O que é este blog?

Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida;

Meu Twitter: https://twitter.com/PauloAlmeida53

Facebook: https://www.facebook.com/paulobooks

Mostrando postagens com marcador Univali. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Univali. Mostrar todas as postagens

domingo, 22 de setembro de 2019

Questões sobre relações econômicas internacionais - Paulo Roberto de Almeida


Questões de relações internacionais: palestra na Univali

Paulo Roberto de Almeida
 [Objetivo: responder a perguntas feitas na Univali; finalidade: atender a dúvidas]
  
No dia 19/09, aproveitando uma viagem que fiz a Itajaí, para um curso de mestrado sobre o Direito das migrações transnacionais da Univali, em conjunto com a Università degli Studi di Perugia, fui convidado a fazer uma palestra para alunos de graduação em Relações Internacionais (e alguns outros de outros cursos também), em torno do tema que eu mesmo indiquei: “Desconstruindo Bretton Woods: a fragmentação do multilateralismo econômico pelo novo nacionalismo antiglobalista”, cujo texto-base foi disponibilizado em meu blog Diplomatizzando (link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2019/09/desconstruindo-bretton-woods.html). Na sessão de perguntas e respostas, recebi, como solicitado ao início, um conjunto de perguntas, que não puderam ser respondidas completamente, razão pela qual elaboro, nos parágrafos seguintes, temas genéricos e minhas respectivas respostas, sem identificação individual dos demandantes.

1) Sobre base americana em território brasileiro e a questão da soberania nacional
Essa proposta, absolutamente sem sentido, foi formulada no próprio dia da posse do novo presidente. A ideia foi defendida pelo novo chanceler, Ernesto Araújo, na presença do Secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo, e até considerada pelo próprio presidente, mas imediatamente descartada pelo ministro da Defesa e outros militares associados ao governo: general Augusto Heleno, chefe do GSI, general Villas-Boas, general Santos Cruz, ainda na Presidência, e outros. Não há a mínima possibilidade de que uma proposta estapafúrdia como essa seja concretizada, mas o fato de ter sido considerada é revelador do grau de submissão aos Estados Unidos que vem sendo exibido por certos personagens do governo Bolsonaro, em especial seu filho mais novo, já cogitado como embaixador em Washington.

2) Sobre perda de soberania nacional em decorrência de bloco regional de integração
Todo e qualquer tratado ou ato internacional que envolva compromissos de adoção de determinadas políticas ou ações conjuntas, nos planos bilateral, regional ou multilateral, sempre envolve alguma perda de soberania, no sentido em que o país passa a se abster de atuar de forma unilateral no campo coberto por esse ato internacional, ou adotar políticas e medidas que contrariem o escopo ou os objetivos do novo compromisso externo. O fato é que cada governo decide soberanamente sobre o escopo e os objetivos desse compromisso, e, tradicionalmente, submete essas novas obrigações à aprovação do parlamento, segundo os ritos constitucionais em vigor. Em diversos casos, o poder legislativo brasileiro recusou aprovação, como já ocorreu nos casos do acordo de salvaguardas tecnológicas feito em 2000 com os Estados Unidos, ou os acordos bilaterais sobre proteção e promoção de investimentos estrangeiros, nenhum deles ratificado pelo Brasil. Uma vez aceito, porém, o país disporá de menos liberdade em suas políticas domésticas, em contrapartida a benefícios que se espera auferir com a implementação desse acordo.
No caso dos processos de integração, a renúncia de soberania é ainda maior, uma vez que envolve, por exemplo, adoção de uma política comercial comum – como existe no caso das uniões aduaneiras, a exemplo do Mercosul – ou até de uma moeda comum, que é o caso do euro na União Europeia. Os países renunciam a ter políticas próprias, individuais, embora sempre possam influenciar as políticas comuns, no processo de adoção de medidas concretas.
Em alguns casos, o aprofundamento do processo de integração pode confrontar a visão de novos governantes, ou os interesses da população – bem informada ou não – e se pode cogitar do abandono do bloco, como ocorre atualmente no caso do Brexit britânico. Em princípio, todos os tratados preveem dispositivos de denúncia, renúncia ou abandono dos compromissos assumidos anteriormente, com diferentes esquemas de saída. Ou seja, o país decide retomar sua soberania nos terrenos cobertos pelo acordo de integração, mas cabe ao parlamento decidir os aspectos positivos e negativos dessa decisão.

