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sábado, 11 de abril de 2020

De volta a uma "praga" dos estudantes em TCC, ou dissertações e teses: a do "marco teórico"- Paulo Roberto de Almeida

Alguém me escreve para me perguntar sobre o tal de "marco teórico" para um trabalho acadêmico. Lembro de uma antiga diatribe que já fiz contra esse terrorismo intelectual.

Falácias acadêmicas, 3: o mito do marco teórico

Paulo Roberto de Almeida
Buenos Aires-Brasília, 30 setembro 2008

1. Tente entender...
Veja, caro leitor, se você consegue entender este filósofo francês, muito lido e muito citado em certos círculos acadêmicos:

“Assim, por um lado, a repetição é isso, sem o que não haveria verdade: a verdade do ente sob a forma inteligível da idealidade descobre no eîdos o que pode se repetir, sendo o mesmo, o claro, o estável, o identificável em sua igualdade a si. E apenas o eîdos pode dar lugar à repetição como anamnésia ou maêutica, dialética ou diática. Aqui a repetição se dá como repetição de vida. A tautologia é a vida, só saindo de si para voltar a entrar em si. Mantendo-se junto a si na mnéme, no lógos e na phoné. Mas, por outro lado, a repetição é o próprio movimento da não-verdade: a presença do ente perde-se nele, dispersa-se, multiplica-se por mimemas, ícones, fantasmas, simulacros etc.” (J. Derrida, A Farmácia de Platão. SP: Iluminuras, 2005, p. 122).

Entendeu, leitor? Provavelmente não, mas não se preocupe, eu também não entendi nada, mas não me preocupo mais com isto: há muito tempo desisti de tentar entender esses filósofos franceses, que converteram em hábito – praticamente uma profissão – os atos de escrever difícil e de falar complicado, apenas para épater la galerie e impressionar o distinto público, no que eles foram, aparentemente, bem-sucedidos (alguns ficaram ricos e famosos com toda essa empulhação). Aliás, acredito que esse autor não estava querendo explicar absolutamente nada a ninguém: estava apenas gozando da cara de eventuais alunos e de leitores desprevenidos. No que me concerne, não me deixo impressionar por falcatruas intelectuais.
Agora, considere este outro filósofo francês, ainda mais lido e mais citado nos mesmos meios (provavelmente não pelas boas ou corretas razões), e que se converteu em verdadeiro paradigma das ditas ciências sociais, quando ele, na verdade, é apenas um comentarista filosófico da história (o que não o impediu de monopolizar várias áreas das ciências humanas, impregnando todo o discurso acadêmico durante mais de uma geração): 

 “Deveríamos fazer uma tentativa de estudar o poder não a partir dos termos primitivos da relação de poder, mas a partir da relação de poder em si, na medida que ela mesma determina os elementos sobre os quais se estabelece: em lugar de pensar em indivíduos ideais aos quais se pede que cedam algo de si mesmos ou de seus poderes para serem submetidos, deveríamos indagar como as relações de dominação podem por si mesmas construir os indivíduos. Da mesma forma, em vez de investigar a única forma, o ponto central ao qual todas as formas de poder derivam como conseqüência ou como desenvolvimento, deveríamos abordar sua multiplicidade, suas diferenças, suas especificidades, sua reversibilidade: estudá-las, portanto, como relações de força que se entrecruzam, se excluem mutuamente, convergem ou, ao contrário, se opõem e tendem a se anular. Em resumo, em lugar de considerar a lei uma manifestação do poder, nos seria talvez mais útil tentar descobrir as diferentes técnicas de coerção que coloca a lei em funcionamento.” (Michel Foucault, trecho do Résumé des Cours; Paris: Collège de France, 1989) 

Bem mais compreensível, não é mesmo, caro leitor? Você acha que poderia “trabalhar” com ele, por exemplo, para sustentar a argumentação teórica de algum ensaio acadêmico, talvez “encomendado” ou sugerido pelo seu professor orientador?
Textos como este, de Michel Foucault – sem falar de outros, mais enfadonhos ou mais excitantes, de Pierre Bourdieu, de Jürgen Habermas e de vários outros encore – têm sido usados de modo recorrente na academia, provavelmente mais para torturar alunos (ainda que de forma involuntária) do que para ensinar-lhes algo, de verdade. Textos como esses, escolhidos por professores de metodologia – por vezes, apenas trechos selecionados desse tipo de texto, oferecidos aos alunos por professores das disciplinas setoriais de ciências humanas – têm a função de servir de suposto suporte teórico para a confecção de trabalhos acadêmicos: monografias, dissertações, talvez até mesmo teses doutorais.
Pessoalmente, não tenho nada contra Bourdieu, Foucault, Habermas, Derrida e outras sumidades do mundo acadêmico (enfim, os dois primeiros até podem ser leituras agradáveis, mas os dois últimos são simplesmente aborrecidamente prolixos, ou francamente ilegíveis). Apenas acho que estes e outros autores do mesmo naipe são usados indevidamente por professores acomodados à bibliografia convencional e que não se preocupam em buscar explicações mais convincentes aos problemas-temas do trabalho de seus orientandos. Eles recorrem assim às “vacas sagradas” consagradas da conjuntura acadêmica dominante, como uma espécie de solução de facilidade – para eles, obviamente – ao mesmo tempo em que jogam os estudantes numa camisa de força conceitual que pode servir para muitas coisas, menos para o enriquecimento intelectual destes últimos. 

