O FMI sempre foi o bode expiatório preferido da esquerda brasileira, desde quando JK recusou um programa de austeridade para poder construir Brasília torrando o dinheiro que não tinha (ou seja, provocando inflação). Vieram com o tal slogan FMI = Fome e Miséria Internacional.
O desconhecimento do que seja o FMI, suas funções, seus limites, era proverbial ao início do governo Lula, talvez até hoje.
Em setembro de 2003, ainda em Washington, li um artigo no boletim Periscópio, do PT, e me dei ao trabalho de comentar exaustivamente. Nunca ficou conhecido esse meu trabalho, pois não foi publicado em lugar nenhum.
Permito-me assim transcrever em primeiro lugar o artigo publicado pela Fundação Perseu Abramo, e depois transcrevo o meu longo comentário a esse artigo.
1113. “O governo Lula, o FMI e a transição de paradigmas: comentários”, Washington, 15 setembro 2003, 4 p. Comentários breves a matéria homônima no boletim Periscópio n. 29, set. 2003, da Fundação Perseu Abramo.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 2/09/2018
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O governo Lula, o FMI e a transição de paradigmas
Periscópio, Edição nº 29 - setembro de 2003
Ao defender publicamente que um novo acordo com o FMI, se for preciso e se for realizado, não pode obstaculizar as políticas e investimentos necessários ao crescimento do país, o governo Lula aponta de modo decisivo para o caminho de superação gradativa dos enormes constrangimentos que têm limitado a sua histórica vocação desenvolvimentista e social.
Em uma entrevista a dez jornalistas, concedida no dia 20 de agosto, o presidente Lula afirmou “que o Brasil não precisa de um outro acordo com o FMI”. Sugeriu que só haverá um novo acordo com a instituição se os termos forem favoráveis ao país. “Pela lógica, o Brasil não precisa renovar o acordo. Assinar ou não um novo acordo depende da vontade, do acordo e das condições que forem negociadas”. Foi informado também que Lula coordenará pessoalmente a renegociação do acordo, se este se fizer necessário.
No dia 1º de agosto, o próprio ministro da Fazenda, Antonio Palocci, já dera uma declaração em sentido semelhante, afirmando que “se houver a necessidade de um acordo – é uma discussão não feita ainda – uma série de questões novas podem ser colocadas”. O jornal O Globo noticiou no dia 13 de agosto que, se depender dos ministros da Casa Civil, José Dirceu, e do Planejamento, Guido Mantega, em outubro o governo redesenhará seu acordo com o FMI. No dia seguinte, os ministros Luiz Dulci, da Secretaria Geral da Presidência, Humberto Costa, da Saúde, deram declarações na mesma direção.
No dia 21 de agosto, como fruto de suas duas últimas reuniões, o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES), coordenado por Tasso Genro, apresentou publicamente dez medidas voltadas para o crescimento da economia. Entre elas, a adequação da taxa de câmbio em um patamar propício ao crescimento das exportações, estímulos à aquisição de equipamentos pelas indústrias, crescimento dos investimentos públicos, hoje contingenciados. O CDES também apoia a meta do governo de chegar a 2004 com uma taxa real de juros de 8,24% e propõe reduzir de 4,25% para 4,0% o esforço fiscal do governo para o próximo ano (meta de superávit primário).
O relator do Orçamento de 2004, Jorge Bittar, indica as questões a serem renegociadas com o FMI, caso um novo acordo se faça necessário. A primeira seria a retirada do investimento das estatais da contabilidade do superávit primário. Esta reivindicação, aliás, tem sido reiterada publicamente pelo presidente do BNDES, Carlos Lessa, nos marcos do planejamento de longo prazo do país. Nos países europeus, por exemplo, é incluído como déficit público relacionado a um determinado investimento apenas a parcela do empreendimento a ser amortizada naquele ano (principal e juros) e não o valor total do projeto. Hoje, no Brasil, apenas os investimentos da Petrobrás não são incluídos no cálculo do superávit primário. Os investimentos das empresas estatais são vistos pelo governo como imprescindíveis para gerar um novo ciclo de inversões em infra-estrutura, necessária para a retomada do investimento.
