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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

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quarta-feira, 19 de março de 2025

Quem aceitará um ‘Acordo de Mar-a-Lago’? - Martin Wolf (Financial Times, Valor Econômico)

Quem aceitará um ‘Acordo de Mar-a-Lago’?

Martin Wolf*

Valor Econômico, quarta-feira, 19 de março de 2025


O que está sendo proposto é a recriação de um sistema global de gestão das taxas de câmbio

A política comercial caótica de Donald Trump só pode levar ao caos econômico. Então, será que o governo Trump pode se deparar com algo mais coerente e menos prejudicial, e ainda assim atender aos objetivos protecionistas do presidente? Talvez. Alguns membros, incluindo Scott Bessent, secretário do Tesouro, e Stephen Miran, presidente do Conselho de Assessores Econômicos, acreditam que sim.

Se alguém quiser entender essa abordagem mais sofisticada, deve ler “A User’s Guide to Restructuring the Global Trading”, publicado em novembro de 2024. O autor afirma que “este ensaio não é uma defesa de políticas”. Mas, se parece um pato, é um pato. Vindo de um homem em sua posição atual, isso dever ser interpretado como uma defesa de políticas.

Apoiando o argumento de Miran está uma proposta feita pelo economista belga Robert Triffin no começo dos anos 1960. Triffin disse que a demanda crescente por dólares enquanto ativo de reserva só poderia ser suprida por déficits em conta corrente persistentes dos EUA. Isso, por sua vez, significava que o dólar estava persistentemente valorizado em relação às necessidades de equilíbrio na balança de pagamentos.

Com o tempo, ele argumentou, esse desempenho comercial fraco minaria a confiança no preço fixo do dólar em relação ao ouro. E assim, de fato, ocorreu. Em agosto de 1971, em resposta a uma corrida ao dólar, o presidente Richard Nixon suspendeu a conversibilidade do ouro. Após duras negociações, um acordo foi firmado sobre novos conjuntos de paridades do dólar em relação a outras grandes moedas. Mas isso não durou. Logo, essas novas paridades colapsaram. O velho sistema de Bretton Woods de taxas de câmbio fixas, mas ajustáveis, foi substituído pelas taxas de câmbio flutuantes de hoje.

Miran aplica essa perspectiva ao atual dilema dos EUA. Por isso, é preciso ver o que aconteceu nas décadas de 1960 e 1970 como um paralelo mais apropriado para o que está sendo discutido hoje, do que os acordos do Plaza e do Louvre da década de 1980. O último visava gerenciar um regime de taxas de câmbio flutuantes em um momento de desequilíbrio entre o dólar e outras moedas, especialmente o iene japonês e o marco alemão. O que está sendo proposto agora é a recriação de um sistema global de gestão das taxas de câmbio.

A justificativa para isso, segundo Miran, é que, assim como na década de 1960, o desejo da maioria dos outros países de manter o dólar como moeda de reserva está elevando seu valor, abrindo assim em enorme déficit em conta corrente. Isso pressiona a produção de bens comercializáveis, especialmente os manufaturados.

Isso cria um dilema para os EUA entre as possibilidades de financiamento mais barato e alavancagem internacional, de um lado, e os custos sociais e de segurança fundamental de um setor manufatureiro mais fraco, do outro. No entanto, Trump quer proteger a indústria nacional e manter o papel global do dólar. Assim, a política precisa atingir os dois objetivos.

Uma possibilidade pode ser uma ação unilateral dos EUA para enfraquecer o dólar. Uma opção aqui seria um aperto fiscal combinado com uma flexibilização monetária. Mas isso atrapalharia o desejo de Trump de estender os cortes de impostos concedidos por ele em 2017. Outra possibilidade seria forçar o Federal Reserve (Fed) a desvalorizar o dólar. Mas isso poderia ter efeitos devastadores sobre a inflação e o dólar, como aconteceu na década de 1970.

