A Hipocrisia da Guerra às Drogas
Os EUA, a Colômbia e o mercado global da cocaína
O narcotráfico é uma das engrenagens mais lucrativas e perversas da economia global. Ele conecta pobreza e luxo, selvas e arranha-céus, comunidades rurais da América Latina e consumidores das metrópoles do Norte. Mas, acima de tudo, o tráfico de drogas expõe a hipocrisia das potências que dizem combatê-lo — e, ao mesmo tempo, dele se beneficiam.
Poucas relações demonstram essa contradição com tanta clareza quanto a aliança entre Estados Unidos e Colômbia, construída em nome do combate à cocaína, mas que, em mais de duas décadas, falhou em todos os seus objetivos declarados.
O Plano Colômbia e o avanço da cocaína
Lançado no fim dos anos 1990, o Plano Colômbia foi vendido como um ambicioso projeto de segurança e desenvolvimento, apoiado por bilhões de dólares em recursos norte-americanos. A promessa era clara: reduzir a produção e o tráfico de cocaína, desmantelar cartéis e fortalecer o Estado colombiano.
O que ocorreu foi o oposto. A produção de cocaína nunca foi tão alta. O cultivo da folha de coca, antes concentrado na Colômbia, se espalhou para o Peru e a Bolívia, criando uma economia transnacional ainda mais difícil de controlar. A política de erradicação forçada apenas deslocou agricultores pobres de um território para outro, sem oferecer alternativas econômicas reais.
Em vez de eliminar o problema, a “guerra às drogas” redesenhou o mapa do narcotráfico, ampliou o desmatamento, fragilizou comunidades rurais e aprofundou a dependência política e militar da Colômbia em relação a Washington.
O império do consumo e da lavagem
Enquanto o Sul produz, o Norte consome — e lucra.
Os Estados Unidos seguem entre os maiores mercados de cocaína do mundo, segundo dados do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC). Embora Austrália e Nova Zelândia liderem o consumo per capita, o mercado americano continua sendo o mais lucrativo.
Mais que isso: os EUA são também um dos principais centros de lavagem de dinheiro proveniente do narcotráfico. As brechas regulatórias e a conivência do sistema financeiro tornam o país um refúgio seguro para capitais ilícitos, incluindo os que vêm da droga andina.
A contradição é gritante. Enquanto promovem uma retórica de guerra, as potências ocidentais toleram e se beneficiam da economia paralela que o narcotráfico alimenta. E dentro de suas fronteiras, enfrentam uma grave crise de saúde pública, marcada pelo aumento do consumo de drogas sintéticas — num país que sequer possui sistema público de saúde.
Trump e Petro: o novo capítulo da tensão
Em 2025, a relação entre Washington e Bogotá sofreu uma ruptura sem precedentes. O presidente Donald Trump anunciou a retirada da certificação da Colômbia como aliada na luta antidrogas, acusando Gustavo Petro de “liderar o tráfico de drogas” e permitir “campos de extermínio”. Nenhuma evidência foi apresentada.
A resposta de Petro foi imediata. O presidente colombiano denunciou a manipulação política e defendeu sua nova política antidrogas, centrada em desenvolvimento rural, proteção ambiental e combate às grandes máfias financeiras, em vez da criminalização do pequeno agricultor.
A reação de Trump revela o quanto o tema das drogas ainda é usado como instrumento de pressão geopolítica. Sob a retórica do combate ao crime, esconde-se uma longa história de controle e submissão econômica e militar sobre a América Latina.
A economia da cocaína e seus efeitos
A economia da droga move bilhões de dólares todos os anos.
Na Colômbia, um estudo recente apontou que o tráfico representa 4,2% do PIB nacional — valor equivalente ao da indústria da construção. Essa cifra ilustra o tamanho do desafio: o narcotráfico não é um fenômeno marginal, mas um sistema econômico estruturado, com impactos devastadores.
Violência: financia cartéis, grupos armados e corrupção institucional.
Ambiente: provoca desmatamento e contamina rios com insumos químicos.
Sociedade: aprofunda desigualdades e destrói comunidades rurais.
Saúde: gera dependência e sobrecarga nos sistemas públicos, quando existem.
O pequeno agricultor, empurrado pela miséria, é o elo mais fraco dessa cadeia. No outro extremo, bancos internacionais, intermediários e fundos de investimento se beneficiam da lavagem e reinjeção de dinheiro ilícito no sistema financeiro global.
Fracasso global e novo paradigma
O fracasso da “guerra às drogas” é hoje um consenso entre pesquisadores, organismos internacionais e governos progressistas. Nenhum país conseguiu reduzir de forma sustentável a produção ou o consumo de drogas por meio de políticas militarizadas.
A nova abordagem defendida por Petro e outros líderes regionais busca romper com esse paradigma. A prioridade passa a ser inclusão produtiva, reforma agrária, soberania territorial e alternativas sustentáveis para as comunidades que dependem da coca. Não se trata de legitimar o narcotráfico, mas de atacar suas causas estruturais: pobreza, exclusão e ausência do Estado.
Essa perspectiva se alinha às conclusões mais recentes do UNODC, que reconhece que a erradicação forçada e o encarceramento em massa falharam e precisam ser substituídos por políticas baseadas em saúde pública, desenvolvimento e direitos humanos.
A hipocrisia global
O discurso da guerra às drogas tem servido, historicamente, para legitimar intervenções, sustentar orçamentos militares e desviar o foco das responsabilidades do Norte global. Enquanto isso, as vítimas continuam sendo as mesmas: agricultores sem terra, jovens periféricos, comunidades indígenas e populações marginalizadas.
A cocaína é, nesse sentido, um espelho do mundo que a produz e consome: um mundo de desigualdades profundas, onde o lucro fala mais alto que a vida.
Conclusão: o verdadeiro combate
Não há saída para o narcotráfico sem enfrentar as estruturas que o sustentam.
Enquanto o dinheiro sujo circular livremente pelos sistemas financeiros do Norte, e enquanto países como a Colômbia permanecerem dependentes economicamente do que deveriam combater, a guerra às drogas continuará sendo apenas uma cortina de fumaça.
O verdadeiro combate exige coragem política, soberania e cooperação solidária entre as nações.
Não é uma guerra que se vence com helicópteros, mas com reforma agrária, educação, saúde e dignidade.
Porque enquanto o lucro estiver acima da vida, a guerra às drogas continuará sendo, na verdade, uma guerra contra os pobres.
Por JJ
(Artigo de opinião. Baseado em relatórios do UNODC, estudos econômicos e dados públicos sobre o narcotráfico global.)
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