiado pela FAPESP.
Por fim, as análises mostraram que o mecanismo era mediado pelo fator induzido por hipóxia 1 alfa. Como é estudada em diversas doenças, é sabido que essa via é mantida estável, em parte pela a presença de espécies reativas de oxigênio na mitocôndria, a usina de energia das células.
Os pesquisadores usaram então antioxidantes nas células infectadas e viram que a hipóxia 1 alfa  diminuía a sua atividade e, assim, deixava de influenciar o metabolismo da glicose. Como consequência, fazia com que o vírus parasse de se replicar nos monócitos, as células de defesa infectadas, que não mais produziam citocinas tóxicas para o organismo.
“Quando intervimos no monócito com antioxidantes ou com drogas que inibem o metabolismo da glicose, nós revertemos a replicação do vírus e também a disfunção em outras células de defesa, os linfócitos T. Com isso, evitamos ainda morte das células pulmonares”, diz Moraes-Vieira.
Os estudos com linfócitos T e a análise da expressão de hipóxia 1 alfa em pacientes foram realizados em colaboração com Alessandro Farias, professor do IB-Unicamp e coautor do trabalho.
Como as drogas usadas nos experimentos com células estão atualmente em testes clínicos para alguns tipos de câncer, poderiam futuramente ser testadas em pacientes com COVID-19.
O trabalho tem como primeiros autores Ana Campos Codobolsista de mestrado da FAPESP; Gustavo Gastão Davanzo, que tem bolsa de doutorado da FAPESP e Lauar de Brito Monteiro, também bolsista de doutorado, todos no IB-Unicamp sob orientação de Moraes-Vieira.
“Esse trabalho só foi possível devido às colaborações, ao empenho dos alunos de pós-graduação, que tem trabalhado noite e dia nesse projeto, e ao financiamento rápido do FAEPEX [Fundo de Apoio ao Ensino, à Pesquisa e à Extensão] da Unicamp e da FAPESP”, diz Moraes-Vieira.
O artigo Elevated glucose levels favor SARS-CoV-2 infection and monocyte response through a HIF-1α/glycolysis dependent axis pode ser lido em: https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=3606770.

Uma nação à deriva - Entrevista Alberto Aggio (Blog Germano Martiniano)

Importante entrevista de Alberto Aggio a um blog de política. Concordo no essencial e no particular. Sim, a nação está sob ataque e à deriva, os dois fenômenos simultaneamente e explico porque. 
O presidente e sua pequena tropa de alucinados querem implantar um regime autoritário, mas não têm capacidade para construir esse regime, por isso o presidente genocida está empenhado em DESTRUIR todos os seus adversários, em qualquer vertente do leque político, da extrema esquerda à própria direita e extrema-direita. 
Sua obsessão demencial é manter o poder, de modo exclusivo, como pretendem todos os ditadores e candidatos de tiranos. Apenas que o presidente é um boçal e rústico, e não tem planos precisos para o seu projeto, daí a legitimidade de se falar de "nação à deriva", conceito que já usei em trabalhos anteriores, ou comentários rápidos no meu blog.
Também concordo em que o PT já não tem mais o apoio popular que pretende ter, por absoluta corrupção e inépcia administrativa, com um presidente-tirano que já deveria estar na cadeia – e só não está por conivência de juízes do STF, alguns mais contra a Lava Jato do que pró-PT – e não pode liderar nenhum processo de impeachment e retomada do caminha democrático.
Mas, os "democratas" – sinceramente não sei quem são, a despeito de Alberto Aggio citar alguns verdadeiros liberais – não têm praticamente nenhum respaldo na sociedade ou nos meios políticos, este dominados por oportunistas (de todos os matizes, inclusive os direitistas que subiram na onda bolsonarista) que só pensam na mesma coisa: conquistar o poder, no Executivo ou outras esferas, em 2022.
Ou seja, continuamos no pântano, por ABSOLUTA INCAPACIDADE DAS ELITES de se unirem em torno da defesa de UM regime democrático – que NÃO PODE ser com Bolsonaro no poder – e em torno de um programa de governo com dupla tarefa: enfrentar a pandemia e assegura as condições mínimas de funcionamento da atividade econômica. 
Não acredito, sinceramente, que isto ocorrerá, pois essas "ELITES" são MEDÍOCRES, e aqui estou falando dos responsáveis pelos dois outros poderes e pelos chefes das FFAA, pois elas são – ao terem autorizados tantos militares a participarem do governo – as patrocinadoras diretas ou indiretas do regime celerado do capitão desmiolado e autoritário.
Infelizmente, acredito que a nação continuará à deriva, esperando que o próprio presidente genocida e demencial cometa ERROS suficientes para incitar essas "elites" a atuar, no sentido de IMPEACHMENT (o que no momento é difícil, dado o Centrão), ou no sentido de forçar a renúncia do celerado presidente. 
Acredito que essas elites deveriam "renunciá-lo", pois a nação não aguenta o descalabro, o desmonte, a desagregação das instituições. Elas o farão?
Não acredito, pelo menos não por enquanto.
Ou seja, a nação continuará à deriva, em desagregação, até algo de mais grave ocorrer.
Como todo acadêmico, sempre tenho meus "sonhos", que obviamente não vão se realizar.
Meu sonho é que o Brasil ultrapasse o "momento Alemanha 1933", ou seja, a montagem do fascismo (o que é exagerado, eu sei), e entre no "momento Ceausescu", que é quando a massa se revolta contra o líder (o que só pode ocorrer com o empilhamento de cadáveres como resultado da postura do capitão genocida). Isso vai ocorrer? Não sei...
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 26 de maio de 2020