A segunda questão é a da emissão dos Títulos da Dívida Agrária (TDA), fundamentais para a realização da reforma agrária. “Se são títulos de dez anos, não devo considerar grave a sua emissão para o perfil da dívida pública brasileira porque estou emitindo dívidas de longo prazo para urgências, como diminuir a tensão social no campo e desenvolver a agricultura familiar no país”, afirma o relator do Orçamento.
A terceira questão seria a mudança na resolução do Conselho Monetário Nacional, que limita o endividamento dos municípios de todo o país em 200 milhões de reais. Trata-se, na verdade, de mais um absurdo ataque ao setor público brasileiro. Por esta resolução, empréstimos em torno de 5 bilhões a 6 bilhões de reais da Caixa Econômica Federal, essenciais por exemplo, para saneamento e habitação popular, não podem ser disponibilizados mesmo para os cerca de dois mil municípios que dispõem de equilíbrio orçamentário. Jorge Bittar referiu-se a este tipo de restrições como “entulhos monetaristas”, a serem desfeitos pelo novo governo.
A importância das relações do governo brasileiro com o FMI é certamente decisiva para a América Latina. A Argentina, em particular, em uma situação de extrema fragilidade, está em uma negociação publicamente conflituosa com o FMI. O prêmio Nobel de Economia e ex-vice presidente do Banco Mundial, Joseph Stiglitz, repete aos brasileiros, em entrevista ao jornal Valor Econômicode 12 de agosto, o conselho que deu aos argentinos: “o conselho que eu dei à Argentina a um ano e meio foi: se vocês conseguirem um bom programa com o FMI, se puderem ter algum benefício, sigam em frente. Senão, é melhor não ter nenhum programa do que ter um ruim. O que a Argentina achou é que o FMI não negociaria um programa com o país e decidiu ir em frente sem o Fundo. Eles se deram muito melhor do que com o programa do FMI, revitalizaram a economia (...) Se for um programa que estrangule a economia, então, é melhor ficar sem dinheiro a ser estrangulado.”
Três erros
Um processo de negociação com o FMI exige uma visão clara da identidade e função desta instituição, de sua evolução histórica, de sua atual coesão e legitimidade internacional. Há aqui três erros fundamentais a serem evitados.
O primeiro deles seria o de pensar uma homologia ou convergência de interesses entre o Brasil e o FMI, como se fosse possível reduzir a dimensões técnicas ou de cálculo econômico os seus programas condicionadores de empréstimos. O FMI defitinivamente não é um hospital ou uma UTI, que primordialmente zela pela salvação e qualidade da saúde do paciente.
Em seu livro “A globalização e seus malefícios”, Joseph Stiglitz, um keynesiano moderado e propositor de uma “globalização com rosto humano”, demonstra que o FMI é exatamente o contrário desta imagem ao mesmo tempo interessada e ingênua. A sua tese é simples: o FMI hoje reflete os interesses e a ideologia da comunidade financeira internacional, em particular de Wall Street. Esta identidade é garantida pela composição, modos de deliberação, mecanismos de proteção ao controle público e pelos interesses privilegiados nas políticas adotadas. Escreve Stiglitz: “Como já observamos, muitas das pessoas-chave no Fundo provêem da comunidade financeira, e muitas destas pessoas, tendo servido bem a estes interesses, saíram para assumir cargos bem remunerados na comunidade financeira. Stan Fischer, o vice-diretor gerente que desempenhou tal papel durante os episódios descritos neste livro, saiu diretamente do FMI para se tornar vice-presidente do conselho do Citigroup, a vasta empresa financeira norte-americana que inclui o Citibank. Um dos presidentes do conselho do Citigroup (presidente do Comitê Executivo) foi Robert Rubin, que, como Secretário do Tesouro, desempenhou um papel importante na formulação das políticas do FMI”.