2. A praga do marco teórico 
A primeira responsabilidade do trabalhador acadêmico está constituída pela honestidade intelectual, o que implica a consideração de todos os elementos possíveis de serem usados numa análise abrangente de qualquer problema social, não apenas daqueles que correspondem às suas preferências políticas ou simpatias filosóficas do momento. Considero este critério o mais relevante no trabalho científico, aliás, o único relevante no campo das ciências humanas ou sociais, e é em torno dele que eu gostaria de formular estes comentários a mais uma das falácias acadêmicas. 
De minha parte, em meus trabalhos de investigação histórica (estritamente factual), de observação política (e, portanto, algo subjetiva) e de análise sociológica (que, gostaria fosse a mais objetiva possível), não tenho por hábito preocupar-me além da conta (talvez mesmo nada) com a teoria, qualquer que seja ela. Não creio, sinceramente, que ela seja indispensável no (e ao) desenvolvimento de todos os tipos possíveis de trabalho intelectual.  Vou ser claro: em nossos trabalhos de elaboração intelectual, todos nós “partimos” de alguma teoria, mesmo de forma inconsciente. Mas isso não tem nada a ver (ou, pelo menos, não deveria ter) com a “necessidade” de expor sua teoria previamente ao trabalho com os fatos. Prefiro deixar que os fatos falem por si, e se alguém quiser, depois, aplicar alguma teoria a eles, que o faça por sua própria conta e risco. Eu não vou me preocupar em desenvolver nenhuma nova teoria para tentar encaixar, ou amoldar, os fatos dentro dessa nova camisa de força conceitual. Podem me acusar de radical anti-teórico, mas é assim que vejo o mundo> desculpem-me os muito acadêmicos, mas estou me lixando para suas preocupações 
Esta é também uma das razões pelas quais eu praticamente passo por cima dos capítulos teóricos nas dissertações e teses para cuja avaliação eu sou convidado. Acho que os professores “torturam” os seus alunos, obrigando-os a encontrar o famoso “quadro teórico” da sua pesquisa, quando os pobres alunos mal dão conta do emaranhado de fatos brutos que devem processar. Mas isso é uma outra discussão que farei em outra oportunidade. Para confirmar quão comum é esse tipo de atitude, permito-me transcrever aqui uma das muitas mensagens que recebo de alunos quase desesperados com essa “obrigação”. Esta é uma das mais recentes (11/09/2008, at 08:49, xxx wrote:): 

“…sou acadêmica do curso de Relações Internacionais da Universidade xxx, estou no sétimo período já fazendo o meu projeto de monografia. O meu tema é: Política Externa do Governo Lula (2003-2008) o acordo IBAS ( Índia, Brasil e África do Sul ) como instrumento de cooperação via Sul-Sul. Venho através deste lhe solicitar um auxílio de materiais sobre este assunto, estou com dúvida também de qual teoria das Relações Internacionais eu posso usar, porque meu professor me indicou Teoria da Interdependência, outros já me indicaram Intergovernamentalismo (o qual ainda não encontrei material o suficiente) e até mesmo o Institucionalismo, então não sei realmente o que aplicar, uma vez que quero trabalhar o que levou esses países a cooperarem, quero verificar se realmente esse acordo está contribuindo para uma maior inserção destes países emergentes em âmbito internacional. Espero ter sido clara o suficiente e que você com toda sua experiência possa me fornecer um auxílio. Desde já muito obrigada pela sua presteza e tenho certeza que seu auxílio contribuirá muito com minha formação. Grata mais uma vez, xxx”

O que é que eu respondi a este aluno desesperado? Isto:

PRA: “Vou ser bastante franco com você, xxx. Uma iniciativa concreta de diplomacia, neste caso a decisão do governo Lula de empreender um programa reforçado de cooperação com dois outros países considerados ‘parceiros estratégicos’, não precisa ter nenhuma justificativa teórica, nem se sustentar em nenhum quadro conceitual vigente, para existir e se desenvolver de fato. Essa ‘ditadura do marco teórico’, que professores exigem de alunos que iniciam um trabalho acadêmico, é um verdadeiro absurdo, uma camisa de força que não encontra respaldo em nenhuma regra acadêmica, ou formalização conceitual. Se trata de uma exigência que se justifica por ela mesma, e que, portanto, é irracional, e se a exigência é incontornável ela se torna estúpida. Não possuo e não conheço nenhuma teoria que possa sustentar o IBAS, e não dou a mínima importância para isso. Uma iniciativa diplomática não precisa passar pelo moedor de carne dos rituais acadêmicos para existir e, portanto, pode ser perfeitamente dispensável o tal de marco teórico. Pode dizer isto ao seu professor; eu recomendo que você faça um trabalho intelectualmente honesto sobre o IBAS, considerando todos os elementos factuais de que você dispõe, sem precisar rechear o assunto com qualquer penduricalho acadêmico que possa existir.”

Também sou habitualmente convidado a emitir pareceres sobre artigos acadêmicos submetidos a revistas convencionais desse campo, o que se aproxima bastante do tipo de exercício a que sou convidado exercer quando desse tipo de consulta individual. Vejamos um exemplo recente desse tipo de consulta.

Pergunta: “O artigo é bem escrito? Baseia-se em pesquisa bem-feita, com utilização de fontes apropriadas? Suas conclusões são justificadas? Sua estrutura organizacional e argumentação são claras?”
PRA: Sim, o artigo é bem escrito; existe, talvez, certo pedantismo na análise, que não precisaria passar pelo famoso “marco teórico”, que o autor escolheu na obra de Derrida, a rigor irrelevante para se analisar o discurso de Xxxx sobre o terrorismo,  mas se trata, provavelmente, de ritual imposto por algum professor viciado em desconstrucionismo.
Pergunta: “O artigo dá uma contribuição para o seu campo de estudo? De que maneira pode ser considerado original?”
PRA: Não creio que se necessite recorrer a um pensador deliberada e voluntariamente obscuro, como Derrida, para explicar discursos políticos sobre o fenômeno do terrorismo, discursos que necessariamente carregam as ambigüidades de uma indefinição persistente e inevitável, em vista da complexidade do conceito e do fenômeno. Trata-se de um filósofo “obscurantista”, que busca, expressamente, uma linguagem pretensamente complicada, críptica, desnecessariamente prolixa e falsamente empolada, apenas para impressionar os incautos: ele será esquecido e remetido à lata de lixo da filosofia assim que os franceses recobrarem a razão. (...) Ele apenas satisfaz egos filosóficos ingenuamente encantados com filosofices inúteis de um pensador futuramente descartável.