Uma outra possibilidade seriam as tarifas sozinhas. Mas, se outras condições forem mantidas, isso levaria a uma valorização do dólar, o que prejudicaria o setor exportador americano. Desse modo, diz Miran, as tarifas também deveriam ser usadas como arma nas negociações para um acordo global ou, se for considerado necessário, serem complementadas por tal acordo.

O desejo da maioria dos outros países de manter o dólar como moeda de reserva está elevando seu valor, abrindo assim em enorme déficit em conta corrente. Isso pressiona a produção de bens comercializáveis, especialmente os manufaturados e cria um dilema para os EUA

Assim, o objetivo de um setor industrial mais forte, a ser entregue por uma combinação de tarifas e um dólar mais fraco, precisa da cooperação global. Minha colega Gillian Tett descreveu os possíveis detalhes do que seria um “Acordo de Mar-a-Lago”.

Ele tem dois aspectos principais. O aspecto econômico é liberar as restrições econômicas discutidas acima. A maneira de fazer isso, sugere Miran, é transformar o endividamento de curto prazo em empréstimos de prazos ultralongos, “convencendo” os detentores estrangeiros de títulos do Tesouro dos EUA a trocar suas posições por títulos perpétuos em dólar. Isso daria aos EUA mais margem para buscar sua combinação desejada de políticas fiscal e monetária frouxas. O aspecto político é apontar que aceitar tal acordo seria o preço para ser visto como amigo. Caso contrário, um país seria visto como inimigo, ou no máximo, flutuando entre as duas posições. Em um sentido preciso, isso poderia ser visto como um “esquema de proteção”.

Esta proposta levanta quatro questões. A primeira é se a análise de Miran sobre as relações entre o papel do dólar como moeda de reserva, o déficit crônico em conta corrente dos EUA e a fraqueza do emprego e da produção industrial está correta. Deve-se duvidar dela, porque os EUA estão longe de ser o único país de alta renda com queda na participação do emprego na manufatura.

A segunda questão é se o novo acordo monetário proposto de fato permitiria aos EUA combinar a emissão de uma moeda de reserva com seus objetivos setoriais de forma mais eficaz do que qualquer outra alternativa plausível.

A terceira, é se há alguma probabilidade de acordo com Trump sobre o conjunto complexo de objetivos e instrumentos dessa proposta.

A última questão é se Trump é capaz de manter qualquer acordo firmado por ele. Afinal de contas, ele abandonou a Ucrânia, colocou em dúvida o compromisso com a Otan e atacou o Canadá.

Os últimos dois pontos são, evidentemente, os mais importantes. Seu governo é capaz de fazer um acordo em que qualquer pessoa ou país sensato possa confiar? Acho que não. No entanto, a análise dos aspectos econômicos também é importante. Pretendo abordar isso na próxima semana. 

 

*Martin Wolf é o principal comentarista econômico do Financial Times.

segunda-feira, 10 de março de 2025

Mercosul: o último tango em Washington? - Assis Moreira (Valor Econômico)

 Acordo de livre comércio Argentina-EUA? Esqueçam!

Acordo de livre comércio Mercosul-EUA? Impossível!

Acordo de livre comércio Mercosul-China? Inimaginável!

Não vai acontecer NADA, como aliás já ocorre desde o início do século. (PRA)

Mercosul: o último tango em Washington?
Assis Moreira
Valor Econômico, segunda-feira, 10 de março de 2025
Países do bloco examinam negociações em curso, enquanto Milei visa acordo com Donald Trump

