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terça-feira, 26 de maio de 2020
A “nova guerra do ópio”, desta vez a da China - Rodrigo Silva
Paulo Roberto de Almeida
Rodrigo da Silva
Essa história começa com uma flor.
Há seis mil anos os sumérios a chamavam de planta da alegria.
Na Mesopotâmia, ela era utilizada para sanar doenças como insônia e constipação intestinal. Assírios e babilônios extraiam o suco dos seus frutos para produzir remédios. Logo a sua fama alcançou o mundo.
Consta que Deméter, a deusa da agricultura na Mitologia Grega, conhecia suas propriedades tão bem que, desesperada com o estupro de sua filha Perséfone, ingeriu suas substâncias para dormir e, assim, esquecer seu sofrimento.
Egípcios, indianos, persas, árabes e romanos fizeram uso generalizado de sua natureza, mencionada nos textos médicos mais importantes do mundo antigo, incluindo o Papiro de Ebers e os escritos de Dioscórides, Hipócrates, Cláudio Galeno e Avicena.
Homero a descreveu na Odisseia.
Chama-se Papaver somniferum, mas você provavelmente a conhece como papoula.
Essa planta é a origem de um narcótico conhecido como ópio.
O principal agente narcótico do ópio é a morfina.
A curto prazo, seu efeito pode ser descrito como um desligamento do mundo exterior, acompanhado de um prazer intenso.
A longo prazo, sua dependência é perigosa.
Em abstinência, os riscos são imensos: há produção em excesso de noradrenalina, uma das monoaminas com maior influência no humor, na ansiedade, no sono e na alimentação. O coração dispara e o usuário corre seríssimo risco de um ataque cardíaco.
Na China, o ópio foi introduzido por comerciantes árabes na longínqua dinastia Tang, que durou entre 618 a 907. Mas por mil anos foi consumido via oral, como medicamento para aliviar a tensão e a dor, utilizado em quantidades limitadas.
O hábito de fumar ópio só foi introduzido no país no século 17, pelos holandeses. Foi um sucesso. Com o tempo sua importação foi expandida - inicialmente pelos portugueses, depois pelos franceses e finalmente pelos ingleses.
O consumo mostrou-se indispensável à saúde da economia europeia.
Os britânicos usavam os lucros da venda de ópio no Oriente para comprar artigos de luxo como porcelana, seda e chá, com alta demanda no Ocidente.
O comércio, no entanto, desagradava a China, incomodada com o crescimento da dependência do narcótico.
A primeira proibição de consumo de ópio no país é datada em 1729, mas teve pouco efeito prático.
A coisa degringolou de vez apenas mais de um século depois, em 1839, quando o governo chinês destruiu uma imensa quantidade de ópio, equivalente a um ano de consumo, nas mãos de mercadores britânicos.
Os ingleses reagiram com fúria, enviando ao Oriente navios abarrotados de soldados.
Era o início da Primeira Guerra do Ópio.
Os britânicos derrotaram os chineses três anos após o incidente, obrigando-os a assinar um tratado de abertura dos portos e de indenização pelo ópio destruído. O consumo do narcótico, no entanto, continuava proibido.
O negócio complicou de novo em 1856, quando autoridades chinesas revistaram um barco britânico à procura de ópio contrabandeado. Era a desculpa que a Grã-Bretanha precisava para declarar a Segunda Guerra do Ópio, vencida novamente pelos ingleses, em 1857 - dessa vez com apoio dos americanos e dos franceses.
Como preço pela derrota, a China teve de engolir a legalização da importação de ópio para o país por quase um século. O narcótico só voltou a ser proibido em 1949, após a tomada do poder pelos comunistas.
Mas a humilhação não restringiu-se ao consumo de ópio.
Em 1842, para encerrar o primeiro confronto, os chineses cederam aos britânicos, "para sempre", o controle de uma pequena ilha rochosa ao sul, escassamente habitada por pescadores, como um porto livre com direitos de comércio para o continente. Era a Ilha de Hong Kong.
Em 1860, com a derrota no segundo confronto, os chineses acabaram também cedendo a Península de Kowloon, ampliando os poderes dos britânicos na região.
Em 1898, por fim, para garantir o abastecimento da colônia, Londres assegurou ainda os Novos Territórios, uma região agrícola acima da ilha de Hong Kong e da Península de Kowloon, através de um terceiro tratado. Este último, um arrendamento com prazo de validade: 99 anos. Ou seja, com domínio assegurado até 1997.
Assim, Hong Kong, como todo o território é conhecido, passou a ter um desenvolvimento particular sob cuidado dos britânicos.
A região quase inabitada no século 19, alcançou o século 21 como uma das mais densamente povoadas do planeta. E em poucas décadas, se tornou também um dos territórios mais ricos do mundo.
Um cidadão médio de Hong Kong não é apenas cinco vezes mais rico que um cidadão médio da China continental - também é mais rico que um habitante médio do próprio Reino Unido.
Em setembro de 1982, quando Margaret Thatcher, a primeira-ministra inglesa, sentou-se para negociar uma renovação do arrendamento do território com Deng Xiaoping, o líder político chinês, os comunistas foram irredutíveis: não queriam apenas a devolução dos Novos Territórios, prevista no terceiro acordo, mas de toda a região.
Para os chineses, os tratados anteriores eram injustos.
Thatcher assumiria, anos mais tarde, que Deng ameaçou, sem rodeios, tomar Hong Kong à força caso suas solicitações não fossem atendidas - e que não havia absolutamente nada que os britânicos pudessem fazer para impedi-lo.