UMA NAÇÃO À DERIVA
Entrevista Alberto Aggio

Entrevista concedida a Germano Martiniano. 
Ao entrevistador interessava discutir a partir da caracterização do governo Bolsonaro e dos riscos à democracia. Partimos do seguinte ponto: Bolsonaro “fez uma opção estratégica pelo confronto e isso gera uma sensação de ameaça e insegurança permanentes em relação à manutenção da democracia”. Por todos os descaminhos do governo diante da pandemia da Covid-19, não há como não responsabilizar o presidente, uma vez que “Bolsonaro minimiza a epidemia, confronta governadores e prefeitos, mantem os ataques à mídia, demite dois ministros da saúde e outro que é símbolo da luta contra a corrupção”. 
Além dessas questões, ao final, falamos sobre Democracia Liberal, Social Democracia, Liberalismo além de outros temas. 
Confiram!

Como você avalia o governo Bolsonaro, antes da crise, e agora na forma como está lidando com o Covid-19?
Alberto Aggio – O governo Bolsonaro é resultado de uma eleição legítima, uma rotina em qualquer democracia. Contudo, desde o início, o presidente se pauta por uma estratégia de “destruição” de tudo o que o país construiu nos últimos 30 anos, ou seja, tudo que vem do processo de democratização assentado na Constituição de 1988. Bolsonaro diz que seu objetivo é acabar com a “esquerda”. Na sua versão, com as instituições sociais, politicas e culturais que deram curso à democratização do País. É um equívoco. A democratização foi compartilhada para além da esquerda. Com essa concepção, Bolsonaro expressa a visão da ala mais reacionária do regime militar (1964-1985), aquela que quer repor um regime autoritário por meio de mecanismos democráticos. A estratégia de Bolsonaro é a do confronto. Ele não governa, é um ativador de tensões que busca construir inimigos, muitas vezes imaginários (como a exumação do comunismo como ameaça). Ele instaura um clima de ameaça, afastando-se da ideia basilar de que numa democracia há adversários e não inimigos que precisam ser eliminados. É uma dinâmica que não pode ser parada só pode ir adiante. É o que chamei em um artigo de “guerra de movimento” (https://blogdoaggio.com.br/isso-e-bolsonaro/). 
A “obra de destruição” que busca Bolsonaro não pode ser realizada em apenas um mandato. Por isso, seu horizonte é a reeleição. Quando vem a crise sanitária provocada pelo coronavírus, tudo fica mais crispado pois suas consequências, principalmente econômicas, ameaçam sua reeleição. O que faz então Bolsonaro? Minimiza a epidemia, confronta governadores e prefeitos, mantem os ataques à mídia, demite dois ministros da saúde e outro que é símbolo da luta contra a corrupção, apoia e vai a manifestações públicas que pedem o fechamento do STF e do Congresso, ou seja, radicaliza sua “guerra de movimento”. O resultado é a queda de popularidade nas pesquisas. Começa-se a se falar em impeachment. Bolsonaro é obrigado a rever, pelo menos em parte, a estratégia de confronto. Move-se em direção ao Centrão no intuito de constituir uma base parlamentar para evitar o impedimento. 
É aí que estamos: incerteza, insegurança, preocupação com a continuidade da democracia no Brasil e com a licitude dos recursos públicos uma vez que, como disse Sérgio Abranches, Bolsonaro visa formar com o Centrão não uma “coalizão de governo” mas uma “colusão”, ou seja, um arranjo para enganar (http://www.fundacaoastrojildo.com.br/2015/2020/05/19/sergio-abranches-bolsonaro-em-modo-defesa/). 
Se o governo se sustenta na “ala ideológica” de extrema-direita mais a dos militares, agora Bolsonaro dá passos em direção a um campo que contradiz o seu discurso de campanha contra a alegada “velha política”, promovendo um claro “estelionato eleitoral”. Mas pode bloquear o impeachment, que é o objetivo da operação.