Enfim, não pretendo deter a chave do conhecimento filosófico ou sair por aí atirando um ou outro philosophe em alguma lata de lixo, mas eu constato que muitos professores falam de um “marco teórico” como algo “indispensável” ao trabalho do mestrando ou doutorando. Com isso, eles conseguem tirar várias noites de sono do candidato, que adentra na selva selvaggia da bibliografia pertinente – geralmente restrita a poucos “barões” da teoria em ciências humanas, de extração francesa ou alemã – em busca de algum enquadramento teórico para o objeto escolhido. A maior parte dos pobres alunos sai dessa selva arranhada, com urticária metodológica e sérios problemas para retomar o fio da meada de seu objeto próprio.

3. O que é e o que não precisa ser o tal de marco teórico 
O marco teórico normalmente faz parte daquela seção metodológica que se segue à introdução nos trabalhos de candidatos. A discussão da metodologia a ser empregada na pesquisa compreende, por sua vez, algumas hipóteses de trabalho que normalmente se apóiam em alguma teoria disponível no supermercado acadêmico. A teoria certamente ajuda a pensar, mas ela não deve representar uma camisa de força, que obrigue o candidato a enquadrar o seu tema em alguns dos molhos prêt-à-porter que estão disponíveis nas estantes pertinentes do supermercado. 
Um candidato desprevenido, que pretenda, por exemplo, fazer uma dissertação sobre a informalidade laboral no Brasil, não precisa necessariamente se interrogar sobre o que o inefável Foucault teria a dizer sobre isso. Não creio, pessoalmente, que o “marco teórico” deva ser um monstro metafísico que ameace engolir o candidato se ele se sentir desconfortável com o tal de “enquadramento conceitual” do seu objeto: determinados temas, bem mais “pedestres” em sua concepção e desenvolvimento, podem dispensar essas filigranas teóricas. 
A metodologia é, sobretudo, uma ferramenta analítica utilizada para descrever e discutir o objeto escolhido e a teoria é uma espécie de fundamentação conceitual desse objeto, com algumas generalizações sobre o tema em espécie. Estudos de caso e pesquisa empírica são sempre bem-vindos, mesmo se eles não se encaixam em algum molde conceitual – o famoso “marco teórico” – que o professor acha que o candidato deva obrigatoriamente exibir. Na elaboração metodológica, o candidato deve eventualmente se propor algumas hipóteses de trabalho que serão, no decurso do trabalho, confirmadas ou desmentidas pelo tratamento oferecido ao tema escolhido. 
Mas essa “fundamentação teórica”, que os professores exigem dos candidatos, não precisa ser considerada um elemento absolutamente indispensável do trabalho acadêmico, pois nem sempre é o caso. Ou seja, o trabalho pode ser – este é um direito do candidato – simplesmente expositivo-descritivo, sem referência a qualquer autor famoso na comunidade acadêmica, posto que um determinado tema escolhido se presta, hipoteticamente, a uma descrição empírica de fatos da vida real. Ou, então o candidato pode ter decidido, por exemplo, fazer uma síntese da literatura existente a respeito do seu tema, sem maiores inovações teóricas. Por causa dessa obsessão com o marco teórico alguns alunos tropeçam feio nessa parte, e acabam escrevendo uma “metodologia” que tem pouco a ver, finalmente, com o conteúdo em si do trabalho. 
Resumindo: metodologia é simplesmente a forma como o autor organiza os seus dados, seus materiais primários, seus elementos empíricos, e até suas leituras, e os apresenta em seguida na discussão fundamentada da terceira parte, com análise crítica e um levantamento de outros problemas que tenha detectado em sua pesquisa. O autor pode, também, aproveitar essa parte para dizer como outros analistas do mesmo problema estudaram a questão, se concorda com eles, se utilizará métodos já empregados anteriormente, etc. 
Conseguindo cumprir essa etapa do ritual, o candidato se descobre então um feliz sobrevivente de uma navegação acadêmica que costuma fazer naufragar alguns outros colegas que seguem o mesmo caminho. Depois disso, basta escrever e, se não for pedir muito, sobreviver ao esforço acadêmico...

Buenos Aires-Brasília, 30 de setembro de 2008
1931. “Falácias acadêmicas, 3: o mito do marco teórico”, Buenos Aires-Brasília, 30 setembro 2008, 6 p. Da série programada, com algumas críticas a filósofos famosos. Espaço Acadêmico (ano VIII, n. 89. outubro 2008). Relação de Publicados n. 859.


sexta-feira, 10 de abril de 2020

A diplomacia dos descobrimentos: Tordesilhas e o desenho do Brasil - Paulo Roberto de Almeida (1998)

Este capítulo,

A diplomacia dos descobrimentos: Tordesilhas e o desenho do Brasil

da primeira edição do meu livro: 


Relações internacionais e política externa do Brasil: dos descobrimentos à globalização 
(Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1998, 360 p.; ISBN: 85-7025-455-5)

não foi retomado nas duas edições posteriores (2004 e 2012), e por isso resolvi disponibilizá-lo por inteiro na plataforma Academia.edu, no seguinte link: 

https://www.academia.edu/42694780/A_diplomacia_dos_descobrimentos_Tordesilhas_e_o_desenho_do_Brasil_1998_



A diplomacia dos descobrimentos: Tordesilhas e o desenho do Brasil

Paulo Roberto de Almeida
Capítulo III do livro: Relações internacionais e política externa do Brasil: dos descobrimentos à globalização (Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1998, 360 p.; ISBN: 85-7025-455-5); não retomado nas edições posteriores.