A partir desta semana começam efetivamente as reuniões da presidência rotativa da Argentina no Mercosul. Será a ocasião para os parceiros tentarem identificar como o governo de Javier Milei planeja realmente atuar à frente do bloco.
Milei insiste que trabalha intensamente em um projeto de acordo comercial com os EUA, aproveitando a afinidade ideológica com Donald Trump. De seu lado, Trump disse estar aberto à possibilidade de avançar num tratado comercial com o ‘grande lider’ Milei.
Por enquanto, o que há é retórica e nada de concreto. Entre sócios do Mercosul, alguns interlocutores acreditam que Milei vai respeitar as regras do Mercosul, sob pressão de parte de seu setor privado. Outros apontam para sua imprevisibilidade e o veem capaz de colocar em risco o mercado vizinho para produtos argentinos.
Milei fala algo diferente a cada momento. Já acenou que tentaria um acordo 4+1 (Argentina, Brasil, Paraguai, Uruguai e a Bolívia) com os EUA. Depois, se não desse, a Argentina iria fazer a negociação sozinha, o que é ilegal, viola as regras do Mercosul. O bloco estabelece que seus países membros devem negociar acordos comerciais de maneira conjunta.
No Congresso argentino, Milei disse que no caso de não poder obter flexibilização das condições para acordos, está disposto a sair do Mercosul, reclamando que o bloco ‘só beneficiou os industriais brasileiros em detrimento da economia argentina’.
Milei poderá abrir uma caixa de Pandora. Se sair do Mercosul, a situação estará clara: haverá um período de dois anos no qual a Argentina continuará sob direitos e obrigações do bloco. Depois, sofrerá tarifas dos parceiros, assim como levantará barreiras aos ex-sócios, causando destruição de riqueza nos dois lados.
Já no cenário em que a Argentina negociar com os EUA, mas querendo permanecer no Mercosul, apesar da mega perfuração das regras básicas, a reação do bloco não é automática. Será preciso que os parceiros abram procedimento para avaliar a violação argentina e os estragos previsíveis.
Certo mesmo é que o presidente da Argentina pode dar um golpe na já dificil integração econômica na América do Sul, assim como Trump vem fazendo na América do Norte na imposição de choque tarifário contra os vizinhos e sócios Canadá e México com argumentos ‘idiotas’.
No Mercosul, como no Nafta, o setor automotivo seria um dos mais afetados. Cerca de 28% das exportações argentinas para o Brasil no ano passado foram veículos em geral. Por sua vez, 22% das exportações brasileiras para a Argentina foram veículos e 9,7% partes e acessórios.
Não é para os EUA que a Argentina passaria a exportar carros que não poderia vender para o Brasil. Um acordo, modesto, poderia envolver vários produtos industriais suspensos hoje do Sistema Geral de Preferências (SGP americano), mas sem valor expressivo, na avaliação de fontes.
Esta semana, os países do bloco oficialmente passarão em revista negociações que estão realmente em andamento.
A União Europeia informou que a revisão legal do acordo com o Mercosul está quase concluída. Logo começarão as traduções dos tetos. Depois, em poucos meses poderia tentar ratificar o acordo para entrada em vigor num cenário geopolítico completamente diferente. Os europeus parecem ainda mais desesperada para implementar o acordo, que dará boa vantagem para as empresas europeias no Mercosul (tarifa menor), na competição com a China e os EUA.
Também há possibilidade de ainda na presidência argentina até julho o Mercosul concluir as negociações de acordo de livre comércio com a Associação Europeia de Livre Comércio (Efta, na sigla em inglês), formada por Suíça, Noruega, Islândia e Liechtenstein.
Para os países do Efta, o acordo é importante para assegurar pelo menos as mesmas preferências que serão obtidas pelas empresas dos países da EU. Isso e dá uma evidente vantagem competitiva nos negócios com um mercado de mais de 260 milhões de habitantes como é o caso do Mercosul. Os países do Efta são pequenos, mas muito ricos.
A China continua insistindo em ter um acordo comercial com o Mercosul. Mas o bloco reage com enorme prudência em relação aos asiáticos em geral. O setor privado considera arriscado e complicado movimento nessa direção, especialmente no contexto de política industrial. No Brasil, há segmentos que consideram que não dá para baixar a guarda para os asiáticos, ainda mais quando todo mundo está com um pé atrás em relação a abertura de mercado.

quarta-feira, 5 de março de 2025

Regimes políticos e economia - Tiago Cavalcanti (Valor Econômico)

Regimes políticos e economia

Tiago Cavalcanti

Valor Econômico,  quarta-feira, 5 de março de 2025


Pesquisa dois dias após o 8 de janeiro registra que 36,8% das pessoas apoiavam um golpe de Estado no Brasil

 

A rápida e desafiadora transformação econômica e social da China sob um regime político centralizado tem se dado em paralelo à ascensão de políticos “anti-establishment”, que se colocam acima das instituições, nos EUA e em países da Europa. Com isso, avança o fortalecimento da visão de que o modelo político predominante no Ocidente representa um obstáculo para o desenvolvimento econômico.