O Tesouro dos Estados Unidos, no papel de maior acionista do FMI e o único com poder de veto, tem um papel preponderante na determinação das políticas do FMI, diz Stiglitz. O jornal The Economist de 18 de setembro de 1999, reconheceu que, nos anos recentes, o FMI e o Banco Mundial foram crescentemente instrumentalizados pelo seu acionista majoritário. Durante a grave crise financeira no Leste Asiático em 1997, o Japão ofereceu cem bilhões de dólares para criar um Fundo Monetário Asiático, com o objetivo de financiar ações necessárias para estimular a economia na região. O FMI e o Tesouro dos EUA posicionaram-se fortemente contrários a tal iniciativa, que acabou prosperando de forma discreta com o apoio da China.
Stiglitz afirma, além disso, que o FMI e o Banco Mundial “têm padrões de divulgação muito menores do que os do governo em democracias como os Estados Unidos, a Suécia ou o Canadá. Eles tentam esconder relatórios importantes; é somente sua incapacidade de evitar que as informações vazem que, em geral, força a divulgação”.
Mas, sobretudo, as políticas preconizadas pelo FMI, segundo Stiglitz, visam não os interesses dos cidadãos ou das economias em seu conjunto, mas fundamentalmente os interesses dos credores. Mesmo os empréstimos de socorro, a juros mais baratos que os disponibilizados pelo mercado, visam garantir, em última instância, o pagamento das dívidas. Não são os contribuintes dos EUA que pagam a conta, responde Stiglitz à crítica dos conservadores em seu próprio país. Se uma economia nacional passar por problemas, o FMI, apoiado nos termos dos acordos assinados, é o credor preferencial, mesmo em relação a outros credores estrangeiros. E é raro que ele não receba o que emprestou.
As reviravoltas do FMI
Um segundo erro é entender a ortodoxia do FMI como composta de verdades inabaláveis, estabilizadas no tempo e dotadas de coerência lógica. O artigo de Fernando Cardim Carvalho, “The changing role and strategies of the IMF”, publicado na Revista de Economia Política, vol. 20, nº 1, janeiro/ março de 2000, é uma excelente crítica a este entendimento.
Como instituição nascida no contexto do pós-guerra, em plena hegemonia das correntes próximas ao keynesianismo, os princípios, objetivos e estratégias do FMI eram muito diversos dos atuais. O item 2 do seu estatuto, por exemplo, afirmava como um dos seus objetivos centrais: “facilitar a expansão e crescimento equilibrado do comércio internacional e, assim, contribuir para a promoção e manutenção de altos níveis de emprego e de rendimentos reais e para desenvolver os recursos produtivos de todos os membros como objetivos centrais de política econômica”.
Nos seus inícios, o FMI apenas zelava pelo equilíbrio das transações correntes entre os países. A conta de capitais dizia respeito às políticas internas dos países, que podiam acertadamente impor controles sobre o fluxo de capital em casos de pressão sobre as taxas de câmbio. De fato, nos anos sessenta, os próprios EUA e a Grã-Bretanha impuseram controles ao movimento dos capitais de curto prazo. As políticas recessivas eram recomendadas pelo FMI apenas no caso de déficits crônicos nas transações correntes de bens e serviços, de molde a pretensamente diminuir a demanda agregada e, assim, diminuir as importações e elevar as exportações do país em questão.
Neste período inicial, o foco do FMI era os países chamados desenvolvidos, os últimos programas de apoio tendo sido dirigidos à Itália e à Grã-Bretanha em 1977. Mas até meados dos anos oitenta, mesmo após a bancarrota do México e do Brasil, os programas de ajuste recomendados pelo FMI não implicavam em reformas estruturais. Estas passaram a compor as condições fundamentais impostas pelo Fundo apenas nos anos noventa, tornando-se até mais importante do que o ajuste fiscal.