Ao nos aproximarmos da praia, fico em pé na proa para desfraldar as cores de Castela e León, o castelo dourado e o leão púrpura, e as listras vermelhas e amarelas de Aragón. Atrás de nós, Santa Maria, Niña e Pinta estão ancoradas em uma baía protegida por recifes de um coral poroso e róseo jamais visto por um europeu. (…) À medida que nos acercamos da fascinante praia, experimento uma sensação intensa… O vento agita levemente o estandarte real (…). Levanto um pé descalço sobre a amurada.
Mas espere, este é um momento histórico.
Estarei preparado para ele? Ao dar aquele primeiro passo em terra, por acaso eu pronuncio alguma coisa imortal e profundamente apropriada, escolhendo minhas palavras como um desafio nos desvãos da História para os intrépidos exploradores que estão por nascer? Por acaso eu digo, ao plantar o estandarte real na praia, “Um pequeno passo para um cristão, um grande passo para o cristianismo”, passando a perna em Neil Armstrong em quase quinhentos anos?
Não, eu não tenho meio bilhão de espectadores no mundo inteiro assistindo ao meu feito, nenhum jornal adquiriu os direitos de publicar minhas aventuras em troca de uma enorme soma em dinheiro, nenhum editor me fez qualquer adiantamento milionário para o chamado Diário de Colombo, não existe nenhum centro de controle para monitorar todos os meus movimentos. (… )
Assim, não pronuncio nenhuma frase de efeito para a posteridade. O que eu digo, inquieto e com razão, … é apenas:
— Tem alguém lá no mato.
Stephen Marlowe, The Memoirs of Cristopher Columbus (1987)
  
1. O ato fundador da história moderna
Colombo, ao desembarcar naquela praia das Antilhas em 1492, não deve realmente ter antecipado nenhuma variante “religiosa” da famosa frase “laica” (provavelmente pré-fabricada e publicitada depois por um eficiente serviço de public relations) pronunciada por um astronauta norte-americano ao dar, em 1969, seu primeiro “passo lunar”.
(...)

Leiam a íntegra neste link: 
https://www.academia.edu/42694780/A_diplomacia_dos_descobrimentos_Tordesilhas_e_o_desenho_do_Brasil_1998_


quinta-feira, 26 de março de 2020

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quinta-feira, 9 de janeiro de 2020

Brazilian Foreign Policy under Lula - Paulo Roberto de Almeida (2010)

Foreign Policy of Brazil under Lula

Paulo Roberto de Almeida
June 28, 2010; First draft; to be revised.

1. Formulation and implementation of the Foreign Policy: decision making under the influence of the Workers’ Party (PT)
For the first time in decades, or ever, Brazilian foreign policy is being conceived and conducted without the dominant presence of professional diplomats. PT’s “foreign policy” has been the dominant element in current Brazilian foreign policy, but not in a structured manner, as PT never “produced” a complete set of conceptions and solutions for Brazil’s international relations. It always had a poor theoretical elaboration, simply relying on “Gramscian” people from the academy – fellow travelers or compagnons de route – for the preparation of more sophisticated papers and proposals relating to economics and political life. But the core of its “thinking” – if one can indulge with such a concept – is a confuse mixture of typical (and stereotypical) Latin-American leftism, with brushes of Guevarism, Castroism, Stalinism, classical Marxism and Theology of Liberation beliefs.
From the standpoint of its organizational structures, PT is a quasi-like Bolchevist party, but without all the old apparatchik apparatus of the Soviet-style communist party. It’s core was formed, at the origin, by “alternative trade-unionists” – refusing the traditional trade-unions linked to the Ministry of Labour, but that have adapted quickly to the facilities of the easy money provided by the compulsory “labor tax”, and forming a trade union became an industry in Brazil –, by the ancient guerrilleros recycled to party politics – that is, former dissidents from the old Communist Party, having adopted armed struggle Cuban style, defeated – and some groups from the progressive movements of the Church, the leftist Theology of Liberation, ecclesial communities, workers’ priests and so on. 
Their ideology is of course an old style socialist one, previous to the fall of Berlin wall, and many of the sects that integrate PT are still true believers in the socialism. In any case, they are anti-capitalists, anti-imperialists, and anti-Americans, as almost all of the leftist Latin-American parties are. In the case of PT, there are people who were trained by the Cuban DGS – Dirección General de Seguridad, or the Cuban intelligence – like José Dirceu. Others are totally reliable and subservient to the Cubans, like Marco Aurélio Garcia, the main organizer of the Sao Paulo Forum, the Cuban-sponsored coordinating mechanism for all leftist parties in LA (which included the Colombian FARCs), almost analogous to the old Cominform of the Soviet era. But, as PT has no structured thinking on Foreign Policy, the main guidelines are established by all those involved in “international relations” within PT, starting by Lula himself – who, as a trade unionist, developed links to other organizations, in Cuba, in the USA, in France, Germany, and elsewhere – and Marco Aurelio Garcia, PT’s “international secretary” for more than 15 years, speaking Spanish and French from his exile times. José Dirceu was also very influent in the definition of foreign policy, and still is, despite not being anymore in the Government.
PT was, and is, always a “consortium” of leftists, engaged actively in the their cause, sects’ or party’s cause, not a national cause according to normal lines of parliamentary democracy; their message always relied on “mass politics”, “popular organizations” (which they controlled, of course, like National Students Union, labor or peasant movements, and many others); their concept of democracy is instrumental: all that serves the major objective of holding power for the party fits its “philosophy” and practices. This is the major political component of the Brazilian foreign policy during Lula’s government.
The two other elements in the definition of Brazilian current foreign policy are the “bosses of the House” – minister Celso Amorim and ex-Secretary General Samuel Pinheiro Guimarães, this one even most important than the former, and the true ideological guide of PT’s foreign policy. Although Amorim is President Lula’s servile man-for-all-jobs-and-all-things, taking personally on him all that is needed to enhance the image and the figure of Lula on the world scenario, is Guimarães who is the ideological backbone of the new foreign policy. In fact, major initiatives of the Brazilian diplomacy since 2003 have all been taken with the main purpose to project Lula abroad, being indeed a superficial and rhetorical foreign policy, aimed at building a “great international leader” disguise to someone who has been, all his life, an opportunistic and “machiavellian” (in the bad sense of the word) trade unionist. Of all the major objectives of Brazilian foreign policy – gaining a permanent chair at UNSC, strengthen and expand Mercosur, and achieve multilateral trade negotiations – the sole to be achieved was to inflate the image of Lula at world level: this was a success of propaganda…
As for Guimarães, although not being a Marxist himself, only an old style nationalist and a “developmentalist” of the “structuralist” Latin-American economic school, he seemed perfect for the statist and dirigiste ideology of PT and leftist allies. He was chosen by the apparatchiks of the PT even before of Amorim, to be the “brain” behind the new, assertive, foreign policy of PT. He is the main “writer” and “penseur” of the new kids in the block, simply because PT had (and still does not have) nobody capable of articulating a meaningful foreign policy. Author of two books, and dozen of articles on a variety of subjects, he has operated a véritable retour en arrière in Brazilian diplomacy, bringing it again to the years of the “new international economic order” or the Seventies (perhaps even before that). 
The third, and less important, element of the current foreign policy is Itamaraty itself, but only as a technical basis for putting in place all the “prolific” ideas of the new group (and some follies of the president himself). Itamaraty has a good technical staff, with excellent intellectual preparation, and is a very professional service, although somewhat arrogant and it is, as already stated, too submissive to the powerful of the moment. With very few exceptions, Itamaraty has subjected itself to the worst initiatives of this government, diplomatic projects that would clearly be objected in the past: errors of judgment, gross mistakes of evaluation, failures of implementation and complete disasters in political manoeuvres. In its favor, most, if not all, of those initiatives were taken on request of the presidential advisor in foreign policy, aka “professor Marco Aurélio Garcia”, a total amateur in such things. 

