Questões de relações internacionais: palestra na Univali
Paulo Roberto de Almeida
[Objetivo: responder a perguntas feitas na Univali; finalidade: atender a dúvidas]
No dia 19/09, aproveitando
uma viagem que fiz a Itajaí, para um curso de mestrado sobre o Direito das migrações transnacionais
da Univali, em conjunto com a Università degli Studi di Perugia, fui convidado
a fazer uma palestra para alunos de graduação em Relações Internacionais (e
alguns outros de outros cursos também), em torno do tema que eu mesmo indiquei:
“Desconstruindo Bretton Woods: a fragmentação do multilateralismo
econômico pelo novo nacionalismo antiglobalista”, cujo texto-base foi disponibilizado
em meu blog Diplomatizzando (link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2019/09/desconstruindo-bretton-woods.html). Na sessão de perguntas
e respostas, recebi, como solicitado ao início, um conjunto de perguntas, que
não puderam ser respondidas completamente, razão pela qual elaboro, nos
parágrafos seguintes, temas genéricos e minhas respectivas respostas, sem
identificação individual dos demandantes.
1) Sobre
base americana em território brasileiro e a questão da soberania nacional
Essa proposta,
absolutamente sem sentido, foi formulada no próprio dia da posse do novo
presidente. A ideia foi defendida pelo novo chanceler, Ernesto Araújo, na
presença do Secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo, e até considerada pelo
próprio presidente, mas imediatamente descartada pelo ministro da Defesa e
outros militares associados ao governo: general Augusto Heleno, chefe do GSI,
general Villas-Boas, general Santos Cruz, ainda na Presidência, e outros. Não há a mínima
possibilidade de que uma proposta estapafúrdia como essa seja concretizada, mas o fato de ter sido considerada é revelador do grau de
submissão aos Estados Unidos que vem sendo exibido por certos personagens do
governo Bolsonaro, em especial seu filho mais novo, já cogitado como embaixador
em Washington.
2) Sobre perda
de soberania nacional em decorrência de bloco regional de integração
Todo e qualquer tratado ou
ato internacional que envolva compromissos de adoção de determinadas políticas
ou ações conjuntas, nos planos bilateral, regional ou multilateral, sempre
envolve alguma perda de soberania, no sentido em que o país passa a se abster
de atuar de forma unilateral no campo coberto por esse ato internacional, ou adotar
políticas e medidas que contrariem o escopo ou os objetivos do novo compromisso
externo. O fato é que cada governo decide soberanamente sobre o escopo e os
objetivos desse compromisso, e, tradicionalmente, submete essas novas
obrigações à aprovação do parlamento, segundo os ritos constitucionais em
vigor. Em diversos casos, o poder legislativo brasileiro recusou aprovação,
como já ocorreu nos casos do acordo de salvaguardas tecnológicas feito em 2000
com os Estados Unidos, ou os acordos bilaterais sobre proteção e promoção de
investimentos estrangeiros, nenhum deles ratificado pelo Brasil. Uma vez
aceito, porém, o país disporá de menos liberdade em suas políticas domésticas,
em contrapartida a benefícios que se espera auferir com a implementação desse
acordo.
No caso dos processos de
integração, a renúncia de soberania é ainda maior, uma vez que envolve, por
exemplo, adoção de uma política comercial comum – como existe no caso das
uniões aduaneiras, a exemplo do Mercosul – ou até de uma moeda comum, que é o
caso do euro na União Europeia. Os países renunciam a ter políticas próprias,
individuais, embora sempre possam influenciar as políticas comuns, no processo
de adoção de medidas concretas.
Em alguns casos, o
aprofundamento do processo de integração pode confrontar a visão de novos
governantes, ou os interesses da população – bem informada ou não – e se pode
cogitar do abandono do bloco, como ocorre atualmente no caso do Brexit
britânico. Em princípio, todos os tratados preveem dispositivos de denúncia,
renúncia ou abandono dos compromissos assumidos anteriormente, com diferentes
esquemas de saída. Ou seja, o país decide retomar sua soberania nos terrenos
cobertos pelo acordo de integração, mas cabe ao parlamento decidir os aspectos
positivos e negativos dessa decisão.