Assim, em dezembro de 1984, Londres e Pequim estabeleceram que Hong Kong voltaria ao domínio chinês após 156 anos de administração colonial britânica: à meia noite do dia 1º de julho de 1997.
Em comum acordo, ingleses e chineses aceitaram um processo de transição que transformaria Hong Kong numa Região Administrativa Especial.
Numa estrutura conhecida como "Um país, dois sistemas", originalmente proposto pelo próprio Deng Xiaoping, a China prometeu não alterar o sistema em vigor no território por 50 anos.
O que significa dizer que, com o novo tratado, Hong Kong continuaria a ser um porto livre e um centro financeiro internacional até 2047 - com autonomia interna, inclusive fiscal, e amplas liberdades individuais aos seus habitantes, exceto nas áreas de defesa e política externa.
Na última década, no entanto, esta autonomia vem sendo sistematicamente violada por Pequim, gerando uma série de protestos populares em Hong Kong, brutalmente confrontados pela polícia com sprays de pimenta, gás lacrimogêneo e canhões de água.
E é exatamente nesse cenário que alcançamos 2020.
Ao longo de abril e maio, enquanto o mundo prestava atenção na pandemia de coronavírus, Hong Kong foi flagrantemente perdendo sua condição de território independente.
Primeiro, Pequim foi atrás de seus maiores opositores.
Em abril, 15 dos seus principais ativistas pró-democracia foram presos.
Simultaneamente, o Gabinete de Ligação, o mais alto representante do governo chinês em Hong Kong, anunciou que não estava vinculado ao Artigo 22 da Lei Básica.
A Lei Básica de Hong Kong serve como o documento constitucional do território. Essa é a legislação que regula a região desde a queda do domínio britânico, em 1997.
O Artigo 22 da Lei Básica diz que “nenhum departamento do Governo Popular Central e nenhuma província, região autônoma ou município diretamente sob o governo central, pode interferir nos assuntos administrados internamente pela Região Administrativa Especial de Hong Kong”.
Na prática, Pequim admitiu não respeitar o acordo de "um país, dois sistemas", estabelecido até 2047.
Na última semana, o governo chinês assumiu que criará por decreto uma lei de segurança nacional em Hong Kong, contornando o processo legislativo autônomo da região para enfrentar diretamente a dissidência política contra o Partido Comunista.
Em 2003, as tentativas de aprovar uma legislação semelhante provocaram manifestações em massa, fazendo o esforço ser descartado.
Dessa vez, as regras de distanciamento social dificultam os protestos. Mas manifestações aconteceram neste domingo. Pelo menos 180 ativistas foram presos. Inúmeros acabaram hospitalizados.
Nesses últimos 23 anos, essa é a medida mais ousada de Pequim para tomar o controle total de Hong Kong. A tendência é que a legislação seja aprovada ainda nesta semana.
A medida tende a agravar as tensões nas relações da China com os Estados Unidos.
Trump disse há poucos dias que os Estados Unidos responderiam fortemente a qualquer tentativa das autoridades chinesas de impor uma repressão a Hong Kong.
Mike Pompeo, o secretário de Estado americano, disse que as ameaças chinesas podem fazer com que os Estados Unidos reavaliem o tratamento especial que o território recebe como região autônoma sob a lei americana.
Pat Toomey e Chris Van Hollen, dois membros do Senado americano, assumiram na última quinta-feira que apresentarão um projeto de lei capaz de permitir aos Estados Unidos sancionar autoridades e entidades chinesas que aplicarem novas leis de segurança nacional em Hong Kong.
Neste domingo, Robert O'Brien, conselheiro de Segurança Nacional dos Estados Unidos, disse que o país instituirá sanções à China caso a legislação seja aprovada:
"A China depende de capital do resto do mundo para fazer com que sua economia cresça e amplie a classe média. Eles dependem de liquidez e dos mercados financeiros. Se eles perderem acesso a isso por meio de Hong Kong, será um estrago real para Xi Jinping e para o Partido Comunista. Eu espero que eles levem isso em conta, enquanto refletem sobre o próximo passo."
O mercado de ações em Hong Kong, um dos principais centros financeiros do mundo, desabou na última sexta-feira, depois que Pequim anunciou o plano.
Há poucos dias, o Senado americano aprovou um projeto de lei que ameaça proibir empresas chinesas de serem listadas nas bolsas americanas ou angariar fundos de investidores norte-americanos.
O projeto de lei exige que empresas de qualquer nacionalidade, interessadas em participar do mercado de ações nos Estados Unidos, certifiquem às autoridades que “não pertencem ou são controladas por um governo estrangeiro”. A medida atrapalha os planos de algumas das maiores empresas da China, umbilicalmente ligadas a Pequim.
O projeto foi aprovado por unanimidade por republicanos e democratas.
Joe Biden, candidato à presidência pelo partido Democrata, disse à CNBC na última sexta-feira que os Estados Unidos não deveriam se calar em relação a Hong Kong e, se ele fosse presidente, levaria o assunto às Nações Unidas.
“Governamos não apenas pelo exemplo de nosso poder, mas pelo poder de nosso exemplo... e não devemos permanecer calados. Deveríamos pedir ao resto do mundo que condene suas ações.”
Na sexta, o Washington Post publicou que os Estados Unidos cogitam realizar seu primeiro teste nuclear em 28 anos.
Três dias depois, o governo chinês disse que "usará medidas necessárias" caso os Estados Unidos interfiram em Hong Kong.
Hoje, terça-feira, graças ao crescimento das tensões com os americanos, Xi Jinping alertou a China para estar preparada para um combate militar.
A guerra fria do século 21 alcançou o seu verão.
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