2. An activist, and leftist, foreign policy as a compensation for a “neoliberal” economic policy making
Clearly, a “leftist” foreign policy is said to be a “compensation” for a neoliberal economic policy, but this is only a boutade by journalists. In fact, the leftist foreign policy is what the ideology of its commandeurs determined what it has to be: Lula, MAG, Amorim and Guimarães. Of course, the leftists followers, frustrated with the economic policy, find some respite in international affairs, but the mood is purely on the old style leftwing parties of LA: anti-imperialism, anti-Americanism, South-South solidarity, support for the oppressed everywhere, a North-South divide (and the perversity of the rich countries), strategic partnerships with developing or anti-hegemonic countries, in short, the periphery against the arrogant powers. 
This has represented a serious departure of an old tradition of Itamaraty: non-intervention, or non-interference in other countries’ internal affairs. Since the beginning, Lula proclaimed, in the middle of electoral processes, his support for his preferred leftist candidates in neighboring countries: Nestor Kirchner, Evo Morales, Rafael Correa, perhaps Ollanta Humala (Peru; preferred by Guimaraes, instead of Alan Garcia), and, especially, Hugo Chávez, always and in every circumstance. Luckily for Lula, they all have been elected or re-elected, otherwise Brazil could be in an awkward situation thereafter. Some moves were perhaps illegal and started even before the inauguration of Lula’s government, such as providing Hugo Chávez with gasoline during the worst of the strikes at PDVSA, in December 2002. Other moves represented a clear abandonment of sovereignty by Brazil, as in the cases of Bolivian oil and gas nationalizations, Ecuadorian illegal measures against Brazilian companies operating there, Paraguayan pressures against Itaipu treaty, and, much more serious and detrimental to Brazilian interests, complacency towards Argentinean abusive and illegal protectionist measures against Brazilian exports in the framework of the free-trade zone (and customs union) that represents Mercosur. 
In the other side of the political tableau, there was no complacency regarding the tragic situation in Colombia and its struggle against the narcoguerrilla – remember that FARC is allied with PT in the Foro de Sao Paulo – neither in connection with the pathetic and ridiculous case of Honduras, where Lula was totally in line with Hugo Chávez. Never before, in the Brazilian diplomatic history, our legalist tradition was so alienated and baffled than in those months during which Manuel Zelaya used the Brazilian Embassy in Tegucigalpa to incite rebellion and political unrest; Brazil breached all the inter-American conventions on political asylum and many other established diplomatic practices and procedures. 
Those moves and initiatives – among them the constant action to isolate USA in the region, and to create new political entities restricted to South or Latin American countries – have a direct connection with domestic politics and the desire, by Lula and PT, to accommodate the anti-American feelings of their supporters, as well as the files and ranks of all other leftist parties. Different is the case of Haiti, where Brazil inserted itself in complete agreement with the USA: the intention was to acquire an entrance ticket to the UNSC, one of the megalomaniac projects of Lula and Amorim, disregarding totally the negative reactions of some neighboring countries, among them Argentina. 
In short: a leftist foreign policy is no compensation for other issues such a as land redistribution, social welfare, or inequality, first of all because each one has many different publics or clients. Land redistribution is no more a vital question in Brazil, despite all the talk around it: agriculture is capitalist in Brazil, and many small families of peasants, in Southern Brazil, for instance, are totally integrated in rural markets; those poor peasants could be farm workers or maintain other types of labor relations (including tenancies), as not everyone is capable or do need to be a farmer owner. This is a false question. The “clients” of movements such as MST (so called Landless Movement) are not really peasants, but rather lumpen recruited to be a mass of manoeuvre of a neo-Bolchevik party, less interested in land reform than in “revolution” along Cuban line. Social welfare is directed to a very poor fraction of the society, people who do not care about foreign policy. Inequality, at last, is question which regards intellectuals only, not the people; it a too abstract a question to attract attention.
International questions have no real importance in terms of domestic politics; they can be important topically in elections only by virtue of a really pressing issue. Haiti never had any importance in Brazil, before Lula decided to send troops there, just as a kind of payment for possible acceptation of Brazil in UNSC; it became important since, only because Brazil has some 1,200 troops there (so a lot of families are involved) and government keeps sending money for the mission. 

3. There was such a thing as a conservative foreign policy, as opposed to the activist, leftist, diplomacy of PT? What to think about nuclear questions and security matters?
It is important to state, as a departure, that a ‘neocon’ foreign policy never existed in Brazil, either as a concept or a reality. Brazil has always been multilateralist, and South-South diplomacy is not a novelty in Brazil, but of course never had received such a label, which is mostly used for questions of publicity and to remember that PT is “committed to the “Third World”. There is much rhetoric, and a lot of investment in those issues, but there is little, if any, independent analysis on the real benefits of this kind of option for Brazil as such.
Some members of the government, in different positions, have expressed their opinions about nuclear issues in a confuse manner. Those remarks HAVE NO real importance for Brazilian policy, because either they are naïf or irresponsible, or represent only personal opinions, without bearing on actual government policies; in any case, they can be viewed as mistakes, but probably reveal that Lula’s government has some people who never accepted the fact that Brazil, at Cardoso’s presidency, decided to sign the NPT. Some people believe that it was a wrong decision, and they are inclined to revert it if possible.
Brazil has a nuclear program, and it develops around the full ability over the complete cycle of nuclear enrichment, allegedly for pacific purposes (energy and nuclear submarine). There is no news concerning a nuclear weapons program, but it is possible to think that if the same people referred above would have the opportunity, they would divert some of the acquired capacity to prepare a military program (that is: there is none, but if the decision is taken, probably there will be enough human resources and some equipment to start one). 