3) Sobre o alinhamento
do Brasil à política dos EUA e consequências para outros países
Em muito raras ocasiões, o
Brasil alinhou sua política externa à dos Estados Unidos: isso ocorreu no
imediato seguimento da Segunda Guerra Mundial, no governo Dutra, ou por ocasião
do golpe militar de 1964, no contexto da Guerra Fria e de supostas ameaças de
“comunização” do Brasil. Mas, esses episódios foram rapidamente superados e o
Brasil voltou a adotar sua tradicional postura de autonomia na formulação e
implementação de uma política externa estritamente alinhada com os interesses
nacionais, o que significou que, em diversas ocasiões, o governo brasileiro se
chocou o confrontou demandas dos EUA – ou de qualquer outro país – em torno de
determinadas questões do relacionamento bilateral ou incluídas na agenda
multilateral.
Uma outra questão é o
alinhamento genérico do Brasil com posturas de países em desenvolvimento, uma
característica da organização dos debates na ONU em torno dos grandes blocos
existentes: países desenvolvidos, bloco socialista, países em desenvolvimento e
a China (tradicionalmente independente de qualquer bloco, mas sempre se dizendo
como pertencente ao grupo dos países em desenvolvimento). O Brasil sempre foi
um dos líderes do G77, como era conhecido o bloco dos países em
desenvolvimento, mas também buscava guiar as ações desse grupo numa linha que
favorecesse seus interesses nacionais. Em algumas ocasiões se colocou a adesão
à OCDE como conflitante com essa postura, o que não parece ser mais o caso,
inclusive porque o sistema internacional evoluiu para arranjos e coalizões de
arquitetura variada; o grupo socialista, por exemplo, desapareceu
completamente. Certos temas, como meio ambiente, ou agricultura, por exemplo,
cobrem países pertencentes a grupos muito diversos.
No relacionamento
bilateral com os EUA o Brasil pode, e deve, buscar acordos comerciais ou quaisquer
outros tipos de arranjos que ampliem o leque das interações e a possibilidade
de integração entre as duas economias, mas isso não pode passar por qualquer
tipo de subordinação política aos interesses comerciais americanos. Existem
muito mais complementaridade entre o Brasil e a China, por exemplo, do que com
os EUA, que são nossos concorrentes em vastas áreas das exportações de grãos,
carnes e outros produtos.
4) Sobre a
China e suas vantagens competitivas no sistema de inovação
A China é um exemplo
extremamente interessante na história econômica mundial, como um dos processos
mais exitosos de desenvolvimento tecnológico, uma vez que o país tinha falhado,
mais de dois séculos atrás, a empreender o mesmo processo de industrialização
que marcou a Europa ocidental, os Estados Unidos e outros países da então
periferia, como o Japão. Em consequência ela se atrasou, e foi derrotada em
guerras e invasões estrangeiras. O comunismo ainda atrasou mais ainda o país,
ao cercear a formidável energia produtiva de seu povo, que foi um dos mais
avançados séculos atrás, em praticamente todos os campos do conhecimento e da
engenhosidade humana.
Nas últimas quatro
décadas, a China, mesmo com um Estado ainda excessivamente intervencionista,
empreendeu um dos mais vigorosos e exitosos processos de inovação e de
modernização, em todos os campos já abertos pela anterior hegemonia ocidental
nos campos do conhecimento científico e da tecnologia aplicada em serviços e
produção de bens. Não há limites às possibilidades de desenvolvimento da China.
5) Sobre fragmentação
do multilateralismo como resposta a crises estruturais do mundo
Respondo imediatamente que
não. A fragmentação do multilateralismo NÃO se deve a supostas “crises
estruturais em cadeia de um sistema econômico globalizado”. Quem deu início, de
forma mais contundente, ao desmantelamento do sistema multilateral de comércio
foi o presidente dos EUA, Donald Trump, numa conjuntura em que a economia do país
crescia de maneira sustentada, com os menores índices de desemprego em décadas.