Foi neste contexto nos diz Cardim, que as visões do FMI sobre “o controle de capitais sofreram uma dramática reversão. De um lado, o fundo começou a duvidar tanto da eficácia como da desejabilidade do controle de capitais; de outro lado, prestou-se mais atenção à eficiência dos setores financeiros domésticos em lidar com um volume crescente de recursos”.
Frente às últimas oito crises financeiras internacionais nos últimos anos, o discurso do FMI sofreu uma nova mudança. Trata-se de reconhecer agora a inevitabilidade da liberalização dos fluxos financeiros e procurar diminuir os seus impactos negativos. Como afirma Stiglitiz, “há hoje uma consciência dos perigos dos fluxos de capital de curto prazo e da liberalização prematura do capital e do mercado financeiro, reconhecidas de tempos em tempos até mesmo pelos oficiais seniores do FMI”.
Em busca da legitimidade perdida
Um terceiro grande erro seria conceber o FMI como uma instituição coesa, respeitada em seus diagnósticos e profundamente legitimada no cenário internacional. O Secretário de Assuntos Internacionais do Ministério da Fazenda, Otaviano Canuto, lembrou recentemente em entrevista que “o Fundo é um ativo de credibilidade para a política econômica”. Será?
A divulgação do Relatório do Independent Evaluation Office, ligado à gerência do FMI, de nome “FMI e crises recentes nas contas de capitais – Indonésia, Coréia, Brasil”, reconhecendo erros reiterados da entidade, é claramente uma tentativa de renovar a sua credibilidade após erros crassos em vários cantos do mundo onde a política do FMI teve influência. O relatório reconhece que o Fundo errou em relação à crise brasileira de 1998, ao não apontar as vulnerabilidades do Plano Real, como o alto nível de endividamento do setor público e ao não recomendar o abandono da política cambial, de super-valorização do Real, praticada pela dupla Malan/Franco. Aliás, crítica feita à época e generalizada entre os economistas brasileiros não neoliberais. Já uma análise recém divulgada pelo General Accounting Office, do Congresso norte-americano, afirma que o FMI antecipou apenas 15 das 134 recessões ocorridas em 87 países em desenvolvimento no período que vai de 1991 a 2001, o que representa 11% do total.
Um estudo do economista Walden Bello, da ONG “Focus on the global south”, “The crisis of the globalist project and the new economics of George W. Bush”, publicado em junho passado, é importante para atualizar a avaliação da ilegitimidade atual do FMI.
De acordo com Walden Bello, o projeto globalista, cujo maior trunfo foi o estabelecimento da OMC (Organização Mundial do Comércio), encontra-se em uma crise evidente. Os três momentos deflagradores desta crise teriam sido justamente a crise financeira asiática de 1997, o impasse das negociações na OMC, em Seattle em dezembro de 1999, entre os EUA e a União Européia, e a crise gigantesca do mercado de ações norte-americanas no final da gestão de Clinton. A política unilateralista de Bush só teria aprofundado estes impasses.
Escreve Walden Bello: “como apontou Robert Brenner, as políticas de Bill Clinton e do Secretário do Tesouro, Robert Rubin, punham ênfase na expansão da economia mundial como base da prosperidade da classe capitalista. Por exemplo, em meados dos anos noventa, eles puxaram a alta do dólar como meio de estimular a recuperação das economias japonesa e alemã, de tal modo que elas pudessem servir de mercado para as mercadorias e serviços dos EUA. Antes, a mais nacionalista gestão Reagan, havia empregado uma política do dólar fraco para reconquistar competitividade para a economia americana às expensas da japonesa e alemã. Com a gestão George W. Bush, voltamos às políticas econômicas, incluindo a do dólar fraco, voltadas para animar a economia norte-americana às custas de outras economias centrais e enfatizar os interesses da elite das empresas do país ao invés das elites globais do capitalismo”.