 4. Brazil and its international role and the aspirations that come together
Many of the questions in this connection have no simple answers to them, as they involve issues of political thinking and strategic planning at the upper levels of the decision-making echelons. It depends primarily on who are deciding what in Brazil. Nowadays, there is a confuse and ill-informed foreign policy, a mix of the political feelings of PT, and the personal choices of the leftists in power and of one or two diplomats only. The result of all that is a presidential diplomacy tailored to enhance, enlarge and publicize the figure of Lula, the only tangible result of this diplomacy in eight years. No question that Brazil is today much more important and visible than eight years before, but that is due to its economic stability (a policy that was preserved from previous Administration), to the size of its internal market and attraction of it to foreign investment, and the good performance of its exports and international presence. Other negative factors are also relevant: Argentina and Venezuela are clearly tarnishing their respective reputations, and other countries are failing to modernize, so Brazil appears as a relative successful case. It does not need any projection through nuclear policy to become more important. The fact that some people in government are being ambiguous regarding nuclear policy only reverts in disfavor of Brazil, which is regrettable. 

5. Influence of the military in Brazilian politics and in foreign policy in especial
Military do not have much influence in the political process as such, but they still have some importance in certain number of issues related to their own organization, or security matters (equipment and doctrine). There is little integration between civilians and military, despite the creation of a Ministry of Defense and the integration of certain services. Nevertheless, a document, called the National Defense Strategy was delivered in December 2008, but it is still early to see if it will be a concrete and enduring doctrine, or just a reflex of a particular moment in the political life of Brazil. I have commented twice on this document but my analyses exist only in Portuguese.

Shanghai-Hangzhou, May 27-30, 2010.
Revised: Beijing-Shanghai, 28 June 2010.

domingo, 22 de setembro de 2019

Questões sobre relações econômicas internacionais - Paulo Roberto de Almeida


Questões de relações internacionais: palestra na Univali

Paulo Roberto de Almeida
 [Objetivo: responder a perguntas feitas na Univali; finalidade: atender a dúvidas]
  
No dia 19/09, aproveitando uma viagem que fiz a Itajaí, para um curso de mestrado sobre o Direito das migrações transnacionais da Univali, em conjunto com a Università degli Studi di Perugia, fui convidado a fazer uma palestra para alunos de graduação em Relações Internacionais (e alguns outros de outros cursos também), em torno do tema que eu mesmo indiquei: “Desconstruindo Bretton Woods: a fragmentação do multilateralismo econômico pelo novo nacionalismo antiglobalista”, cujo texto-base foi disponibilizado em meu blog Diplomatizzando (link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2019/09/desconstruindo-bretton-woods.html). Na sessão de perguntas e respostas, recebi, como solicitado ao início, um conjunto de perguntas, que não puderam ser respondidas completamente, razão pela qual elaboro, nos parágrafos seguintes, temas genéricos e minhas respectivas respostas, sem identificação individual dos demandantes.

1) Sobre base americana em território brasileiro e a questão da soberania nacional
Essa proposta, absolutamente sem sentido, foi formulada no próprio dia da posse do novo presidente. A ideia foi defendida pelo novo chanceler, Ernesto Araújo, na presença do Secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo, e até considerada pelo próprio presidente, mas imediatamente descartada pelo ministro da Defesa e outros militares associados ao governo: general Augusto Heleno, chefe do GSI, general Villas-Boas, general Santos Cruz, ainda na Presidência, e outros. Não há a mínima possibilidade de que uma proposta estapafúrdia como essa seja concretizada, mas o fato de ter sido considerada é revelador do grau de submissão aos Estados Unidos que vem sendo exibido por certos personagens do governo Bolsonaro, em especial seu filho mais novo, já cogitado como embaixador em Washington.

2) Sobre perda de soberania nacional em decorrência de bloco regional de integração
Todo e qualquer tratado ou ato internacional que envolva compromissos de adoção de determinadas políticas ou ações conjuntas, nos planos bilateral, regional ou multilateral, sempre envolve alguma perda de soberania, no sentido em que o país passa a se abster de atuar de forma unilateral no campo coberto por esse ato internacional, ou adotar políticas e medidas que contrariem o escopo ou os objetivos do novo compromisso externo. O fato é que cada governo decide soberanamente sobre o escopo e os objetivos desse compromisso, e, tradicionalmente, submete essas novas obrigações à aprovação do parlamento, segundo os ritos constitucionais em vigor. Em diversos casos, o poder legislativo brasileiro recusou aprovação, como já ocorreu nos casos do acordo de salvaguardas tecnológicas feito em 2000 com os Estados Unidos, ou os acordos bilaterais sobre proteção e promoção de investimentos estrangeiros, nenhum deles ratificado pelo Brasil. Uma vez aceito, porém, o país disporá de menos liberdade em suas políticas domésticas, em contrapartida a benefícios que se espera auferir com a implementação desse acordo.
No caso dos processos de integração, a renúncia de soberania é ainda maior, uma vez que envolve, por exemplo, adoção de uma política comercial comum – como existe no caso das uniões aduaneiras, a exemplo do Mercosul – ou até de uma moeda comum, que é o caso do euro na União Europeia. Os países renunciam a ter políticas próprias, individuais, embora sempre possam influenciar as políticas comuns, no processo de adoção de medidas concretas.
Em alguns casos, o aprofundamento do processo de integração pode confrontar a visão de novos governantes, ou os interesses da população – bem informada ou não – e se pode cogitar do abandono do bloco, como ocorre atualmente no caso do Brexit britânico. Em princípio, todos os tratados preveem dispositivos de denúncia, renúncia ou abandono dos compromissos assumidos anteriormente, com diferentes esquemas de saída. Ou seja, o país decide retomar sua soberania nos terrenos cobertos pelo acordo de integração, mas cabe ao parlamento decidir os aspectos positivos e negativos dessa decisão.