As mortes no Brasil estão crescendo, no entanto, proporcionalmente, por milhões de habitantes, estamos atrás de muitas nações desenvolvidas. Ou seja, mesmo países como Inglaterra, Espanha, Itália etc., não souberam lidar da melhor forma com o vírus. Neste ponto, você não acha que existe uma tentativa da oposição política e parte mídia em responsabilizar o governo Bolsonaro por um problema que tem sido difícil combater até mesmo nas nações mais avançadas?

A.A. Não, não acho. Embora o enfrentamento da pandemia seja complicado porque se trata de algo desconhecido, não creio nem que o Brasil esteja se saindo melhor que países europeus, nem que a mídia atue contra o governo Bolsonaro. O exemplo europeu (e chinês, antes) mostra que a quarentena foi obrigatória, uma imposição, e não uma escolha. Os países europeus, agora, estão saindo dela enquanto o Brasil está entrando na pior fase, com o aumento expressivo do número de mortos. 
Cabe a pergunta: quem seria o principal responsável no combate à epidemia no Brasil? O governo Bolsonaro, quem mais seria? O Ministério da Saúde deveria fazer a mediação dos entes federativos para enfrentar a epidemia. Mas Bolsonaro atacou de saída os governadores que tinham que dar respostas imediatas à enfermidade. Criticou Mandetta quando o ex-ministro, em meados de março, esteve em São Paulo reunido com o governador João Doria discutindo providências diante da pandemia. Foi Bolsonaro quem politizou o combate a epidemia da Covid-19. Pensou que iria prejudicar sua reeleição, se sentiu ameaçado. Bolsonaro não fez outra coisa senão atrapalhar as ações da saúde, abandonando qualquer relação positiva com os governadores e prefeitos. 
Jamais convocou o país para juntos – congresso, sociedade civil, mídia, etc. –, enfrentar a epidemia. Ele não acredita nas indicações científicas, não aceita o isolamento social e se fixou obcessivamente nas supostas virtudes da cloroquina para curar os contaminados. Minimizou as mortes com o patético “E daí?”. Estimulou seus apoiadores a irem às ruas defender a volta ao trabalho, adotando a estratégia de opor economia e vida. E mais: na dantesca reunião de 22 de abril (como corretamente a definiu Vera Magalhães (https://gilvanmelo.blogspot.com/2020/05/vera-magalhaes-o-inferno-de-dante.html), Bolsonaro propôs um decreto para armar a população com o suposto intuito de enfrentar decisões de dirigentes eleitos democraticamente a respeito do isolamento social.  
E aqui estamos, ultrapassando a casa dos 22 mil mortos e isso vai se acelerar. Bolsonaro é sim o responsável por essas mortes provocadas pela Covid-19. Seria dele que os brasileiros deveriam esperar liderança, apreço e convicção na ciência além de compaixão nesse momento tão difícil. Mas ele só ofereceu deboche, desorientação e morte.