Ainda segundo Bello, a crise asiática teria minado a coesão do paradigma neoclássico na economia, com intelectuais chaves passando a criticá-lo publicamente. Entre eles, Jeffrey Sachs, antes conhecido por sua defesa de um “choque de livre mercado” na Europa do Leste no início dos anos noventa; o professor da Universidade de Columbia, Jagdish Bhagwadi, que conclamou à adoção de controles globais sobre o fluxo de capitais; e até mesmo Georges Soros, que tem condenado a ausência de controles sobre o sistema financeiro global, que o enriqueceu.
O autor conclui, após longa análise da geopolítica mundial, que o poder dos EUA deve ser “saudavelmente respeitado” mas seria um grande erro superestimá-lo.
Risco moral
O acordo atual do Brasil com o FMI é o que envolve as mais vultosas somas de empréstimo da instituição no mundo. Com a relevância geopolítica do Brasil e a projeção internacional do governo Lula, entende-se a importância que a renovação do acordo tem para a legitimidade internacional da instituição.
A primeira defesa da renovação do acordo com o FMI veio de Paulo Leme, do Banco Goldman Sachs, seguido dias depois, por Henrique Meireles, presidente do Banco Central, afirmando que, apesar de não ser uma necessidade estritamente técnica, seria recomendável a renovação.
Os argumentos de quem defende a renovação do acordo passam por dois caminhos. Um deles é o da precariedade das reservas internacionais do país, estimadas em cerca de 14 bilhões de dólares, que poderia colocar o Brasil em dificuldade diante de uma eventual conjuntura de aumento dos rendimentos dos títulos dos EUA e de deterioração do ambiente de liquidez mundial. Na verdade, há muita incerteza nestas previsões e muitas condicionalidades a serem avaliadas.
O segundo argumento, talvez mais decisivo, e que aparece reiteradamente exposto por economistas neoliberais, dentro e fora do governo, é o papel de um novo acordo com o FMI para preservar as linhas predominantes na política econômica no primeiro período do governo Lula. Como, por exemplo, no artigo de Desmond Lachman, analista residente do American Enterprise Institute, publicado no jornal Valor Econômicode 31 de julho: “um programa sucessor pactuado entre o FMI e o Brasil daria uma grande contribuição para um substancial fortalecimento da confiança dos investidores no Brasil. Um novo programa do FMI, em continuidade de apoio ao Brasil – ao proporcionar um arcabouço de política macroeconômica de médio prazo e um roteiro para o prosseguimento de reformas estruturais – poderia assegurar aos investidores ser improvável que o presidente Lula venha a avançar num rumo mais populista em termos de política econômica”.
O sentido muito político e ideológico da defesa da renovação do acordo com o FMI fica patente nas declarações de Joaquim Levy, Secretário do Tesouro Nacional, e Fábio Gambiagi, co-autor do livro “Finanças Públicas – Teoria e prática no Brasil”. O primeiro afirma que o obstáculo ao crescimento “não é o FMI mas o tamanho da nossa dívida”, como se as políticas recomendadas pelo FMI nada tivessem a ver com a evolução da dívida e seu cálculo. bio Gambiagi, autor de um livro texto neoliberal de uso generalizado nas faculdades de Economia, argumenta enfaticamente contra a proposta de retirar o investimento das estatais do acordo com o Fundo. “Isto seria um tiro no coração da política econômica”, diz ele, em uma retórica inflamada. No jornal Valor Econômicode 21 de agosto, o colunista propõe que se caminhe para uma nova coalizão nas eleições presidenciais de 2006, formada pelo PT, PSDB e PFL! Diz ele que “a luta fratricida entre os reformistas é uma estratégia suicida”.
De modo sensato, o governo Lula tem evitado dar um tom dramático e espetacular às suas relações com o FMI. A sua opção clara é a de diagnosticar o acordo nem como imprescindível nem como incondicional.
Os empréstimos do FMI são considerados mais baratos do que os das outras fontes no mercado internacional. Mas esta vantagem relativa pode ser anulada ou invertida frente aos constrangimentos impostos à política econômica.