Na essência deste argumento, está a conjectura de que a chamada democracia liberal impõe processos decisórios lentos devido à necessidade de maiorias e convergências institucionais, dificultando a implementação de reformas estruturais. Além disso, políticos eleitos podem priorizar medidas populistas de curto prazo em vez de políticas econômicas sustentáveis com retornos apenas no longo prazo. Em contraste, regimes baseados no centralismo do poder têm melhores condições de agir rapidamente, promovendo transformações aceleradas e investimentos em projetos com altos retornos no curto e longo prazo.

Por outro lado, existe a hipótese de que a democracia liberal, modelo dominante na ordem institucional dos Estados Unidos e dos países europeus a partir da segunda metade do século XX, seja um fator de grande peso positivo para o desenvolvimento econômico. Isto porque gera estabilidade institucional, segurança jurídica e transparência, fatores essenciais para viabilizar investimentos privados. De acordo com alguns pesquisadores, este modelo reduziria riscos de decisões arbitrárias, favorecendo políticas econômicas mais sustentáveis. Ademais, ao buscar maior participação popular, incentivaria investimentos em educação, saúde e infraestrutura, pilares do desenvolvimento de um país. Neste modelo, a liberdade de imprensa tem papel fundamental ao ajudar na fiscalização da sociedade, reduzindo a corrupção e aumentando a eficiência do setor público.

Se o voto universal estivesse em vigor no início do seculo XX, a extrema pobreza estaria extinta em 1960

É importante ressalvar que a democracia liberal nos EUA e na Europa é relativamente um sistema político jovem, a exemplo de que apenas a partir de 1965 os negros americanos ganharam efetivamente o direito ao voto e o direito ao sufrágio feminino na Suíça foi permitido apenas em 1971. No entanto, o que a evidência empírica mostra a respeito dos impactos do modelo institucional político do Ocidente sobre o desenvolvimento dos países? Seria o caso da China uma exceção?

Em um influente artigo de 2019, publicado no Journal of Political Economy, Daron Acemoglu, Prêmio Nobel de Economia do ano passado, com colaboradores, investiga, em uma amostra de 175 países, exatamente como a democracia liberal influenciou o progresso econômico dos países.

Usando diferentes técnicas estatísticas, os economistas estimam o impacto sobre a economia da expansão deste modelo ao redor do mundo entre 1960 e 2010. As estimações corroboram a hipótese de que a democracia liberal impulsionou positivamente o desenvolvimento econômico dos países. Os resultados indicam que, na média, um país que fez a transição para este modelo, no período analisado, alcançou uma renda per capita aproximadamente 20% maior no longo prazo do que um país que permanece sob um regime centralizado.

Os pesquisadores mostram ainda que a democracia liberal contribui para o crescimento ao aumentar o investimento, incentivar reformas econômicas estruturais, melhorar a educação, a saúde e reduzir a instabilidade social. Portanto, os resultados corroboram a hipótese de que o modelo ocidental prevalecente proporcionou estabilidade institucional e ajudou em reformas que incentivaram a provisão de bens públicos.

E quais são as lições para o Brasil? Segundo a Polícia Federal (PF), há fortes indícios de que o ex-presidente Jair Bolsonaro orquestrou um golpe de Estado após a eleição do presidente Lula em 2022. A investigação da PF tem provas de que reuniões foram realizadas no Palácio do Planalto e na residência oficial da Presidência para discutir estratégias para reverter o resultado da eleição de 2022. Conversas gravadas e depoimentos de comandantes do Exército estão sendo utilizados como provas contra o ex-presidente e alguns de seus aliados.