Aggio, a economia brasileira é marcada pela informalidade, milhares de pessoas não possuem nem CPF para receber o auxílio emergencial. Nossa realidade é bem distinta dos países mais avançados que permitem ações mais restritas quanto o isolamento social. Como lidar com essa situação na qual as pessoas necessitam, como diz o jargão popular, de vender o almoço para garantir a janta?
A.A. – Esse país conseguiu criar um “cadastro único” para os mais pobres receberem mensalmente as várias bolsas, desde FHC, e o bolsa família. Não conseguiria fazer algo similar nessa situação de emergência? É uma “desculpa deslavada”, como se diz popularmente. Isolamento social não é coisa de rico, como o discurso bolsonarista quer fazer crer. Inclusive, nenhum prefeito ou governador propôs isolamento total (lockdown). Atividades essenciais continuam a operar e por isso se fala que o ideal seria um isolamento entre 50% e 70%; ninguém falou em 100%. Claro que existem dificuldades, mas onde elas existem, como na favela Paraisópolis, em São Paulo (quer um lugar onde tenha mais pobreza e necessidades?), os moradores se organizaram para se ajudar e garantir algum isolamento. Recentemente se inaugurou um hospital de campanha na área para atender aquela população. 
E de Bolsonaro veio o quê? A noção de “isolamento vertical”, que é uma falácia: imagina-se que confinando os grupos de risco (idosos e quem tem comorbidades) se diminui o contágio e possíveis complicações. Isso não é verdade. As pessoas que convivem com eles levam o vírus para dentro das casas. Além disso, no Norte do país, no Amazonas, está morrendo gente jovem de coronavírus; perto de 40% ou mais não são de grupo de risco. Os problemas da pandemia podem ser enfrentados com solidariedade, ciência e espirito público. Mas isso o governo Bolsonaro parece que não carrega como uma de suas virtudes, se é que em alguma.

Aggio, embora Bolsonaro fale grandes bobagens e possua algumas ações que flertam com a ditadura brasileira, como ter comparecido em um movimento de rua que pedia a volta do AI-5, vemos que os poderes legislativo e judiciário continuam agindo de forma independente, nossas instituições parecem preservadas e a opinião pública livre e independente para se manifestar. Mediante ao que escrevi acima, para você, o governo Bolsonaro representa uma ameaça à democracia brasileira? Se sim, por que?


A.A. – Como eu disse acima, o governo Bolsonaro fez uma opção estratégica pelo confronto e isso gera uma sensação de ameaça e insegurança permanentes em relação à manutenção da democracia. As instituições da democracia só continuam funcionando em função de atores políticos, sociais e culturais que dão vigor a elas. Bolsonaro não apenas diz bobagens. Ele dirige e orienta ações contra a democracia. Vide suas posições em relação à imprensa (creio que não preciso mencioná-las), ao meio ambiente, à cultura, ao patrimônio histórico, às universidades, etc.. Está claro que é um governo extremista de direita, nada liberal e que atenta contra direitos básicos que estão da Constituição. 
Pior, ele isola o país internacionalmente, faz com que a sociedade regrida em inúmeras pautas civilizatórias e humanistas que tínhamos avançado em termos sociais e culturais, como as dimensões de gênero, a questão da violência, da solidariedade, da laicidade do Estado, etc. Uma das marcas de Bolsonaro é o seu antiintelectualismo e isso faz com que todo o governo seja impactado por essa visão. Contra a Constituição de 1988, Bolsonaro retira (ou expulsa) do Estado a sociedade organizada, que é um dos elementos de sua desoligarquização, ou seja, da ampliação do próprio Estado, pela via da democracia. Com Bolsonaro, a democracia está bloqueada e regride. E isso gera uma sensação de retrocesso que é sentida no conjunto da sociedade. Não é à toa que ele despenca nas pesquisas e mantem seu apoio apenas no núcleo mais radical, que o apoia cegamente.

Existem elementos suficientes que justifiquem um possível pedido de impeachment? Caso existam, você acredita que ele possa ocorrer?
A.A. – Inúmeros especialistas em direito constitucional já disseram que sobram elementos para o impedimento de Bolsonaro. Em geral, os crimes contra o decoro lideram a lista. Tentar utilizar, por exemplo, a Polícia Federal para defender a família e os amigos é prevaricação, ou seja, é mais do que intervenção, o que já é inconstitucional. Manter um sistema de informações privado (que não se sabe muito bem o que é) está fora das atribuições constitucionais de um presidente da República, é um outro exemplo. Contudo, a questão é política, antes de tudo. Olhando a situação com as lentes de hoje, creio que não existe maioria suficiente na Câmara dos Deputados para avançar um processo de impeachment. Lançá-lo poderia reforçar Bolsonaro ao invés de enfraquece-lo. 
A operação realizada em direção ao Centrão surtiu efeito. Por outro lado, a crise sanitária e a necessidade de isolamento social impedem que o sentimento de desencanto com o governo transborde para as ruas numa contestação massiva. Penso que a ameaça de existência ou de criação de uma “milícia armada” dentre os apoiadores de Bolsonaro é outra coisa preocupante. Ambos os fatores definem muito da situação complicada para o impeachment, em termos políticos. O processo de crime comum que seria encaminhado pela PGR ao STF, aparentemente mais rápido, tem outros obstáculos. É difícil dizer hoje por onde esse processo irá ser encaminhado ou se será encaminhado.