3) Sobre o alinhamento do Brasil à política dos EUA e consequências para outros países
Em muito raras ocasiões, o Brasil alinhou sua política externa à dos Estados Unidos: isso ocorreu no imediato seguimento da Segunda Guerra Mundial, no governo Dutra, ou por ocasião do golpe militar de 1964, no contexto da Guerra Fria e de supostas ameaças de “comunização” do Brasil. Mas, esses episódios foram rapidamente superados e o Brasil voltou a adotar sua tradicional postura de autonomia na formulação e implementação de uma política externa estritamente alinhada com os interesses nacionais, o que significou que, em diversas ocasiões, o governo brasileiro se chocou o confrontou demandas dos EUA – ou de qualquer outro país – em torno de determinadas questões do relacionamento bilateral ou incluídas na agenda multilateral.
Uma outra questão é o alinhamento genérico do Brasil com posturas de países em desenvolvimento, uma característica da organização dos debates na ONU em torno dos grandes blocos existentes: países desenvolvidos, bloco socialista, países em desenvolvimento e a China (tradicionalmente independente de qualquer bloco, mas sempre se dizendo como pertencente ao grupo dos países em desenvolvimento). O Brasil sempre foi um dos líderes do G77, como era conhecido o bloco dos países em desenvolvimento, mas também buscava guiar as ações desse grupo numa linha que favorecesse seus interesses nacionais. Em algumas ocasiões se colocou a adesão à OCDE como conflitante com essa postura, o que não parece ser mais o caso, inclusive porque o sistema internacional evoluiu para arranjos e coalizões de arquitetura variada; o grupo socialista, por exemplo, desapareceu completamente. Certos temas, como meio ambiente, ou agricultura, por exemplo, cobrem países pertencentes a grupos muito diversos.
No relacionamento bilateral com os EUA o Brasil pode, e deve, buscar acordos comerciais ou quaisquer outros tipos de arranjos que ampliem o leque das interações e a possibilidade de integração entre as duas economias, mas isso não pode passar por qualquer tipo de subordinação política aos interesses comerciais americanos. Existem muito mais complementaridade entre o Brasil e a China, por exemplo, do que com os EUA, que são nossos concorrentes em vastas áreas das exportações de grãos, carnes e outros produtos.

4) Sobre a China e suas vantagens competitivas no sistema de inovação
A China é um exemplo extremamente interessante na história econômica mundial, como um dos processos mais exitosos de desenvolvimento tecnológico, uma vez que o país tinha falhado, mais de dois séculos atrás, a empreender o mesmo processo de industrialização que marcou a Europa ocidental, os Estados Unidos e outros países da então periferia, como o Japão. Em consequência ela se atrasou, e foi derrotada em guerras e invasões estrangeiras. O comunismo ainda atrasou mais ainda o país, ao cercear a formidável energia produtiva de seu povo, que foi um dos mais avançados séculos atrás, em praticamente todos os campos do conhecimento e da engenhosidade humana.
Nas últimas quatro décadas, a China, mesmo com um Estado ainda excessivamente intervencionista, empreendeu um dos mais vigorosos e exitosos processos de inovação e de modernização, em todos os campos já abertos pela anterior hegemonia ocidental nos campos do conhecimento científico e da tecnologia aplicada em serviços e produção de bens. Não há limites às possibilidades de desenvolvimento da China.

5) Sobre fragmentação do multilateralismo como resposta a crises estruturais do mundo
Respondo imediatamente que não. A fragmentação do multilateralismo NÃO se deve a supostas “crises estruturais em cadeia de um sistema econômico globalizado”. Quem deu início, de forma mais contundente, ao desmantelamento do sistema multilateral de comércio foi o presidente dos EUA, Donald Trump, numa conjuntura em que a economia do país crescia de maneira sustentada, com os menores índices de desemprego em décadas. Por razões puramente ideológicas, ou de insanidade econômica, ele começou reclamando de um fantasmagórico “globalismo” – que é um conceito difuso, sem muita consistência – para em seguida aplicar golpes e mais golpes nas interações econômicas externas dos EUA. Começou denunciando o TPP, retirando os EUA desse enorme acordo de liberalização comercial – que, no entanto, foi assinado, com os onze países restantes –, seguido do abandono do NAFTA, o acordo de livre comércio com o Canadá e o México, apenas para negociar dois novos acordos separados com esses países. Reclamou do desequilíbrio bilateral comercial com a China e deu início a uma série ininterrupta de sobretaxas ilegais e arbitrárias contra exportações de produtos chineses, e demonstrou mais de uma vez ser completamente ignorante, e arbitrário, em matéria de política comercial. Atingiu inclusive parceiros comerciais tradicionais, ao introduzir restrições a comércio de aço e alumínio e muitos outros produtos. Ou seja, se trata de um desmantelador serial de acordos econômicos e um enorme retrocesso para o sistema multilateral de comércio como um todo.

6) Sobre uma suposta “financeirização” da economia mundial e medidas contra isso
Essa alegação de uma “financeirização” da economia mundial é uma “não-questão”, uma “non issue”, como dizem os americanos, pois se existe um aumento das transações financeiras na economia mundial, isso não é imposto por ninguém em particular, ou por algum Estado ou governo, ou como resultado de alguma “conspiração” de especuladores de Wall Street. Tudo isso é uma imensa bobagem. Se existe um crescimento do setor financeiro no PIB dos países, e nas transações internacionais, isso significa simplesmente que o mundo está submergido em dinheiro, tanto como resultado do crescimento normal da riqueza criada por agentes econômicos e disponível livremente para investimento produtivo ou especulativo por particulares e empresas. Essa coisa de “especulativo”, no lugar de “rentáveis”, também é uma bobagem, pois as pessoas investem naquilo que dá mais lucro, ou retorno, e isso, sim, depende de condições econômicas ambientais colocadas pela regulação dos países. Ocorre que os governos também cometem equívocos, seja emitindo dinheiro demais para cobrir os seus gastos – e criando, assim, inflação, que é uma forma de “financeirização” –, seja, emitindo muitos títulos da dívida pública, com os mesmos objetivos, a juros atraentes, o que desvia justamente investimentos produtivos em favor de títulos financeiros do governo.