3) Sobre o alinhamento do Brasil à política dos EUA e consequências para outros países
Em muito raras ocasiões, o Brasil alinhou sua política externa à dos Estados Unidos: isso ocorreu no imediato seguimento da Segunda Guerra Mundial, no governo Dutra, ou por ocasião do golpe militar de 1964, no contexto da Guerra Fria e de supostas ameaças de “comunização” do Brasil. Mas, esses episódios foram rapidamente superados e o Brasil voltou a adotar sua tradicional postura de autonomia na formulação e implementação de uma política externa estritamente alinhada com os interesses nacionais, o que significou que, em diversas ocasiões, o governo brasileiro se chocou o confrontou demandas dos EUA – ou de qualquer outro país – em torno de determinadas questões do relacionamento bilateral ou incluídas na agenda multilateral.
Uma outra questão é o alinhamento genérico do Brasil com posturas de países em desenvolvimento, uma característica da organização dos debates na ONU em torno dos grandes blocos existentes: países desenvolvidos, bloco socialista, países em desenvolvimento e a China (tradicionalmente independente de qualquer bloco, mas sempre se dizendo como pertencente ao grupo dos países em desenvolvimento). O Brasil sempre foi um dos líderes do G77, como era conhecido o bloco dos países em desenvolvimento, mas também buscava guiar as ações desse grupo numa linha que favorecesse seus interesses nacionais. Em algumas ocasiões se colocou a adesão à OCDE como conflitante com essa postura, o que não parece ser mais o caso, inclusive porque o sistema internacional evoluiu para arranjos e coalizões de arquitetura variada; o grupo socialista, por exemplo, desapareceu completamente. Certos temas, como meio ambiente, ou agricultura, por exemplo, cobrem países pertencentes a grupos muito diversos.
No relacionamento bilateral com os EUA o Brasil pode, e deve, buscar acordos comerciais ou quaisquer outros tipos de arranjos que ampliem o leque das interações e a possibilidade de integração entre as duas economias, mas isso não pode passar por qualquer tipo de subordinação política aos interesses comerciais americanos. Existem muito mais complementaridade entre o Brasil e a China, por exemplo, do que com os EUA, que são nossos concorrentes em vastas áreas das exportações de grãos, carnes e outros produtos.

4) Sobre a China e suas vantagens competitivas no sistema de inovação
A China é um exemplo extremamente interessante na história econômica mundial, como um dos processos mais exitosos de desenvolvimento tecnológico, uma vez que o país tinha falhado, mais de dois séculos atrás, a empreender o mesmo processo de industrialização que marcou a Europa ocidental, os Estados Unidos e outros países da então periferia, como o Japão. Em consequência ela se atrasou, e foi derrotada em guerras e invasões estrangeiras. O comunismo ainda atrasou mais ainda o país, ao cercear a formidável energia produtiva de seu povo, que foi um dos mais avançados séculos atrás, em praticamente todos os campos do conhecimento e da engenhosidade humana.
Nas últimas quatro décadas, a China, mesmo com um Estado ainda excessivamente intervencionista, empreendeu um dos mais vigorosos e exitosos processos de inovação e de modernização, em todos os campos já abertos pela anterior hegemonia ocidental nos campos do conhecimento científico e da tecnologia aplicada em serviços e produção de bens. Não há limites às possibilidades de desenvolvimento da China.