Do ponto de vista político, um novo acordo com o FMI poderia alienar parte importante da soberania do governo em decisões chaves a maior parte de seu mandato, em anos eleitorais decisivos em que seu projeto estará em disputa. Um acordo com o FMI poderia, deste ponto de vista, congelar a transição do governo Lula a novos padrões de política econômica mais compatíveis com suas potencialidades históricas.
Mas há certamente também o risco ético-moral. De junho de 2002 até o final dos seis primeiros meses do governo Lula, segundo dados do Banco Central, o pagamento dos juros da dívida pública chegou a 142 bilhões de reais. Este valor equivale a mais de 17 vezes à soma do orçamento previsto para todos os programas sociais emergenciais em 2004. O governo Fernando Henrique sabia ser fraco com os fortes e forte, insensível, cruel e até mesmo brutal com aqueles que têm menos poder diante do mercado. Isto dizia tudo sobre a sua qualidade moral.
A vocação ético-moral do governo Lula é outra e se alimenta do cotidiano dramático, mas cheio de esperanças do povo brasileiro.
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O governo Lula, o FMI e a transição de paradigmas: comentários
Paulo Roberto de Almeida
Washington, 15 setembro 2003, 4 p.
Li com atenção o texto em questão mas tenho sérias dúvidas sobre algumas das afirmações ali contidas.
Por exemplo, em primeiro lugar, a de que se for feito um novo acordo com o FMI este não pode obstaculizar políticas de desenvolvimento. Ora, não são os acordos com o FMI (exatamente três até aqui, talvez quatro, dentro em breve: em 1998, em 2001 e em 2002) que têm introduzido constrangimentos ao processo de desenvolvimento brasileiro. Esses constrangimentos precedem de muito os acordos com o FMI e têm sido uma constante desde os anos 80, pelo menos. Pode-se pensar, pela afirmação, que a ausência desses acordos teria sido uma situação melhor, de "liberdade" para crescer, do que sua efetivação, a pedido do Brasil. O País não é certamente obrigado a pedir ajuda ao FMI, mas se o faz, deve haver alguma razão, e ela não se prende à necessidade de crescer, mas sim a de evitar um problema maior. Não se deve olvidar que os acordos foram todos preventivos, evitando situações de default e moratória, como as que enfrenta hoje a Argentina. Esta teria sido uma melhor solução para o Brasil? Não me parece...
Parece-me, por outro lado, absolutamente caótico, para a imagem de seriedade do governo, esta situação descrita no próprio artigo com base em artigos de imprensa: “se houver a necessidade de um acordo – é uma discussão não feita ainda – uma série de questões novas podem ser colocadas. O jornal O Globonoticiou no dia 13 de agosto que, se depender dos ministros da Casa Civil, José Dirceu, e do Planejamento, Guido Mantega, em outubro o governo redesenhará seu acordo com o FMI. No dia seguinte, os ministros Luiz Dulci, da Secretaria Geral da Presidência, Humberto Costa, da Saúde, deram declarações na mesma direção.”
Isto, sem mencionar declarações de meia dúzia de parlamentares, da esquerda, da "direita" e do centro do PT, alem de outros lideres políticos de todos os quadrantes possíveis. Não creio que uma discussão pública sobre como deve ser ou não ser o futuro acordo com o FMI agregue algo em termos de esclarecimento público ou de coerência nas posições do governo. Deveria haver uma opinião de governo sobre assunto tão importante e não "achismos" individuais de pessoas não envolvidas com a administração financeira do País. A cacofonia e a dispersão de posições deveriam ser apontadas na matéria em questão como fatores de debilitamento, não de fortalecimento, da postura negociadora do Brasil.
Que o ministro encarregado do CDES, por exemplo, fique dizendo qual deve ser o patamar de juros, de superávit e de cambio, me soa totalmente surrealista, contribuindo mais uma vez para o que o PT quer mais evitar: volatilidade. Esta, ao contrário do que pensam alguns, não é um alienígena que ataca o Brasil desde o exterior, mas é criada basicamente pelas políticas e práticas internas, made in Brazil...