Sem entrar no mérito da operação “Hora da Verdade” da PF, uma pesquisa recente do instituto AtlasIntel mostrou que 36,3% dos brasileiros eram favoráveis a um golpe de Estado após o segundo turno das eleições presidenciais de 2022, quando o presidente Lula derrotou Jair Bolsonaro. Esse número é parecido com a entrevista de 10 de janeiro de 2023, dois dias após a invasão e depredação da sede dos Três Poderes em Brasília. Nesta entrevista de 2023, 36,8% das pessoas apoiavam um golpe de Estado no Brasil.

Em um trabalho recente que realizei com Pedro Cavalcanti Ferreira, Filipe Fiedler, Luciene Pereira e Cezar Santos, investigamos, por meio de um modelo econômico em que os indivíduos votam na distribuição dos gastos públicos em educação nos diferentes níveis de ensino, como a restrição ao voto influenciou profundamente a nossa história. Mostramos que, se o sufrágio universal tivesse sido implementado no início do século XX, em vez do final dos anos 1980, teríamos investido uma parcela significativamente maior dos nossos gastos educacionais no ensino fundamental e médio, em detrimento do ensino superior. Nesse caso, a extrema pobreza estaria praticamente extinta em 1960, enquanto, ainda hoje, mais de 20% da população do país vive em condições de extrema pobreza.

Alguns pensadores argumentam que a democracia liberal tem um valor intrínseco. Alexis de Tocqueville, influente no pensamento liberal americano, afirmou no século XIX que a liberdade individual e a igualdade de condições na política são princípios fundamentais deste modelo. A liberdade de expressão e a descentralização administrativa são, para o pensador francês, essenciais para preservar a institucionalidade e garantir a prosperidade social e econômica a longo prazo. O trabalho empírico de Acemoglu com coautores sustenta fortemente esta hipótese.

Amartya Sen, prêmio Nobel de Economia de 1998, afirmou, em artigo de 1999, que, em um futuro distante, as pessoas terão dificuldade em não considerar a democracia liberal como a forma de governança preeminentemente aceitável. Dado o percentual de apoio ao golpe de Estado no Brasil, parece que a previsão do Prêmio Nobel de Economia de 1998 ainda está longe de ser concretizada.

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025

Proposta do Brasil no Brics sobre pagamentos - Assis Moreira (Valor Econômico)

Proposta do Brasil no Brics sobre pagamentos

Assis Moreira

 

Valor Econômico, 13/02/2025


Reorientação de exportações para países geopoliticamente alinhados cresce no comércio global

 

O Brasil, na presidência do Brics, enviou aos membros do grupo nesta semana uma proposta visando facilitar o pagamento das transações do comércio intrabloco - e que evita falar diretamente de desdolarização.

É verdade que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva por mais de uma vez disse “sonhar” com uma moeda comum para o Brics e questionou por que “todos os países precisam fazer seu comércio lastreado no dólar, por que não podemos fazer comércio lastreado na nossa moeda?”.

O tema foi capturado por Donald Trump na sua volta à Casa Branca. Em meio à disrupção global que provoca, ele tem repetido ameaças de impor tarifas de 100% contra países do Brics se tentarem criar uma moeda comum como alternativa ao dólar. Para Trump, “não há nenhuma chance de que o Brics substitua o dólar americano no comércio internacional, e qualquer país que tentar deve dizer adeus aos Estados Unidos”. Ele já chegou a incluir a Espanha como membro do grupo.

O Brics quer aprofundar a discussão sobre como acelerar a facilitação de suas trocas e reduzir riscos. Mas, de fato, a proposta que o Brasil mandou para os países-membros foca basicamente em facilitar pagamentos “de forma eficiente e segura”, amparado por novas tecnologias, como blockchain e outras, que reduzam os custos de transação comerciais. Esse sistema permitiria transações direitas em moedas locais, o que também é uma forma de diminuir custos.