5) Sobre fragmentação do multilateralismo como resposta a crises estruturais do mundo
Respondo imediatamente que não. A fragmentação do multilateralismo NÃO se deve a supostas “crises estruturais em cadeia de um sistema econômico globalizado”. Quem deu início, de forma mais contundente, ao desmantelamento do sistema multilateral de comércio foi o presidente dos EUA, Donald Trump, numa conjuntura em que a economia do país crescia de maneira sustentada, com os menores índices de desemprego em décadas. Por razões puramente ideológicas, ou de insanidade econômica, ele começou reclamando de um fantasmagórico “globalismo” – que é um conceito difuso, sem muita consistência – para em seguida aplicar golpes e mais golpes nas interações econômicas externas dos EUA. Começou denunciando o TPP, retirando os EUA desse enorme acordo de liberalização comercial – que, no entanto, foi assinado, com os onze países restantes –, seguido do abandono do NAFTA, o acordo de livre comércio com o Canadá e o México, apenas para negociar dois novos acordos separados com esses países. Reclamou do desequilíbrio bilateral comercial com a China e deu início a uma série ininterrupta de sobretaxas ilegais e arbitrárias contra exportações de produtos chineses, e demonstrou mais de uma vez ser completamente ignorante, e arbitrário, em matéria de política comercial. Atingiu inclusive parceiros comerciais tradicionais, ao introduzir restrições a comércio de aço e alumínio e muitos outros produtos. Ou seja, se trata de um desmantelador serial de acordos econômicos e um enorme retrocesso para o sistema multilateral de comércio como um todo.

6) Sobre uma suposta “financeirização” da economia mundial e medidas contra isso
Essa alegação de uma “financeirização” da economia mundial é uma “não-questão”, uma “non issue”, como dizem os americanos, pois se existe um aumento das transações financeiras na economia mundial, isso não é imposto por ninguém em particular, ou por algum Estado ou governo, ou como resultado de alguma “conspiração” de especuladores de Wall Street. Tudo isso é uma imensa bobagem. Se existe um crescimento do setor financeiro no PIB dos países, e nas transações internacionais, isso significa simplesmente que o mundo está submergido em dinheiro, tanto como resultado do crescimento normal da riqueza criada por agentes econômicos e disponível livremente para investimento produtivo ou especulativo por particulares e empresas. Essa coisa de “especulativo”, no lugar de “rentáveis”, também é uma bobagem, pois as pessoas investem naquilo que dá mais lucro, ou retorno, e isso, sim, depende de condições econômicas ambientais colocadas pela regulação dos países. Ocorre que os governos também cometem equívocos, seja emitindo dinheiro demais para cobrir os seus gastos – e criando, assim, inflação, que é uma forma de “financeirização” –, seja, emitindo muitos títulos da dívida pública, com os mesmos objetivos, a juros atraentes, o que desvia justamente investimentos produtivos em favor de títulos financeiros do governo.

7) Sobre a possibilidade de uma “pax chinesa”, ou seja, sua futura hegemonia global
Certamente a China continuará sua irresistível ascensão, tanto em termos econômicos e financeiros, quanto no plano militar. Mas não vejo possibilidade de que ela “imponha” sua hegemonia sobre o mundo no futuro previsível, por diversas razões. Ainda que o peso relativo da economia “norte-atlântica” – Europa ocidental e América do Norte – diminua em breve tempo, em favor de uma gigantesca economia do Pacífico, cabe considerar que essa economia também integra Japão, Estados Unidos, Canadá e outros países engajados nas cadeias de valor dessa região. Por outro lado, a diminuição relativa dos ocidentais, e um crescente predomínio da China em todos os setores, não diminuirá a capacidade de pesquisa científica e de inovação tecnológica do Ocidente, inclusive no terreno militar. De toda forma, mesmo uma ascensão irresistível e “prepotente” da China não se coloca contra o universo da ordem econômica de Bretton Woods, pois a China se integrou totalmente à lógica das economias de mercado, ainda que mantenha muitas empresas estatais, gigantescas por sinal, e continue sendo um sistema de governança autoritário e centralizado.

8) Sobre o agronegócio e o retorno ao protecionismo setorial e ao mercantilismo
A maior parte das commodities agrícolas, e as minerais, são “administradas” pelos mercados, ou seja, ninguém controla absolutamente as variações de preços, que são largamente determinados pelas velhas leis da oferta e da procura. Mas, isso não impede que nos alimentos processados sejam introduzidos novos critérios de admissibilidade, como vem ocorrendo, por exemplo, com OGMs, e aplicação do protecionista “princípio da precaução”. Cada vez mais normas técnicas, regulação sanitária e diferentes tipos de certificação – algumas até respondendo a critérios “politicamente corretos” – serão colocadas no cenário do comércio internacional. Por isso mesmo o Brasil deve não apenas aumentar a sua competitividade primária, ou seja, economia de escala e upgrade tecnológico ao nível dos insumos produtivos, mas deve também se preocupar muito, cada vez mais, com NORMAS, sejam elas harmonizadoras, sejam elas indisfarçavelmente protecionistas.