Mais surrealista ainda é o relator do Orçamento indicar, ele próprio, quais são as questões que devem ser renegociadas com o FMI, que ele mesmo aponta como sendo: “retirada do investimento das estatais da contabilidade do superávit primário”; “emissão dos Títulos da Dívida Agrária”; “mudança na resolução do Conselho Monetário Nacional, que limita o endividamento dos municípios”. Propriamente inacreditável. Por acaso o relator do orçamento é responsável pelas negociações com o Fundo, é o guardião da moeda? Creio que ele tem por dever, em primeiro lugar, de zelar pelo equilíbrio do orçamento que sair da Câmara, mas me parece pouco preparado para estabelecer condicionalidades sobre as quais ele não tem o mínimo envolvimento. Ele contribui assim para o aumento da volatilidade...
O conselho de Stiglitz aos argentinos me parece totalmente dispensável ou então ridículo: ele não é o responsável pelas contas argentinas e o melhor que teria a fazer, como economista responsável, seria ficar quieto, pois a decisão compete absolutamente aos argentinos...
O autor da “teoria dos três erros” se apóia em Stiglitz para dizer que o FMI não é um hospital. Talvez não, mas o Brasil, ou a Argentina, poderiam então tentar viver sem essa UTI, o que significa viver com meios próprios e sem esse emprestador de última instância que constitui o FMI. Que ele reflita a visão da chamada comunidade financeira internacional é a mais absoluta verdade, mas a questão é a de saber se o Brasil pretende viver à margem dessa comunidade. Pode viver sem depender, o que depende inteiramente dele, não dessa mal-vista comunidade.
Fundos regionais, como reconhecem outros economistas tão ou mais importantes do que Stiglitz, contribuem para o que se chama de “moral hazard”, ao aumentar a exposição dos mesmos paises que normalmente iriam parar na UTI do FMI. Que este pratique confidencialidade, não é de se estranhar, na medida em que lida com dados sensíveis, comparáveis ao cadastro de um cliente privado. Ou o autor do artigo gostaria, por exemplo, que seus dados bancários e de patrimônio estivessem expostos ao conhecimento público em quaisquer circunstâncias?
Compreende-se a visão estreita do FMI em favor dos credores: condenável moralmente, mas pode-se perguntar: em caso de necessidade um país vai tomar dinheiro dos “cidadãos ou das economias em seu conjunto”, ou será que o único dinheiro disponível não é, basicamente, os dos “credores”? E estes vão pensar nos interesses dos cidadãos e da economia em geral ou nos seus próprios interesses? A indignação moral pode ser bonita como posição pública, mas resolve muito poucas dificuldades concretas de paises desequilibrados. E, ao contrario do que diz a matéria ("E é raro que ele não receba o que emprestou"), inadimplências e renegociações são muito mais freqüentes do que se pensa...
A ortodoxia do FMI não é melhor ou pior do que qualquer outra ortodoxia: pode funcionar em certas circunstâncias e não funcionar em outras. O duro é ter de depender de qualquer ortodoxia, mas ninguém é obrigado a seguir a do FMI ou a de qualquer outro parceiro externo: basta ter independência e não precisar de credito externo.
O artigo de Fernando Carvalho retrata uma realidade keynesiana que se tornou inaplicável, anacrônica e equivocada. O FMI, em seu início, meio ou fim, nunca zelou pelo “equilíbrio das transações correntes entre os países”, mas tão simplesmente pela liberalização dos pagamentos para sustentar essas transações correntes, deixando a critério dos países seus meios de financiamento (IDE, empréstimos, rendas do capital, etc). O FMI sempre interveio, antes, durante e depois desse mundo keynesiano, quando algum país em desequilíbrio necessitava de uma transfusão temporária de liquidez, apenas e tão somente isso (ele tinha o papel de guardião cambial também, mas isso acabou em 1971-73).
Ele nunca teve foco em países desenvolvidos ou em desenvolvimento: ele está apenas a serviço de seus membros, sejam estes pobres, ricos ou remediados. Não se deve confundir situações conjunturais com mandato preferencial...
