O homem e a autoridade
“ – Nunca respeitei a autoridade, e adoro vê-la desafiada. (...) Para ser sincero, devo dizer que adoro estar em paz com a autoridade, assim como qualquer homem. Contudo, isso não é razão para não questioná-la. (...) Tudo deve ser questionado e discutido, visto de todos os ângulos, examinados e levados à luz. Os homens esquecem-se disso. Tendem a ver tudo como é e nunca perguntam como deveria ser.”
Palavras do comerciante judeu português Miguel Lienzo, personagem principal do romance histórico ambientado na Amsterdã de meados do século XVII, O Mercador de Café (The Coffee Trader; tradução de Alexandre Raposo; Rio de Janeiro: Record, 2004, 384 p.; transcrito da página 248), de David Liss, romancista americano (www.davidliss.com).
Confesso que, ao ler a passagem acima transcrita do romance histórico de David Liss, eu me identifiquei profundamente com as idéias, a atitude e o pensamento do “judeu livre” Miguel Lienzo, que ousa enfrentar a autoridade e o poder do Ma’amad, o conselho supervisor dos judeus portugueses na Holanda, na sua busca para recuperar a riqueza perdida com uma especulação mal sucedida em torno do comércio de açúcar. Ao lançar-se, em 1659, numa nova aventura na bolsa de Amsterdã, desta vez com um produto ainda relativamente desconhecido para os mercados da época, o café, Miguel Lienzo enfrenta perigos desconhecidos, mas conduz seu novo negócio com tenacidade, ainda que de modo discreto e mesmo secreto, em aliança com uma holandesa viúva, financiadora eventual de sua nova aposta.
Ele ousa afirmar o poder da sua autoridade, ou melhor, da sua vontade, contra o poder por vezes arbitrário da autoridade política e religiosa – pois que o Ma’amad encarnava, para a pequena comunidade refugiada de judeus portugueses fugidos da Inquisição, ambos poderes – e depara-se com riscos dos quais ele nem suspeitava, emergidos a partir da ambição pessoal, do despeito e provavelmente dos ciumes e da inveja de outros homens. O romance O Mercador de Café é fascinante, em seus próprios termos e circunstâncias, tal como ambientado no primeiro país verdadeiramente moderno da história do capitalismo, a Holanda do século XVII, mas é um fato de que toda história, qualquer que seja a sua época, deve ser sempre lida como história contemporânea. Todos aqueles que escrevem, mesmo sobre épocas passadas, sempre pensam em sua própria época e circunstâncias particulares. Nesse sentido, todo romance pode ser tido como universal, assim como toda e qualquer história fala de nós mesmos e de nossa própria época. Isso é inevitável, e faz parte da nossa “trama” da história.
Creio poder dizer que também tenho um certo prazer em desafiar a autoridade, não como uma atitude inconsequente ou puramente contestadora, como algum tipo de confrontacionismo infantil, mas como uma atitude de questionamento constante, que se prende mais ao objeto do que à própria fonte da autoridade. Sou um questionador por excelência, um contestador daquilo que se poderia chamar “verdades reveladas” – as idées reçues, da tradição literária francesa – e um interrogador dos fundamentos de qualquer realidade oferecida como verdadeira ou única e exclusiva. Acredito mesmo que esta é a atitude a ser observada por todos aqueles que pretendem contribuir para os avanços do pensamento e o progresso das idéias. Em uma expressão, confesso minha adesão intelectual ao ceticismo sadio que todo homem verdadeiramente livre deve exibir em face das realidades que nos cercam, sobretudo aquelas que emergem das relações sociais e das situações de poder.
Vale...
Paulo Roberto de Almeida
(www.pralmeida.org; pralmeida@mac.com)
Brasília, 1757: 13 junho 2007, 2 p.
Temas de relações internacionais, de política externa e de diplomacia brasileira, com ênfase em políticas econômicas, viagens, livros e cultura em geral. Um quilombo de resistência intelectual em defesa da racionalidade, da inteligência e das liberdades democráticas. Ver também minha página: www.pralmeida.net (em construção).
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Um comentário:
Conviver diariamente com a dúvida é o que há de mais sadio. A dúvida metódica de Descartes (que não elimina sequer a hipótese de um gênio maligno estar confundindo até mesmo os nossos cinco sentidos) é uma ótima bússola. o cogito cartesiano fundou, principalmente, a identidade do eu (eu)penso logo (eu) existo. Se reduzirmos essa máxima ao aspecto epistemológico creio que teríamos: penso logo duvido.
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