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Quando as referências escasseiam, toda
iniciativa de resgate dos grandes é motivo de júbilo. Em especial quando
se trata da diplomacia e das relações internacionais – expediente
fundamental no esforço de tornar o mais harmonioso possível o contato
entre as diferentes nações, reduzindo o recurso ao arbítrio e à força
bruta, invariavelmente desinteressante, mesmo quando inevitável, aos
indivíduos e sua busca pela prosperidade. Estamos tentando sair de uma
fase de amarga prostituição de nosso Itamaraty a interesses e projetos
menos felizes, mas já fomos exemplo nessa seara, e o ícone desse
prestígio é José Maria da Silva Paranhos Júnior (1845-1912), o Barão do
Rio Branco.
Lançamento de 2012, O evangelho do barão – Rio Branco e a identidade brasileira é
um pequeno estudo de autoria do diplomata Luís Cláudio Villafañe G.
Santos, pesquisador ligado ao Instituto Rio Branco. Em vez de uma
biografia dessa notável personalidade brasileira, o autor procura fazer
de sua obra uma análise de seu impacto na construção de uma identidade
nacional e estudar as razões pelas quais ele se tornou uma inspiração
para toda a nossa diplomacia – a ponto de sua vida e obra serem chamadas
de “evangelho” desde o título.
“O Barão segue como uma
referência, ainda que já passível de revisão, na discussão dos rumos da
política externa brasileira. Trata-se de um caso paradigmático de
consolidação de uma doutrina para as relações exteriores de um país,
observada – e até reverenciada – por tão longo tempo”, comenta o
autor. A grande chave para entender Rio Branco, porém, é sua inspiração
na monarquia – não por acaso manteve, em pleno período republicano, a
designação associada a um título de nobreza, tendo estado à frente do
Ministério das Relações Exteriores entre 1902 e 1912, sob quatro
diferentes presidentes.
Os ideais de Rio Branco
Rio Branco era fundamentalmente um
saquarema (alinhado ao Partido Conservador monárquico), simpático aos
anos de maior estabilidade do Império, sob D. Pedro II. “As descontinuidades na condução da política exterior” entre Império e República “podem ser, e o são rotineiramente, embaçadas ou mesmo ocultadas”, mas a “sensação de permanência”, comenta o autor, “tem
também bastante de construção ideológica. (…) Ao recuperar muitas das
doutrinas do período monárquico, ou ocultar as rupturas em outros casos,
o Barão soube incorporar em sua ideia de Brasil um importante
patrimônio e o grande investimento que havia sido feito durante os anos
do Império na construção de uma identidade coletiva política e
socialmente operacional”.
Rio Branco teria sido importante na
superação da crise simbólica de legitimidade do Estado brasileiro,
equacionando-a com a consolidação de uma autoimagem calcada no caráter
de um Estado nacional pacífico, não intervencionista e seguro dentro de
fronteiras bem definidas. “O ideal da ‘conciliação’ e da criação de consensos, que marcou o apogeu do Segundo Reinado”, sob a hegemonia saquarema e a ordem do gabinete do Marquês do Paraná, “voltou
a ser um ponto central do discurso que permeou a estabilização da nova
ordem oligárquica que caracterizou a República Velha. O sucesso
alcançado pelo Barão do Rio Branco na criação de uma visão percebida
como consensual na condução das relações internacionais seria,
inclusive, mais duradouro e se projetaria por muitas décadas depois de
seu desaparecimento físico”.
Após longa análise do histórico imperial
e do começo da República Velha no campo da diplomacia, Luís Cláudio
insere o Barão e sua trajetória de esforços para, embora mais próximo à
elite saquarema que ao grupo que a contestava, conseguir uma posição de
proeminência dentro do Império, o que estaria prestes a alcançar quando,
para sua infelicidade, veio a República. O texto então oferece um
retrato muito curioso da transição de regime, com os gestos de força do
governo Floriano Peixoto e a situação degradante do período conhecido
como República da Espada, com destaque para a reação dos monarquistas
inconformados, compreendidas aí as queixas de figuras como Joaquim
Nabuco e Eduardo Prado.
As realizações de Rio Branco
Avalia também de que forma, ao ingressar
ao governo, Rio Branco lidou com a desconfiança, de um lado, dos
republicanos radicais com seu monarquismo, e de outro, com a pressão de
monarquistas que viram nisso um ato de traição. “Em tese,
independente de afiliação partidária, todos podem concordar com o
objetivo de definir e assegurar as fronteiras, ou mesmo de conseguir
ganhos territoriais. Em termos simbólicos, as fronteiras demarcam também
a alteridade, o ‘outro’ em relação ao qual se constrói a identidade
nacional. A questão da unidade e grandeza do território era um tema que
vinha sendo explorado desde a independência como base do discurso sobre a
identidade brasileira. E nesse campo, com as vitórias nas questões de
Palmas e do Amapá, Paranhos Júnior já havia acumulado um capital
político insuperável”, sendo alçado ao posto máximo da
diplomacia. Não que o Barão não desse motivos para irritar os radicais: o
autor comenta que ele apagava expressões de teor positivista dos
documentos, irritando os adeptos da autoritária ideologia comteana que
teve tanta relevância na República.