O FMI nunca sofreu reversão nenhuma quanto ao controle de capitais, pois que ele nunca teve mandato para cuidar dessa área. Quem pressionou o FMI a entrar na área foram os paises desenvolvidos, como os EUA e alguns europeus, contra a opinião de outros desenvolvidos e outros europeus. A crise asiática se encarregou de enterrar essas propostas, que não são absurdas em si, apenas talvez prematuras...
Quanto ao terceiro erro, parece que se confunde duas coisas: consistência ou inconsistência das receitas do FMI e o fato de ele ser ou não um ativo de credibilidade para o Brasil. Ele pode ser, ou não, uma ou outra coisa, mas não se pode negar que o mercado o vê como um ativo, por mais inconsistentes que possam ser suas recomendações... Às vezes a versão é mais importante do que o fato...
Contrariamente ao que se diz na matéria, o FMI recomendou SIM a desvalorização cambial para o Brasil (e para a Argentina), apenas não pretendeu ser impositivo demais com esses países, que insistiram em praticar a estabilidade cambial. E a recomendação não foi feita apenas por economistas não-neoliberais: posso apontar pelo menos meia dúzia de economistas liberais, dentro e fora do Brasil, que criticaram a política cambial e recomendaram desvalorização.
Que um economista pouco conhecido por sua obra teórica (alguma para ser citada?) diga que FMI e OMC carecem de legitimidade, não confere legitimidade a esse tipo de afirmação: ela é tão válida como a afirmação contrária, a menos que venha sustentada em argumentos sólidos e provas empíricas. O FMI tem hoje 189 membros e a OMC 148, com mais entrantes a cada vez. Isso por acaso faz delas entidades pouco legitimas?
O economista Bello não quer a prosperidade da classe capitalista? Talvez ele devesse indicar uma classe socialista como alternativa? Ou ele está pensando nos simples cidadãos das economias capitalistas? Isso os converte em anti-capitalistas?
Belas palavras: "a crise asiática teria minado a coesão do paradigma neoclássico na economia, com intelectuais chaves passando a criticá-lo publicamente". Sim, e a partir daí? O economista Bello pretende que os paises asiáticos tenham passado a adotar um paradigma oposto e alternativo? Qual seria ele?
Por fim, apontar as fragilidades das reservas brasileiras, como o faz Paulo Leme, aparece como algo duvidoso, a ser confirmado na prática? Quanto à preservação das políticas econômicas predominantes, trata-se de uma inferência razoável a ser feita, a menos que se aponte alternativa melhor, o que me parece não foi feito na matéria em questão.
O que me parece frágil é a simples classificação como neoliberais de dois tecnocratas típicos do Estado (Levy e Giambiagi) sem oferecer uma argumentação mais consistente para contradizer suas afirmações, que se dirigem não a rótulos, ou slogans, mas a situações concretas: fragilidade das contas publicas e do balanço de pagamentos.
Como afirmado ao início, o governo pode escapar aos constrangimentos de um acordo com o Fundo, simplesmente não fazendo. Se escolher fazer, foi porque chegou à conclusão de que seria melhor, não com base em apreciações subjetivas de duvidosa qualidade política, mas com base em uma análise objetiva da situação econômica. Os governos em geral, diferentemente de economistas acadêmicos, são muito pouco, ou nada, ideológicos, e se guiam mais pelo senso pratico...
Quanto ao risco "ético-moral", ele se prende a uma situação muito concreta: se o governo pagou “x” de juros, foi porque havia “y” de dívidas, do contrário estaria sendo ingênuo ou inconseqüente. Mas, se o autor da matéria tem uma solução melhor para a situação da divida pública, esta sendo muito ingênuo em não expô-la, para que possa ser debatida ou até adotada pelo governo. O que fica parecendo inconseqüência é criticar sem propor uma solução alternativa.
Estas são as minhas observações objetivas sobre a matéria em questão.
Paulo Roberto de Almeida