Aggio, em 2018 você participou do Ato do Polo Democrático Reformista, um movimento de políticos e intelectuais de centro que, naquela ocasião de eleições, visava combater os chamados extremos, Bolsonaro e o PT. Em recente artigo (https://gilvanmelo.blogspot.com/2020/05/mathias-alencastro-vida-e-morte-da.html), Mathias Alencastro, doutor em Ciência Política por Oxford, disse que na Europa partidos políticos, até de diferentes vertentes, têm se unido para combater o extremismo de direita, citando a “Geringonça” de Portugal. Pois bem, em 2018 e trazendo para os dias atuais, se os partidos de centro, e até mesmo o Polo Democrático Reformista, estavam tão preocupados em “salvar” a democracia dos considerados extremos, por que não houve uma união entre os nomes e partidos democráticos de centro, como Ciro, Alckmin e Marina?
A.A. – É difícil responder a isso. É claro que cada opção eleitoral feita deve se responsabilizar por suas consequências. Creio que houve muitos erros de encaminhamento e de opções. Havia um clima muito desfavorável à política. Eu mesmo escrevi sobre a antipolítica como um caldo de cultura antidemocrático naquela conjuntura. E todos nós perdemos. Mas mesmo assim, continuamos preocupados em “salvar” a democracia. A sua conquista no Brasil foi muito custosa e difícil. É justo que nós a defendamos. 
É verdade que na Europa existiram articulações que impediram, em alguns países, a ascensão da extrema-direita ao poder. Na Itália isso é bastante claro. Matteo Salvini imaginou que poderia conquistar “plenos poderes”, mas fez uma manobra desastrada que abriu a possibilidade de retirá-lo do poder. É um caso especifico. 
Na Espanha houve uma espécie de renascimento do PSOE e o Podemos, depois de muitas reviravoltas, moveu-se para uma aliança de “governo de esquerdas” e o VOX (extrema-direita) foi anulado. Creio que a Geringonça, em Portugal, pelas informações que tenho, nunca foi uma coalisão eleitoral e sim uma colisão de governo. Hoje ela não existe mais. Mas em Portugal, a extrema-direita é fraquíssima.


Você enxerga a necessidade de uma união dos partidos para vencer Bolsonaro e/ou o PT, assim como colocou Mathias Alencastro?
A.A. – Mais do que união de partidos, creio que será necessário unir todos os democratas, da direita à esquerda, para vencer Bolsonaro. O PT não está no governo. Ele já foi derrotado. O PT representa setores importantes das classes populares, mas não é um sujeito democrático confiável, além de ter um passivo terrível no que se refere à corrupção e ao aparelhamento do Estado. Além de uma liderança ancilosada, que é o Lula. 
O problema do Brasil hoje é Bolsonaro e não o PT, que está em declínio, enfraquecido, embora tenha alcançado um bom desempenho nas majoritárias de 2018. De qualquer forma, a sociedade reconhece a polarização entre Bolsonaro e o PT. 
O problema é superar esse reconhecimento, indicar que a situação hoje é outra. Bolsonaro nos leva para o precipício. O vídeo revelando a reunião ministerial de 22 de abril é pavoroso, nos enche de vergonha, demonstra que o Brasil precisa ultrapassar o erro de 2018 e voltar a pensar em novas possibilidades, novas lideranças, que sejam capazes de unir o país e voltar a pensar no seu futuro.