Villafañe relaciona também, é claro, as
realizações práticas de Rio Branco, como os esforços, ao lado do liberal
republicano parlamentarista gaúcho Assis Brasil, pela resolução da
questão acreana em defesa dos brasileiros do Acre contra as autoridades
bolivianas; a priorização das relações com os Estados Unidos, protetores
da América diante do imperialismo efetivo das nações europeias, que
entornaria na Primeira Guerra Mundial, apesar de as simpatias históricas
e estéticas de Rio Branco e Nabuco serem francamente mais europeias,
denotando seu senso absoluto de pragmatismo e interesse brasileiro; e a
conclusão da definição das fronteiras com os países latino-americanos. É
ainda explicada a brilhante performance de Rui Barbosa na Conferência
de Haia, sob a autoridade do Barão. A ênfase, no entanto, é no aspecto
simbólico e no peso de Rio Branco e suas políticas para uma ideia de
Brasil.
Rio Branco e a ideia de Brasil
Um dos aspectos simbólicos que o autor
ressalta é o enaltecimento da relação pacífica e da sobriedade
institucional do Brasil da República Oligárquica, não mais em contraste
com o Império, mas em contraste com a barbárie militarista da República
da Espada. Rio Branco passa a valorizar dessa forma uma relação de
continuidade com o Império. Sabemos perfeitamente que
há muito pouco a aplaudir na República dos coronéis, bacharéis e fazendeiros,
porém as vantagens na comparação direta com Deodoro e Floriano são
notáveis e permitiram que Rio Branco fizesse seu trabalho. Chegou ao
cargo, aliás, por decisão de Rodrigues Alves, também oriundo da elite
imperial e um dos nossos melhores presidentes, que recusou, em nome da
não-intervenção econômica, ratificar a Convenção de Taubaté.
Curiosamente, chama a atenção o momento em que o autor descreve um conjunto de vitrais inaugurados entre 1949 e 1950 na Washington National Cathedral representando
os principais aliados dos EUA na política externa: a Inglaterra, o
Canadá e a América Latina – e representando esta última estão dois
líderes de movimentos de independência, Simón Bolívar e San Martín, e o brasileiro Barão do Rio Branco (!!).
Representar o Brasil com a imagem de um diplomata e não de um príncipe
ou soldado dá ideia da importância desse personagem.
Ainda sobre a questão simbólica e
identitária brasileira, para Luís Cláudio, o legado da monarquia
brasileira em termos de construção dessa identidade não é pequeno,
porque ela “conseguiu substituir os laços diretos das províncias
com a antiga metrópole pela referência ao Rio de Janeiro. Ela foi
responsável pela propagação de um sentimento de patriotismo que superou a
lealdade às ‘pequenas pátrias’ locais e regionais em prol da ideia de
uma pátria que abrangesse a totalidade do território da antiga colônia.” A escravidão, porém, impedia que se entronizasse, no tecido social, a ideia efetiva de uma nação, calcada em “laços horizontais” entre os brasileiros. “O desenvolvimento de um sentimento nacional brasileiro, como apego à comunidade imaginada” mais
do que a um simbolismo dinástico da Família Imperial e da Coroa, foi um
projeto que amadureceu depois do golpe militar republicano, apesar da “vaga de patriotismo” verificada em ocasiões como a Guerra do Paraguai.
Tal “consolidação do sentimento nacional” nas
bases modernas, particularmente viabilizadas pelos meios de comunicação
de massa e o compartilhamento de notícias, permitindo a formação de uma
maior “consciência comum”, “foi tarefa da República, e a
definição da política externa republicana influiu na construção da
identidade do país, o que se traduziu na fixação do Barão como um dos
‘pais fundadores’ do nacionalismo brasileiro, quase um século após a
independência. A atuação de Juca Paranhos e a recuperação do mito
fundador das fronteiras naturais predefinidas, preservadas pela
colonização portuguesa, fecharam as portas de um discurso ideológico
fundamental na consolidação do nacionalismo brasileiro”, de maneira que o Barão “passou a simbolizar uma grandeza territorial com a qual todos podiam concordar, acima de classes ou partidos”.
Ligou-se, em sua retórica e realizações, a um projeto que, desde José
Bonifácio, defende a concepção de uma única nação integrando a antiga
América portuguesa.
O legado do Barão
Contemplar a representatividade de Rio
Branco é contemplar, sim, a ideia de um Brasil calcado na pretensão de
ser o “gigante”, o “colosso”, e simbolicamente ancorado na aspiração de
um destino glorioso para essa monumental grandeza territorial. Porém,
para aqueles a quem tal ideia soar ufanista e “geográfica” demais, pode
ser também contemplar o valor da personalidade humana, fortalecendo um
referencial mais pacífico de posicionamento no mundo e internamente,
rechaçando as perseguições e convulsões autoritárias da República da
Espada em prol de uma proposta de cosmopolitismo saudável e investimento
nas negociações para resolução dos conflitos internacionais.
Seu resgate é antídoto, acima de tudo – e
isto dizemos à revelia de qual seja a posição política efetiva do autor
do livro, que desconhecemos completamente –, para asneiras
regionalistas totalitárias que suplantem o interesse dos brasileiros,
como nacionalidade e como indivíduos, em favor de interesses alheios aos
seus, tal como se fez na última quadra histórica, e ainda há em nosso
seio quem intente fazer.