9) Sobre o globalismo e o antiglobalismo
Não tenho nenhuma hesitação em dizer que essa conversa é um besteirol imenso, pois é evidente que o mundo caminha para graus crescentes de globalização e, portanto, a isso que os antiglobalistas paranoicos classificam como “perda de soberania” dos Estados nacionais por efeito do “globalismo”. Como diriam os ingleses: so what? E daí? Em lugar de lutar contra moinhos de vento, é evidente que os países, os governos devem se preocupar, antes de mais nada, em tornar a globalização uma alavanca de oportunidade para todos os seus cidadãos produtivos: qualquer inovador solitário tem condições atualmente de alcançar o mundo inteiro, sendo capacitado nas tecnologias apropriadas e tendo acesso facilitado às redes mundiais. Se existe perda de soberania, eu acho isso ótimo, pois significa que algum governo introvertido não terá condições de reverter as tendências anteriores e fechar o país em colusão com empresários protecionistas. Sou um globalizador integral e completo.

10) Sistemas de compensação no pagamento das trocas comerciais: o socialismo
O ideal perfeito seria uma abertura total de todos os países, num sistema de livre comércio universal, em caráter inclusive unilateral – ou seja, dispensando completamente quaisquer acordos negociados –, o que obviamente não existe e não existirá antes de muito tempo, se algum dia existir. O “second best” é então um sistema multilateral no qual todos se relacionam com todos os demais, num sistema de pagamentos aberto, ou seja, sem limitações de inconversibilidade dos meios de pagamento. No século XIX, a libra exerceu o papel de liquidez universal, e até as primeiras décadas do século XX. Depois o dólar assumiu esse papel, ainda que outras moedas possam ocupar alguns espaços, mas em caráter regional.
Nas épocas de crise – como nos anos 1930, e no seguimento imediato da Segunda Guerra Mundial – persistiram sistemas de escambo (troca de produtos) e de compensações, ou seja, liquidação apenas do saldo bilateral, por uma moeda comum. Em tempos normais, os sistemas devem ser abertos e intercambiáveis, com um mínimo de previsibilidade (mas as volatilidades podem ser compensadas por seguros, hedge, etc.). Como o socialismo sempre foi um sistema fechado, planejado, dirigista, ele dependia de um “equilíbrio” que precisava ser imposto de forma artificial, sem referência a preços de mercado. Na época da União Soviética, existia uma espécie de “mercado comum”, o Comecon, que funcionava à base de “rublos conversíveis”, mas apenas entre os próprios países socialistas, que tinham de aceitar uma paridade estabelecida autoritariamente pelas autoridades soviéticas e que jamais dependeu das realidades do mercado. Era um sistema totalmente ineficiente, como o próprio socialismo era uma incoerência total e absoluta, e que implodiu sem qualquer interferência do capitalismo, que até financiou os países socialistas com créditos durante muito tempo.
Nenhum sistema de compensação que seja planejado por burocratas pode funcionar adequadamente, pois as dinâmicas econômicas, os imponderáveis da vida normal, não permitem manter equilíbrios de forma artificial. Na verdade, a volatilidade é um traço normal de todos os sistemas econômicos, e cabe, portanto, ser flexível o bastante para acomodar choques e mudanças nas condições externas. Portanto, livre mercado e moeda absolutamente conversível é o ideal para o avanço dos todos os países, de todos os indivíduos do mundo.

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 22/09/2019

domingo, 1 de junho de 2014

Quais os rumos para a politica externa brasileira na proxima decada? - Paulo Roberto de Almeida

Rumos adequados à política externa brasileira na próxima década

Paulo Roberto de Almeida
Texto preparado para o:
19° Encontro Nacional de Estudantes de Relações Internacionais (ENERI)
4 a 7 de junho de 2014, Balneário Camboriú - Santa Catarina
organizado pela Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI)

Do Brasil recebo um convite para participar do 19° Encontro Nacional de Estudantes de Relações Internacionais (ENERI), de 4 a 7 de junho de 2014, no Balneário Camboriú, em Santa Catarina, organizado pela Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI). Sugerem que eu discorra sobre o tema do título, ou, mais exatamente, que eu responda à seguinte questão: “Quais os rumos adequados à política externa brasileira para a próxima década?”. Na impossibilidade de estar presente pessoalmente, resolvi alinhar os meus argumentos sobre o tema sugerido nos parágrafos que seguem.