Aggio, quando você vê a ascensão de grupos denominados de extrema direita no mundo, como um todo, você acredita que isso é parte da democracia, dar voz a pluralidade de ideias políticas, ou você analisa como uma ameaça ou crise “DA” democracia liberal?
A.A. – Essa extrema-direita que está aí é iliberal. Foi Viktor Orban, primeiro ministro da Hungria, que criou a expressão “democracia iliberal” para caracterizar esse movimento. D. Trump e J. Bolsonaro a representam à sua maneira e em seus países. Isso é público e insofismável. Essa corrente política é contra o pluralismo que caracteriza a democracia liberal que conhecemos. Contradita também as diversas correntes do liberalismo democrático que vicejou no final do século XX nos países mais avançados e que ainda está aí. Essa extrema-direita é visceralmente contra a democracia como civilização. 
A ascensão da extrema-direita não é resultado do pluralismo, justamente o contrário, é resultado de uma fragilidade e de equívocos que permitiram que isso ocorresse. A virtude da democracia aponta para a ampliação da emancipação humana e não para um projeto de individualismo exacerbado e de guerra de todos contra todos. 
Penso que o crescimento dessas forças políticas expressa uma crise da e na democracia ocidental; uma coisa não exclui a outra, como pensam alguns. E se prende a conflitos políticos e econômicos da nossa contemporaneidade e não a batalhas ideológicas simplesmente. É um problema que tem que se abordado pela política e não pela gramática da ideologia.




Viktor Orban e Jair Bolsonaro

Admitindo a radicalidade desses extremos, qual autocritica que os democratas liberais poderiam fazer e quais mudanças poderiam realizar para contornar este cenário?
A.A. – Creio que autocrítica devemos fazer todos, pois perdemos eleitoral e politicamente. Mas devemos continuar a defender a democracia. Estamos num momento defensivo e para melhor defendê-la é preciso também avançar. A democracia não é um sistema ou regime político que possa existir sem uma defesa intransigente dos seus princípios e valores: liberdade, emancipação, deveres e direitos, compromisso político, institucionalidade, transparência, justiça social, etc… Dois pontos são importantes. 
Primeiro, pensar a democracia como complexidade. Ela não se materializa, não se concretiza, não se torna real, a partir da simplificação, uma visão branco e preto, com todas as perversões do pensamento binário. Essa visão da política, no nosso caso, leva rapidamente para as ideias sempre estúpidas de um “salvador da pátria” ou de um “mito” que muitos seguem cegamente. 
Segundo, que a democracia só se vitaliza, só avança com “mais democracia” ou, em outros termos, democratizando a democracia. Essa é uma formulação presente nos liberais progressistas que se aproxima bastante de formulas progressistas da esquerda democrática, socialdemocrática e reformista.

Aggio, a analista econômica, Renata Barreto, em artigo para o InfoMoney, disse para “não confundirmos o modelo nórdico com socialista”. Durante o artigo, ela discorre que apesar das altas taxas de impostos cobradas pelo governo, a Dinamarca, por exemplo, tem várias características de um país liberal. Pois bem, este debate Liberalismo versus Social Democracia ainda existe? Os países nórdicos são, de fato, sociais democratas?

A.A. – Tem que se olhar o liberalismo do ponto de vista histórico. Lembro que Harold Lask, historiador inglês, dizia, que o socialismo seria uma consequência natural da aplicação do liberalismo. Muito pouca gente sabe que o liberal G. Mazzini, um dos líderes da unificação italiana e o comunista K. Marx, publicavam seus escritos pela mesma editora londrina, por volta de 1846/48, a “Northern Star”, que se notabilizou pelos debates sobre democracia e o movimento operário às vésperas das revoluções de 1848. 
Os socialdemocratas que, no final do século XIX, começaram a participar das eleições e ascenderam ao governo em países que cada vez mais se tornavam democracias liberais, como E. Beirstein e K. Kautsky, foram criticados como liberais e traidores de classe. Por conta deles e de outros, passou-se a se falar em “socialismo liberal”. 
Veja, são exemplos históricos que anulam a versão de que há uma contradição antagônica entre liberalismo e socialdemocracia. O liberalismo é uma concepção de mundo enquanto a socialdemocracia foi e é uma política de massas no contexto do Estado Ampliado. Para finalizar, a noção de “regulação” nasce nos países nórdicos com os socialdemocratas entre as duas guerras e era uma alternativa tanto ao fascismo quanto ao comunismo nos anos 30. Não há dúvida que os países nórdicos são socialdemocratas e que o liberalismo não seja algo estranho àquela construção histórica. O que é certo é que eles não permanecerão congelados historicamente.