Por razões puramente ideológicas, ou de insanidade econômica, ele começou
reclamando de um fantasmagórico “globalismo” – que é um conceito difuso, sem
muita consistência – para em seguida aplicar golpes e mais golpes nas interações
econômicas externas dos EUA. Começou denunciando o TPP, retirando os EUA desse
enorme acordo de liberalização comercial – que, no entanto, foi assinado, com
os onze países restantes –, seguido do abandono do NAFTA, o acordo de livre comércio
com o Canadá e o México, apenas para negociar dois novos acordos separados com
esses países. Reclamou do desequilíbrio bilateral comercial com a China e deu
início a uma série ininterrupta de sobretaxas ilegais e arbitrárias contra
exportações de produtos chineses, e demonstrou mais de uma vez ser
completamente ignorante, e arbitrário, em matéria de política comercial.
Atingiu inclusive parceiros comerciais tradicionais, ao introduzir restrições a
comércio de aço e alumínio e muitos outros produtos. Ou seja, se trata de um
desmantelador serial de acordos econômicos e um enorme retrocesso para o
sistema multilateral de comércio como um todo.
6) Sobre uma
suposta “financeirização” da economia mundial e medidas contra isso
Essa alegação de uma “financeirização”
da economia mundial é uma “não-questão”, uma “non issue”, como dizem os americanos,
pois se existe um aumento das transações financeiras na economia mundial, isso
não é imposto por ninguém em particular, ou por algum Estado ou governo, ou
como resultado de alguma “conspiração” de especuladores de Wall Street. Tudo
isso é uma imensa bobagem. Se existe um crescimento do setor financeiro no PIB
dos países, e nas transações internacionais, isso significa simplesmente que o
mundo está submergido em dinheiro, tanto como resultado do crescimento normal
da riqueza criada por agentes econômicos e disponível livremente para
investimento produtivo ou especulativo por particulares e empresas. Essa coisa
de “especulativo”, no lugar de “rentáveis”, também é uma bobagem, pois as pessoas
investem naquilo que dá mais lucro, ou retorno, e isso, sim, depende de condições
econômicas ambientais colocadas pela regulação dos países. Ocorre que os governos
também cometem equívocos, seja emitindo dinheiro demais para cobrir os seus
gastos – e criando, assim, inflação, que é uma forma de “financeirização” –,
seja, emitindo muitos títulos da dívida pública, com os mesmos objetivos, a
juros atraentes, o que desvia justamente investimentos produtivos em favor de títulos
financeiros do governo.
7) Sobre a
possibilidade de uma “pax chinesa”, ou seja, sua futura hegemonia global
Certamente a China continuará
sua irresistível ascensão, tanto em termos econômicos e financeiros, quanto no
plano militar. Mas não vejo possibilidade de que ela “imponha” sua hegemonia
sobre o mundo no futuro previsível, por diversas razões. Ainda que o peso
relativo da economia “norte-atlântica” – Europa ocidental e América do Norte –
diminua em breve tempo, em favor de uma gigantesca economia do Pacífico, cabe
considerar que essa economia também integra Japão, Estados Unidos, Canadá e
outros países engajados nas cadeias de valor dessa região. Por outro lado, a diminuição
relativa dos ocidentais, e um crescente predomínio da China em todos os
setores, não diminuirá a capacidade de pesquisa científica e de inovação tecnológica
do Ocidente, inclusive no terreno militar. De toda forma, mesmo uma ascensão
irresistível e “prepotente” da China não se coloca contra o universo da ordem
econômica de Bretton Woods, pois a China se integrou totalmente à lógica das
economias de mercado, ainda que mantenha muitas empresas estatais, gigantescas
por sinal, e continue sendo um sistema de governança autoritário e
centralizado.