Quando alguém se questiona sobre “rumos adequados” para a política externa brasileira para a próxima década, a impressão implícita, ou mesmo a suposição direta, é a de que a política externa que foi seguida nos últimos dez anos não foi exatamente adequada, ou pelo menos não tanto quanto poderia, ou deveria ser. Pode ser que esta seja apenas uma suspeita sem fundamento, e que, ao contrário do que possam pensar espíritos malévolos e indivíduos mal-intencionados, a política externa que está aí, esta mesma que esteve e está conosco pelos últimos dez anos e meio, foi a maior das maravilhas do governo do nunca antes. De fato, como está no título do meu livro mais recente, nunca antes na diplomacia brasileira tivemos uma política externa como essa.
Mas também pode ser que, ao falar de rumos adequados para a política externa, a intenção, altamente suspeita, dos responsáveis pelo convite, tenha sido essa mesma, ou seja: colocar em dúvida os propósitos, as intenções, os resultados, e quem sabe até os fundamentos da diplomacia do nunca antes. O pessoal do ENERI é mesmo desconfiado, e não deve comer gato por lebre, o que representaria, neste caso, trocar a diplomacia do Itamaraty, nossa velha conhecida, pela política externa partidária dos companheiros das boas causas, ainda que estas sejam perdidas ou simplesmente anacrônicas.
Em todo caso, agradeço pela lembrança do meu nome, e, sem poder falar diretamente aos participantes do 19. ENERI, por razões de trabalho, permito-me formular nas linhas que seguem alguns argumentos que poderiam sustentar uma hipotética política externa alternativa à dos companheiros, uma que tenha rumos adequados ao país, já que a que está ai trouxe fundadas desconfianças de que não serve a um país como o Brasil, que pode ser várias coisas, menos certamente bolivariano.
Pois bem, aceitando o desafio, caberia então, antes de falar do que poderia ser adequado para a política externa brasileira na próxima década, começar pela simples identificação do que não foi adequado nessa política, durante a última década. A partir daí talvez seja possível corrigir alguns dos erros, os desvios, os muitos equívocos, as deformações, enfim tudo aquilo que, antes dos companheiros chegarem ao poder, nunca tinha sido feito, mas que ele fizeram, de modo até despudorado, como se fosse essa mesma a intenção, ou seja, perpetrar todas essas iniciativas inadequadas, o que nos permite justamente estar agora discutindo, numa espécie de balanço, os seus rumos inadequados, num arremedo de “sessão descarrego” contra os maus espíritos, como se faz com alguns dos santos mais conhecidos do candomblé.
Se poderia começar, por exemplo, afastando qualquer retórica grandiloquente, dessas pelas quais se proclama, a altos brados, que se está defendendo a soberania nacional, lutando contra uma fantasmagórica dominação estrangeira, contra a submissão ao FMI, aos especuladores de Wall Street, aos neoliberais de Washington e tantas outras bobagens do gênero. Quem se enrola na bandeira da soberania, para enfrentar moinhos imaginários, é porque tem um sério problema psicológico, e não tem, no fundo, muita certeza de estar de fato defendendo o interesse nacional. O mais provável é que continue em campanha eleitoral e fica escondendo sua falta de imaginação com invectivas contra supostos inimigos da pátria, o que é, na verdade, uma insegurança tremenda sobre o que fazer, de fato, para defender os interesses nacionais. Ainda recentemente, um desses iluminados do partido da soberania nacional voltou a agitar o fantasma de uma volta ao passado, referindo-se continuamente ao neoliberalismo, como se um país dirigista e estatizante como o Brasil tenha sido, algum dia, um país liberal, e que não se sabe bem quais traidores da pátria andaram por aqui praticando as artes sempre perversas do neoliberalismo. Que falta de imaginação, ou que falta do que falar, justo do nosso velho fantasma do neoliberalismo. Devia ser numa assembleia da UNE, certamente.
Vamos ser diretos: a defensa dos interesses nacionais se faz com uma avaliação isenta, tecnicamente fundamentada, economicamente embasada, da agenda que cabe implementar na frente externa, sem arroubos, sem retórica vazia, sem grandes golpes de propaganda enganosa. Durante os últimos dez ou doze anos, os companheiros no poder fizeram exatamente isso: primeiro ficaram deblaterando contra quem os precedeu, inventando uma tal de herança maldita que só existiu por profunda desonestidade sub-intelectual, uma vez que a deterioração da situação econômica do Brasil, durante os meses da campanha eleitoral de 2002 só existiu por que os mercados temiam, justamente, os possíveis efeitos de uma política econômica esquizofrênica que os aprendizes de feitiçarias econômicas do partido dos companheiros tinham se encarregado de propagar durante os meses anteriores ao pleito presidencial.