A proposta não envolve moeda comum, como fala Trump, insiste uma fonte no Brics. Não é nem sequer estabelecer um sistema com garantias embutidas como o Convênio de Pagamentos e Créditos Recíprocos (CCR) da Associação Latino-Americana de Integração (Aladi), dado como exemplo em alguns círculos de Brasília.

O Banco Central brasileiro na verdade se retirou em 2019 do CCR, um sistema internacional de pagamentos pelo qual são liquidadas operações de comércio internacional pelos bancos centrais de 11 países-membros. O BC considerou que o mecanismo tinha ineficiências que faziam com que não atendesse mais aos interesses do país, perdera importância para a liquidação das operações no comércio entre os países-membros, transferia riscos do setor privado para o setor público e não estava em linha com as modernas práticas de sistemas de pagamentos internacionais, ao concentrar risco de crédito em uma instituição e diferir pagamentos por até quatro meses.

Ativo na atual discussão no Brics, o BC certamente não tem nenhuma saudade do CCR, pelo menos não com a governança atual.

Em meio às turbulências comerciais deflagradas por Trump, o ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, destacou na semana passada que o Brasil “está empenhado em desenvolver instrumentos de pagamento locais que facilitem o comércio e o investimento intrabloco”, ressalvando que o Brics “não tem uma vertente negativa: ele trabalha a favor da cooperação e do desenvolvimento de seus membros - e não contra quem quer que seja”.

A China, o peso pesado do Brics, sabe que mudança da ordem monetária não é para agora. No momento, está mais focada em desvalorizar sua moeda para continuar competitiva e para não perder muito na barganha que terá de fazer com Trump.

Diferentes fontes observam que as autoridades chinesas são muito conservadoras em matéria financeira. Preferem que a desdolarização “venha por gravidade”, e deixa que os outros falem a favor. Rússia e Irã são os mais engajados em buscar rapidamente alternativas ao dólar americano, pelas sanções que sofrem impostas por Washington.

O economista Dmitry Dolgin, autor de um relatório sobre Brics e desdolarização publicado pelo banco holandês ING, vê coerência na posição da China, como maior detentor de reservas internacionais de moeda estrangeira no Brics+, especialmente considerando Hong Kong e Macau, que têm bancos centrais separados.

As reservas consolidadas chinesas totalizam cerca de US$ 4 trilhões e a estrutura exata de câmbio é desconhecida. Mas é muito provável que o dólar americano desempenhe um papel importante nesse montante e, pelo seu tamanho, seria difícil encontrar alternativa com liquidez semelhante. Outro argumento contra a desdolarização para a China é a participação ainda alta dos EUA no seu comércio internacional.

Outros membros do Brics+ podem estar em posição mais flexível, pois suas reservas são menores e eles têm opção de usar o renmimbi em suas reservas internacionais, como faz a Rússia, enquanto a China obviamente não pode usar sua própria moeda como ativo internacional, nota ele.

Para o economista, que monitora de perto o Brics, uma agenda de desdolarização no bloco tem maior potencial de ser levada adiante pelas reservas cambiais e no comércio de combustíveis (o grupo é responsável por cerca da metade da produção energética do mundo).

O Brics+ controla 42% das reservas cambiais dos bancos centrais em geral, “provavelmente contribuindo para o processo de desdolarização global”. E aponta o ouro como a maior alternativa potencial ao dólar para o bloco. Apesar da compra ativa pelo Brics+ nos últimos tempos, o metal ainda representa somente 10% das reservas de seus bancos centrais, comparado a 20% na média global - ou seja, os BCs do Brics+ têm espaço para acumular mais ouro em vez de dólares.