8) Sobre o
agronegócio e o retorno ao protecionismo setorial e ao mercantilismo
A maior parte das
commodities agrícolas, e as minerais, são “administradas” pelos mercados, ou
seja, ninguém controla absolutamente as variações de preços, que são largamente
determinados pelas velhas leis da oferta e da procura. Mas, isso não impede que
nos alimentos processados sejam introduzidos novos critérios de admissibilidade,
como vem ocorrendo, por exemplo, com OGMs, e aplicação do protecionista “princípio
da precaução”. Cada vez mais normas técnicas, regulação sanitária e diferentes
tipos de certificação – algumas até respondendo a critérios “politicamente
corretos” – serão colocadas no cenário do comércio internacional. Por isso
mesmo o Brasil deve não apenas aumentar a sua competitividade primária, ou
seja, economia de escala e upgrade tecnológico ao nível dos insumos produtivos,
mas deve também se preocupar muito, cada vez mais, com NORMAS, sejam elas
harmonizadoras, sejam elas indisfarçavelmente protecionistas.
9) Sobre o globalismo
e o antiglobalismo
Não tenho nenhuma hesitação
em dizer que essa conversa é um besteirol imenso, pois é evidente que o mundo
caminha para graus crescentes de globalização e, portanto, a isso que os
antiglobalistas paranoicos classificam como “perda de soberania” dos Estados
nacionais por efeito do “globalismo”. Como diriam os ingleses: so what? E daí? Em lugar de lutar contra
moinhos de vento, é evidente que os países, os governos devem se preocupar,
antes de mais nada, em tornar a globalização uma alavanca de oportunidade para
todos os seus cidadãos produtivos: qualquer inovador solitário tem condições
atualmente de alcançar o mundo inteiro, sendo capacitado nas tecnologias
apropriadas e tendo acesso facilitado às redes mundiais. Se existe perda de
soberania, eu acho isso ótimo, pois significa que algum governo introvertido não
terá condições de reverter as tendências anteriores e fechar o país em colusão
com empresários protecionistas. Sou um globalizador integral e completo.
10) Sistemas
de compensação no pagamento das trocas comerciais: o socialismo
O ideal perfeito seria uma
abertura total de todos os países, num sistema de livre comércio universal, em
caráter inclusive unilateral – ou seja, dispensando completamente quaisquer
acordos negociados –, o que obviamente não existe e não existirá antes de muito
tempo, se algum dia existir. O “second best” é então um sistema multilateral no
qual todos se relacionam com todos os demais, num sistema de pagamentos aberto,
ou seja, sem limitações de inconversibilidade dos meios de pagamento. No século
XIX, a libra exerceu o papel de liquidez universal, e até as primeiras décadas
do século XX. Depois o dólar assumiu esse papel, ainda que outras moedas possam
ocupar alguns espaços, mas em caráter regional.
Nas épocas de crise – como
nos anos 1930, e no seguimento imediato da Segunda Guerra Mundial – persistiram sistemas de escambo (troca de produtos) e de compensações, ou seja,
liquidação apenas do saldo bilateral, por uma moeda comum. Em tempos normais,
os sistemas devem ser abertos e intercambiáveis, com um mínimo de
previsibilidade (mas as volatilidades podem ser compensadas por seguros, hedge,
etc.). Como o socialismo sempre foi um sistema fechado, planejado, dirigista, ele
dependia de um “equilíbrio” que precisava ser imposto de forma artificial, sem
referência a preços de mercado. Na época da União Soviética, existia uma espécie
de “mercado comum”, o Comecon, que funcionava à base de “rublos conversíveis”,
mas apenas entre os próprios países socialistas, que tinham de aceitar uma
paridade estabelecida autoritariamente pelas autoridades soviéticas e que
jamais dependeu das realidades do mercado. Era um sistema totalmente
ineficiente, como o próprio socialismo era uma incoerência total e absoluta, e
que implodiu sem qualquer interferência do capitalismo, que até financiou os países
socialistas com créditos durante muito tempo.
Nenhum sistema de
compensação que seja planejado por burocratas pode funcionar adequadamente,
pois as dinâmicas econômicas, os imponderáveis da vida normal, não permitem
manter equilíbrios de forma artificial. Na verdade, a volatilidade é um traço
normal de todos os sistemas econômicos, e cabe, portanto, ser flexível o
bastante para acomodar choques e mudanças nas condições externas. Portanto,
livre mercado e moeda absolutamente conversível é o ideal para o avanço dos
todos os países, de todos os indivíduos do mundo.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 22/09/2019
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