Uma vez no poder, eles foram logo se empenhando na implosão da Alca, o projeto americano de uma zona de livre comércio hemisférica, não porque tivessem conduzido brilhantes estudos técnicos de simulação econômica sobre os efeitos de um tal acordo para o Brasil, mas apenas porque ideologicamente eram contra tudo o que pudesse provir do gigante do norte. Em seu lugar eles esperavam maravilhas de um hipotético acordo entre a União Europeia e o Mercosul, ou até chegaram a propor um acordo de livre comércio entre o bloco do Cone Sul e a China, como se esta fosse a solução para todos os problemas externos do Brasil e do Mercosul. Deve-se reconhecer que eles conseguiram o seu intento os companheiros, não exatamente o livre comércio com a União Europeia – uma ilusão de ingênuos e de amadores – e menos ainda tal tipo de arranjo com a China, mas obtiveram, de fato, a implosão da Alca, transformada em dragão da maldade imperialista.
Os companheiros também ficaram iludidos pela possibilidade de o Brasil ser admitido como membro permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidos, uma verdadeira obsessão para alguns, numa outra suprema demonstração de irrealismo e de total falta de prioridades para a agenda externa do Brasil. Em nome desse objetivo, o supremo mandatário saiu pelo mundo perdoando dívidas bilaterais de ditadores do petróleo e prometendo apoio político para os mesmos inimigos das liberdades e dos direitos humanos. Aliás, fazer amizade com ditaduras parece que se converteu numa mania dos companheiros, sempre dispostos a tratar com complacência os piores perpetradores de atentados aos direitos humanos e valores democráticos no mundo. Antigamente, o Brasil apenas se abstinha quando das discussões e votos a respeito dos casos mais politizados nessas matérias nas instâncias da ONU: a partir de 2003, o país passou a votar ativamente com os violadores e inimigos da democracia ao redor do mundo. Não se está aqui inventando nada: basta conferir os votos envolvendo alguns desses países. Um embaixador político companheiro numa dessas ditaduras até chegou a defender o fuzilamento de simples balseiros que tentavam fugir da ilha-prisão da qual os companheiros gostam tanto (a ponto de financiá-la fartamente nos dias que correm).
Um outro comportamento inadequado do ponto de vista dos verdadeiros interesses do Brasil, sob qualquer critério que se julgue, foi o abandono da agenda comercial do Mercosul, em favor de uma agenda política que poucos progressos trouxe ao bloco; ao contrário, fê-lo retroceder tremendamente nos últimos dez anos. Dizer que o Mercosul não é só econômico ou não é só comercial, e que ele deve também avançar nos terrenos político ou social, não constitui apenas uma impropriedade semântica, mas representa um crime contra o bloco. O Mercosul é, antes de mais nada, um tratado de integração comercial, e se fundamenta, basicamente, na abertura econômica recíproca, na liberalização comercial, e na plena integração produtiva do bloco ao resto do mundo, ponto. É isso que está escrito em seu tratado constitutivo e é essa agenda pela qual os países deveriam se bater em suas políticas comercial e industrial. Nada disso se fez na lula-década, ao contrário. Durante todo esse tempo, o bloco só recuou na liberalização interna e na abertura externa, voltando a ser o avestruz temeroso que nossos países eram nos tempos pouco gloriosos do protecionismo comercial e da introversão econômica.
Finalmente, os rumos sensatos da diplomacia profissional foram bastante afetados pelo personalismo presidencial, e tudo passou a girar em torno da figura retumbante do guia genial dos povos, o grande líder das nações oprimidas pelo imperialismo, o homem que iria comandar uma cruzada contra o unilateralismo arrogante dos países hegemônicos, até mudar a relação de forças no mundo e inaugurar uma nova geografia do comércio internacional. Em nome desses objetivos grandiloquentes, várias iniciativas de grande envergadura foram tomadas, para as quais se mobilizaram mundos e fundos, e recursos humanos em abundância, sempre com o objetivo de exaltar a figura do chefe e seus discursos de sindicalista universal. Tudo começou pela tentativa de se implantar um Fome Zero Universal, quando sequer o brasileiro deu certo, e foi logo abandonado e substituído pela assemblagem marota de todos os programas sociais existentes desde o governo anterior, apenas rotulando-os com um novo nome e aumentando o poder de fogo do curral eleitoral então criado. Sinceramente, não sei se deveria ser motivo de orgulho nacional o fato de ter mais de um quinto da população do país numa lista oficial de assistidos por esmolas do governo, como se isso fosse um sinal de normalidade no quadro da comunidade internacional.