7) Sobre a possibilidade de uma “pax chinesa”, ou seja, sua futura hegemonia global
Certamente a China continuará sua irresistível ascensão, tanto em termos econômicos e financeiros, quanto no plano militar. Mas não vejo possibilidade de que ela “imponha” sua hegemonia sobre o mundo no futuro previsível, por diversas razões. Ainda que o peso relativo da economia “norte-atlântica” – Europa ocidental e América do Norte – diminua em breve tempo, em favor de uma gigantesca economia do Pacífico, cabe considerar que essa economia também integra Japão, Estados Unidos, Canadá e outros países engajados nas cadeias de valor dessa região. Por outro lado, a diminuição relativa dos ocidentais, e um crescente predomínio da China em todos os setores, não diminuirá a capacidade de pesquisa científica e de inovação tecnológica do Ocidente, inclusive no terreno militar. De toda forma, mesmo uma ascensão irresistível e “prepotente” da China não se coloca contra o universo da ordem econômica de Bretton Woods, pois a China se integrou totalmente à lógica das economias de mercado, ainda que mantenha muitas empresas estatais, gigantescas por sinal, e continue sendo um sistema de governança autoritário e centralizado.

8) Sobre o agronegócio e o retorno ao protecionismo setorial e ao mercantilismo
A maior parte das commodities agrícolas, e as minerais, são “administradas” pelos mercados, ou seja, ninguém controla absolutamente as variações de preços, que são largamente determinados pelas velhas leis da oferta e da procura. Mas, isso não impede que nos alimentos processados sejam introduzidos novos critérios de admissibilidade, como vem ocorrendo, por exemplo, com OGMs, e aplicação do protecionista “princípio da precaução”. Cada vez mais normas técnicas, regulação sanitária e diferentes tipos de certificação – algumas até respondendo a critérios “politicamente corretos” – serão colocadas no cenário do comércio internacional. Por isso mesmo o Brasil deve não apenas aumentar a sua competitividade primária, ou seja, economia de escala e upgrade tecnológico ao nível dos insumos produtivos, mas deve também se preocupar muito, cada vez mais, com NORMAS, sejam elas harmonizadoras, sejam elas indisfarçavelmente protecionistas.

9) Sobre o globalismo e o antiglobalismo
Não tenho nenhuma hesitação em dizer que essa conversa é um besteirol imenso, pois é evidente que o mundo caminha para graus crescentes de globalização e, portanto, a isso que os antiglobalistas paranoicos classificam como “perda de soberania” dos Estados nacionais por efeito do “globalismo”. Como diriam os ingleses: so what? E daí? Em lugar de lutar contra moinhos de vento, é evidente que os países, os governos devem se preocupar, antes de mais nada, em tornar a globalização uma alavanca de oportunidade para todos os seus cidadãos produtivos: qualquer inovador solitário tem condições atualmente de alcançar o mundo inteiro, sendo capacitado nas tecnologias apropriadas e tendo acesso facilitado às redes mundiais. Se existe perda de soberania, eu acho isso ótimo, pois significa que algum governo introvertido não terá condições de reverter as tendências anteriores e fechar o país em colusão com empresários protecionistas. Sou um globalizador integral e completo.

10) Sistemas de compensação no pagamento das trocas comerciais: o socialismo
O ideal perfeito seria uma abertura total de todos os países, num sistema de livre comércio universal, em caráter inclusive unilateral – ou seja, dispensando completamente quaisquer acordos negociados –, o que obviamente não existe e não existirá antes de muito tempo, se algum dia existir. O “second best” é então um sistema multilateral no qual todos se relacionam com todos os demais, num sistema de pagamentos aberto, ou seja, sem limitações de inconversibilidade dos meios de pagamento. No século XIX, a libra exerceu o papel de liquidez universal, e até as primeiras décadas do século XX. Depois o dólar assumiu esse papel, ainda que outras moedas possam ocupar alguns espaços, mas em caráter regional.
Nas épocas de crise – como nos anos 1930, e no seguimento imediato da Segunda Guerra Mundial – persistiram sistemas de escambo (troca de produtos) e de compensações, ou seja, liquidação apenas do saldo bilateral, por uma moeda comum. Em tempos normais, os sistemas devem ser abertos e intercambiáveis, com um mínimo de previsibilidade (mas as volatilidades podem ser compensadas por seguros, hedge, etc.). Como o socialismo sempre foi um sistema fechado, planejado, dirigista, ele dependia de um “equilíbrio” que precisava ser imposto de forma artificial, sem referência a preços de mercado. Na época da União Soviética, existia uma espécie de “mercado comum”, o Comecon, que funcionava à base de “rublos conversíveis”, mas apenas entre os próprios países socialistas, que tinham de aceitar uma paridade estabelecida autoritariamente pelas autoridades soviéticas e que jamais dependeu das realidades do mercado. Era um sistema totalmente ineficiente, como o próprio socialismo era uma incoerência total e absoluta, e que implodiu sem qualquer interferência do capitalismo, que até financiou os países socialistas com créditos durante muito tempo.
Nenhum sistema de compensação que seja planejado por burocratas pode funcionar adequadamente, pois as dinâmicas econômicas, os imponderáveis da vida normal, não permitem manter equilíbrios de forma artificial. Na verdade, a volatilidade é um traço normal de todos os sistemas econômicos, e cabe, portanto, ser flexível o bastante para acomodar choques e mudanças nas condições externas. Portanto, livre mercado e moeda absolutamente conversível é o ideal para o avanço dos todos os países, de todos os indivíduos do mundo.

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 22/09/2019