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domingo, 29 de setembro de 2019
Lacerda, do comunismo ao anticomunismo e fraco inspirador da atual direita - livro de Lucas Berlanza
Certas coisas não merecem ser retiradas do túmulo, pois não há correspondência entre os tempos do lacerdismo, contaminados pelo varguismo-desenvolvimentismo, e os tempos atuais, deformados pelo lulopetismo e capturados pelo olavo-bolsonarismo, uma contrafação do pensamento conservador. Na verdade, os representantes atuais dessas correntes não possuem condições de propor qualquer programa racional de governo, pois uma está dominada por um mafioso encarcerado, a outra por um capitão desmiolado. Lacerda seria alguém muito sofisticado para inspirar os ignaros rústicos da atualidade. Louvo o cuidado de Lucas Berlanza em resgatar a grande contribuição de Carlos Lacerda para a política prática no Brasil – embora com restrições para com sua atitude realmente golpista em diversas oportunidades do esterilizante debate udenismo-pessedismo na República de 1946 –, mas não acredito que sua figura ou seus trabalhos possa fornecer a base para uma revitalização da UDN no momento presente. Como dizia Roberto Campos, a UDN era um partido burro formado por homens inteligentes, e ele estendia essa "reflexão" ao Itamaraty igualmente. Em outros termos, mentes brilhantes podem ter frequentado tanto o partido quanto a Casa de Rio Branco, mas a ação coletiva deixava muito a desejar. Paulo Roberto de Almeida
Livro busca reabilitar Lacerda, o Corvo, como padrinho da nova direita
Um dos grandes oradores do sua época, ficou marcado como o algoz de Getúlio Vargas. Houve um tempo em que lacerdismo, ou udenismo (de UDN, seu partido) eram quase palavrões.
Foi chamado de “Corvo”, apelido que pegou e o perseguiu até a morte. Político sagaz até a meia-idade, terminou a vida marcado como ingênuo, por ter acreditado que o golpe de 1964 seria apenas uma ponte para sua chegada ao Palácio do Planalto.
Mas é possível ver Lacerda de outro ângulo. Por vias tortas, sua trajetória antecipou grande parte dos movimentos de direita que vemos neste início de século 21.
A retórica afiada antecipou a dos polemistas das redes sociais. A defesa de limites ao tamanho do Estado influencia a nova geração de liberais.
Mesmo sua conversão, de comunista militante para anticomunista ferrenho, é a mesma de diversos pensadores da direita atual.
Há um certo movimento de resgate da figura do jornalista e político, que atingiu o ápice quando governou o antigo estado da Guanabara (1960-65).
Também está sendo lançado um novo livro sobre o tema. “Lacerda, a Virtude da Polêmica” (editora LVM), do jornalista Lucas Berlanza, é menos uma biografia clássica e mais um longo ensaio analítico sobre discursos e textos do personagem.
Berlanza não esconde admiração por Lacerda e busca, num livro denso e de rica pesquisa, contribuir para o resgate de sua imagem. Logo no início qualifica seu biografado como um “personagem incompreendido e injustiçado por contrariar os interesses de demagogos”.
“É um ícone do conservadorismo e do liberalismo no Brasil”, afirma o autor, que lamenta o fato de que “muitos porta-vozes da direita moderna parecem ter extremo pudor em assumir qualquer inspiração nele”.
Muito antes de Jair Bolsonaro fazer campanha prometendo unir o conservadorismo de costumes e o liberalismo econômico, Lacerda já percebia que esse era o caminho para a direita chegar ao poder e evitar a ascensão comunista. Defendia “preservar a ordem como único meio de salvar a liberdade”.
Pregou durante décadas a primazia da iniciativa privada e a desburocratização, e insurgiu-se como poucos contra o desenvolvimentismo de JK e suas políticas inflacionárias.
Foi um crítico da construção de Brasília, embora tenha recolhido sua artilharia quando viu que a empolgação na sociedade com a nova capital era uma onda irrefreável.
Mas foi no antiesquerdismo e suas inúmeras variações (varguismo, janguismo, sindicalismo) que Lacerda construiu sua reputação.
Abrigado no jornal “Tribuna da Imprensa”, seu texto era “cruento e satiricamente irresistível, usando e abusando de apelidos, invectivas pungentes, acusações e analogias das mais criativas”, como define Berlanza.
Num país carente de figuras de proa do conservadorismo (em oposição à abundância de “pais dos pobres”), é inevitável que Lacerda se destaque.
Mas há um obstáculo incontornável na tentativa de reabilitar a figura de Lacerda como uma espécie de godfather da nova direita: seu desapreço pela via democrática e seus constantes flertes com o golpismo. E Lacerda foi um golpista de mão cheia.
Um parágrafo que escreveu em 1950, por ocasião da eleição que trouxe Vargas de volta ao poder, até hoje é uma espécie de padrão-ouro da defesa da ruptura da legalidade:
“O sr. Getúlio Vargas não deve ser candidato à Presidência. Candidato, não deve ser eleito. Eleito, não deve tomar posse. Empossado, devemos recorrer à revolução para impedi-lo de governar”.
Nunca, nem antes nem depois, algo parecido foi dito, embora Berlanza tente suavizar um pouco a declaração argumentando que era uma espécie de apelo contra a volta ao poder de um ex-ditador.
Cinco anos depois, ele voltou à carga, tentando impedir a posse de JK na Presidência e Jango na Vice,recém-eleitos pelo voto popular.“Esses homens não podem tomar posse, não devem tomar posse, não tomarão posse”, afirmou.
É justo, porém, que uma figura da importância histórica de Lacerda não seja reduzida à de alguém que passou a vida tramando contra adversários, algo que o livro faz muito bem.
E é inevitável não sentir uma certa melancolia com o fim de um político que poderia ter contribuído com o debate ideológico brasileiro muito mais do que conseguiu.
Preso pelo AI-5,ele fez greve de fome e escreveu uma tentativa de carta-testamento, talvez inspirado, ironicamente, pelo próprio Vargas que tanto combateu.
“Os heróis de fancaria vão ver como luta e morre, sozinho e desarmado, um brasileiro que ama a pátria, mas a pátria livre. Se isto acontecer, malditos sejam pra sempre os ladrões do voto do povo, os assassinos da liberdade”, disse.
Mas, diferente de seu arqui-inimigo, ele não saiu da vida para entrar na história. Morreria nove anos depois, uma pálida sombra do tribuno de outrora.
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