O nacional desenvolvimentismo petista trouxe grandes prejuízos ao Brasil, sem falar do grande “projeto” de corrupção descortinado pela Lava-Jato. Depois do petismo, do excesso de Estado e funcionalismo público, temos visto muitas pessoas (inclusive eu) defendendo menos Estado e mais mercado. Como você avalia as ideias liberais, hoje até mais representadas pelo Partido Novo e pelo ministro Guedes, na sociedade brasileira como um todo?
A.A. – Veja, o PT não adotou o nacional-desenvolvimentismo durante todo período dos seus governos. O primeiro governo Lula e o último de Dilma são completamente distintos nesse sentido.  A questão da hipertrofia do Estado em nossa história é muito anterior a isso. 
O nosso estatismo forma parte de uma espécie de tradição que nos acompanha deste a colonização portuguesa, se acentuou no Império e não pode ser excluída de nenhuma fase de nossa história republicana. 
O regime militar foi ao mesmo tempo estatista e liberal, dando vazão aos apetites empresariais no período do chamado milagre brasileiro (1968-1973), o tal “espirito animal” ou “selvagem” do empresariado a que se referia Delfim Neto, ex-ministro da Fazenda do regime militar. Contudo, nos dias de hoje, pensar de forma apartada e até oposta os conceitos de Estado e mercado talvez não faça mais sentido e nem seja produtivo. 
O pensamento neoliberal quer mantê-los apartados. Mas não tenho dúvidas que as ideias liberais no Brasil vão muito além das referências ao partido Novo ou a Paulo Guedes. Aconselho a se visitar as páginas de um grande jornal liberal, O Estado de São Paulo, para ver como uma das mais importantes linhagens do nosso liberalismo avalia o país sob Bolsonaro. 
Por outro lado, há diversos liberais que pensam de forma independente e são muito críticos tanto ao Novo e mais ainda ao Guedes, um neoliberal que, formado em Chicago e inspirado no caso chileno do período pinochetista, distancia-se da tradição das linhagens mais importantes e relevantes do liberalismo aqui no Brasil, que podem ir de Pedro Malan, Bolivar Lamounier até Monica de Bolle e Elena Landau, para citar apenas alguns da boa cepa que esse país já produziu.

Para encerrar, falando em projeto de poder para o Brasil e frente a este debate de mais ou menos Estado, o que você considera ser essencial para o nosso país mediante toda a nossa realidade socioeconômica?
A.A. – Este talvez seja um tema para uma outra entrevista de tão complexo que é elaborar um projeto aqui, em poucas linhas. De qualquer forma, creio que temos que ultrapassar essa situação terrível que estamos vivendo, acossados por uma pandemia e submetidos à deriva que nos é imposta por um governo como o de Bolsonaro. 
Temos que resgatar a nossa capacidade de diálogo, de nos atualizarmos ao mundo e de olharmos para as nossas particularidades enquanto país que se modernizou carregando inúmeros déficits que expressam a nossa dramática desigualdade bem como nossa miséria cultural e moral, sérios obstáculos à democracia. 
Não há salto a ser dado nem “fuga para frente” a ser seguida, como se pensou no passado. O nosso destino está dado aqui e agora. Esse é o desafio.

Fonte:


Jair Bolsonaro’s populism is leading Brazil to disaster - Gideon Rachman (FT)

Jair Bolsonaro’s populism is leading Brazil to disaster

If life were a morality tale, the Covid-19 antics would turn Brazilians against the populist president