Bem, chega de inadequações e de equívocos do passado. Cabe agora refletir sobre o que significa ter uma política externa adequada para um país que pretende se inserir plenamente nos circuitos da economia globalizada, não retrair-se defensivamente apenas porque o Brasil perde competitividade, e se mostra incapaz de concorrer com outros parceiros comerciais por não lograr ganhos de produtividade que dependem de um diagnóstico correto dos problemas reais e uma prescrição conforme as necessidades sentidas. A primeira condição para superar o estado lastimável em que se encontra o Brasil atualmente é justamente saber traçar uma avaliação adequada dos desafios a serem enfrentados e colocar-se corajosamente na condição de propositor de novas medidas proativas, não ficar atribuindo ao ambiente externo as razões de seu baixo desempenho no contexto internacional.
Quais são os principais problemas enfrentados atualmente pelo Brasil? Eles estão, na frente interna, no baixo crescimento, no recrudescimento da inflação, na infraestrutura medíocre, na nossa insuficiente produtividade, que por sua vez se reflete, no plano externo, na perda de competitividade da economia brasileira, na chamada reprimarização da pauta exportadora – que diminuiu bastante em sua composição – e na nossa dependência de alguns grandes compradores dos produtos primários de exportação. O Brasil se tornou hoje bem mais dependente da China do que ele jamais o foi, no passado, dos Estados Unidos, país com o qual sempre mantivemos uma interface bastante diversificada, feita das exportações as mais variadas, inclusive manufaturados, e que sempre nos abasteceu de know-how, tecnologia, financiamentos, cooperação educacional, e também filmes de Hollywood e, ultimamente, iPhones e iPads.
Aparentemente, mais até do que esses problemas de ordem econômica, o Brasil parece ter perdido uma mercadoria ainda preciosa na frente internacional, uma coisa que se chama credibilidade. É isso que dá ficar apoiando ditaduras comunistas, violadores dos direitos humanos, agressores dos valores democráticos e outros meliantes do mesmo tipo. Vejam bem: temos consagrados na nossa Constituição alguns princípios que nos são muito caros, pois lutamos muito, no passado, para assegurá-los na ordem política interna e na nossa expressão externa: o pleno respeito dos direitos humanos, dos valores democráticos, a condenação do terrorismo e a não intervenção nos assuntos internos de outros países. E o que aconteceu nos últimos dez ou doze anos? Segundo um “wikileaks” do Itamaraty, recentemente divulgado pelo grupo Anonymous, pedimos aos Estados Unidos que retirem Cuba da lista dos países que patrocinam terroristas. Parece que somos aliados, justamente, de alguns dos piores regimes do planeta que violam esses princípios e valores constantemente, e ainda hoje o fazemos, numa superação da antiga hipocrisia – que parece ser normal quando alguns desses temas são politizados na agenda internacional – em favor de um apoio direto e solidário a essas ditaduras.
Mais grave ainda: nossa Constituição consagra o princípio de que qualquer acordo gravoso para o país tem de ser necessariamente aprovado pelo Congresso, para ser plenamente válido, depois de formalmente ratificado. Não é isso que tem ocorrido nos últimos tempos. Um outro princípio relevante da Constituição, que é a necessária aprovação do Senado para operações financeiras externas, também tem sido descurado em diversas ocasiões, por acaso envolvendo algumas das mesmas ditaduras. Como é possível que empréstimos de órgãos públicos possam ser classificados como secretos, e se eximirem, assim, do necessário escrutínio do Congresso? Não se trata nem mais de só fazer favores a ditaduras corruptas, mas de um desrespeito a todo o povo brasileiro – que alimenta esses empréstimos com os seus impostos – bem como ao próprio poder legislativo, que deveria monitorar as condições sob as quais são feitas esses generosos empréstimos a regimes muito pouco frequentáveis nesse nosso planetinha redondo.