Brazil's President Jair Bolsonaro speaks with journalists while wearing a protective face mask as he arrives at Alvorada Palace, amid the coronavirus disease (COVID-19) outbreak, in Brasilia, Brazil, May 22, 2020. REUTERS/Adriano Machado TPX IMAGES OF THE DAY
Jair Bolsonaro is responsible for the chaotic response that has allowed the pandemic to get out of hand © Reuters
On a visit to Brazil last year, I had a chat with a prominent financier about the parallels between Donald Trump and Jair Bolsonaro
“They are very similar,” she said, before adding: “But Bolsonaro is much stupider.” This answer took me aback since the US president is not generally regarded as a towering intellect. But my banker friend was insistent. “Look,” she said. “Trump has run a major business. Bolsonaro never made it above captain in the army.”
The coronavirus pandemic has reminded me of that observation. Brazil’s president has taken an approach that is strikingly similar to that of Mr Trump — but even more irresponsible and dangerous. Both leaders have become obsessed with the supposedly curative properties of the antimalarial drug hydroxychloroquine. But while Mr Trump is merely taking it himself, Mr Bolsonaro has forced the Brazilian health ministry to issue new guidelines, recommending the drug for coronavirus patients. The US president has squabbled with his scientific advisers. But Mr Bolsonaro has sacked one health minister and provoked his replacement to resign. Mr Trump has expressed sympathy for anti-lockdown protesters; Mr Bolsonaro has addressed their rallies.
Sadly, Brazil is already paying a high price for its president’s antics — and things are getting worse fast. Coronavirus hit Brazil relatively late. But the country has the second-highest infection rate in the world and the sixth-highest recorded Covid-19 deaths. The number of deaths in Brazil, which accounts for roughly half the population of Latin America, is now doubling every two weeks, compared with every two months in the hard-hit UK.
Brazil’s economic and social make-up means that the country will be severely hit as the pandemic accelerates. The hospital system in São Paulo, Brazil’s biggest city, is already close to collapse. With large parts of the population living in crowded conditions, and without savings, mass unemployment could lead to hunger and desperation over the coming months.
But is it fair to blame Mr Bolsonaro? The president, who was sworn into office on January 1 2019, is obviously not responsible for the virus — nor for the poverty and overcrowding that make Covid-19 such a threat to the country. He has also not been able to prevent many of Brazil’s governors and mayors from imposing lockdowns in local areas. But by encouraging his followers to flout the lockdowns and undermining his own ministers, Mr Bolsonaro is responsible for the chaotic response that has allowed the pandemic to get out of hand. As a result, the health and economic damage suffered by Brazil is likely to be harsher and deeper than it should have been. Other countries facing even tougher social conditions, such as South Africa, have had a much more disciplined and effective response.
If life were a morality tale, Mr Bolsonaro’s coronavirus antics would lead Brazil to turn against its populist president. But reality may not be so simple.
There is no doubt that Mr Bolsonaro is in political trouble. His popularity ratings have tumbled and are now below 30 per cent; some 50 per cent of the population disapprove of his handling of the crisis. The support he once enjoyed from mainstream conservatives — who were desperate to see the back of the leftwing Workers’ party — is now crumbling away. Sergio Moro, his popular corruption-fighting justice minister, resigned last month. Mr Moro’s allegations about the president’s efforts to interfere in police investigations were sufficiently explosive to provoke the Supreme Court into opening an investigation that could lead to his impeachment.
But impeachment in Brazil is as much a political as a legal process. The misdemeanours that led to the removal of Dilma Rousseff as president in 2016 were fairly technical. It was more significant that Ms Rousseff had sunk to a 10 per cent approval rating in the polls and the economy had suffered a deep recession. Mr Bolsonaro’s ratings are still way above Ms Rousseff’s nadir. And while the economy is undoubtedly heading for a deep recession and a surge in unemployment, his anti-lockdown rhetoric may buy him some political protection. Oliver Stuenkel, a professor at the Getúlio Vargas Foundation in São Paulo, says, “What Bolsonaro wants to do is to disassociate himself from the economic crisis that is approaching.”
The social isolation measures that Mr Bolsonaro decries, may actually help him politically. They could prevent the mass demonstrations that provided the impetus for the drive to impeach Ms Rousseff. And they will make it harder for politicians to plot and bargain in the proverbial “smoke-filled rooms” — a process that is necessary to stitch together a successful impeachment. Plotting over the phone is just not the same. Some politicians may feel that plunging Brazil into a political crisis is unseemly, in the middle of a pandemic.
Yet national unity will not emerge while Mr Bolsonaro is president. In classic populist fashion he thrives on the politics of division. Brazil is already a deeply polarised country, where conspiracy theories are rife. The deaths and unemployment caused by Covid-19 are exacerbated by Mr Bolso­naro’s leadership. But, perversely, a health and economic disaster could create an even more hospitable environment for the politics of fear and unreason.

Weekly podcast

Sign up here to the new podcast from Gideon Rachman, the FT’s chief foreign affairs columnist, and listen in on his conversations with the decision-makers and thinkers from all over the globe who are shaping world affairs
Follow Gideon Rachman with myFT and on Twitter