A credibilidade de nossa política externa também tem sido posta à prova nesses episódios de inadimplência negociadora: o país, que pertence a um bloco que outrora pretendia ser um mercado comum, não consegue montar uma oferta exportadora, e concessões nas importações, para as negociações entre o Mercosul e a União Europeia. O bloco tampouco consegue dar início a novos processos negociadores com parceiros promissores, e isso quando esses mesmos parceiros têm assinado acordos de livre comércio ou de liberalização comercial com vizinhos mais ousados, ou talvez mais inteligentes e mais abertos do que nós. Por que é que o Brasil insiste nessa política de avestruz, se fechando ao comércio internacional, atribuindo a outros as fontes de nossos velhos problemas internos e pretendendo voltar a construir uma economia apenas baseada no mercado interno, quando sabemos que esse tempo já passou? Será que os companheiros no poder pretender voltar ao stalinismo industrial praticado em outras eras de nosso itinerário econômico?
Quando é, finalmente, que vamos parar de sustentar ditaduras miseráveis, e regimes inviáveis, e nos relacionarmos normalmente com as maiores democracias de mercado, atendendo de fato ao que nos prescreve a Constituição? Quando é que vamos deixar a introversão de lado e nos integrarmos plenamente nos circuitos da globalização contemporânea, sem mais esses pruridos defensivos que só tem atuado para diminuir, cada vez mais, nossa participação no comércio internacional? Quando é, por fim, que vamos deixar de lado essa diplomacia partidária, extremamente enviesada do ponto de vista dos interesses nacionais, e voltar às boas tradições do Itamaraty, baseadas numa análise isenta e objetiva das realidades externas, num tratamento profissional, tecnicamente embasado, dos itens da agenda internacional, e numa implementação consensual de questões que deveriam nos integrar cada vez mais ao mundo como ele, não colocar-nos à margem, e por vias obscuras, da grande integração global que se processa sob nossos olhos mas com pouca participação do Brasil?
Está na hora de retificar os rumos e de realmente adotar uma política externa que seja consentânea, adequada e condizente com o que o Brasil passou a ser depois do Plano Real: uma democracia, ainda que com muitas falhas, fundada numa economia de mercado, e que deve procurar defender sua estabilidade interna e sua plena integração ao mundo contemporâneo. O Itamaraty sabe como fazer, sempre fez, mas seria preciso deixá-lo fazer.

Paulo Roberto de Almeida
Portland, Maine, 31 de maio de 2014


Post scriptum:
Na verdade, um comentário, que retiro do rodapé (que não sei se todo lê) e coloco aqui, ao pé da postagem, pois gostei do comentário e acho que é isso mesmo:
Alguns poucos vão lamentar minha ausência, e muitos vão ficar aliviados com a minha não presença, já que eu poderia deixá-los embaraçados...
Paulo Roberto de Almeida

Mauricio Martins

46 minutos atrás  -  Compartilhada publicamente
 
Melhor análise impossível. Pelo que conheço do ambiente acadêmico, alguns professores e alunos respirarão aliviados sabendo que o senhor não se fará presente no dito encontro. Ficará mais fácil enaltecer a diplomacia do "nunca antes".