Os trabalhos do Brics tomam uma dimensão particular neste ano, em meio à onda de choque provocada por Trump. A geopolítica muda aceleradamente o comércio internacional, com mais reorientação de exportações para países geopoliticamente alinhados.


quarta-feira, 22 de janeiro de 2025

Comércio China-EUA: Pequim é ágil para driblar tarifas - Tej Parikh Valor Econômico

 Pequim é ágil para driblar tarifas

Esforços protecionistas de Trump podem causar menos danos do que se imagina

Tej Parikh

Valor Econômico, 21/01/2025


Bem-vindo de volta. Donald Trump foi empossado como presidente dos Estados

Unidos ontem. Que melhor momento do que este para agitar os ânimos com uma

visão contrária aos planos de sua equipe para pressionar a China no comércio

exterior, indústria e tecnologia?

De forma compreensível, muitos entendem que as tarifas e restrições adicionais

sobre a China serão ruins para sua economia. Os esforços protecionistas de

Trump, contudo, poderiam causar menos dano do que se imagina. Na verdade, a

indústria chinesa pode ser capaz de prosperar apesar deles (ou mesmo por causa

deles). Aqui estão os contra-argumentos.

Comecemos com o impacto econômico direto e imediato das tarifas. A China

diversificou-se e passou a depender menos do mercado americano desde o

primeiro mandato de Trump. Hoje, a demanda total dos EUA por produtos

chineses representa cerca de 2,8% do Produto Interno Bruto (PIB) da China, de

acordo com a firma de análises Capital Economics. Seus cálculos indicam que

um aumento na tarifa efetiva de cerca de 15% para 60% (no cenário extremo) -

como ameaçado por Trump - poderia fazer a economia chinesa encolher apenas

1%. Outros economistas têm conclusões semelhantes.

Esse impacto talvez seja menor do que muitos imaginavam e, além disso, não leva

em conta outros fatores neutralizadores.

A China pode desviar exportações para outros destinos onde a demanda está em

alta. Na esteira das tarifas aplicadas no primeiro mandato de Trump, as

exportações de Pequim para mercados emergentes de rápido crescimento

decolaram. A demanda por produtos chineses no mundo desenvolvido, excluindo

os EUA, também aumentou. Outros países - em particular, os da Iniciativa do

Cinturão e da Rota, também conhecida como Nova Rota da Seda, com os quais a

China passou décadas fortalecendo laços econômicos - desejarão manter o

comércio de baixo custo com Pequim.

Além disso, os produtos chineses ainda podem chegar aos EUA via reexportação -

envio por meio de um terceiro país - permitindo aos produtores driblarem as

tarifas. Trump já sabe disso e tentará fiscalizar países como México e Vietnã. Isso,

porém, não será fácil nem rápido. As empresas chinesas já vêm se protegendo

contra esse risco ao montar fábricas em outros países.

O yuan provavelmente também se desvalorizará quando as tarifas forem

anunciadas, mantendo as exportações chinesas competitivas. No primeiro

mandato de Trump, a desvalorização do yuan compensou o impacto das tarifas.

Levando em conta todos os fatores, o impacto econômico direto pode ser bem

inferior a 1 %.

As pressões no custo de vida e a urgência das mudanças climáticas fazem com

que a lógica econômica de importar produtos baratos da China (pelo menos fora

dos EUA) continue forte.

A competitividade cie preços da China vem de sua especialização na obtenção de

suprimentos, refino e produção de bens alinhados aos setores globais de alto

crescimento. Uma estratégia industrial de décadas guiada pelo Estado deu à

China um domínio vertical nas cadeias de suprimentos para veículos elétricos,

baterias e fontes de energia renováveis, desde as commodities de terras-raras até

os produtos acabados.

O país fabrica mais de 30% da produção industrial mundial (superando a soma

dos nove maiores produtores seguintes). A China possui vantagens comparativas

em uma ampla gama de produtos: não apenas nos tradicionais brinquedos e

roupas "Made in China", mas também em produtos complexos de alta tecnologia.

De fato, os esforços para restringir o poderio industrial da China costumam

subestimar seu grau de domínio e a capacidade de Pequim de usar o aparato

estatal para respaldar seus produtores. O economista chinês Lisheng Wang, do

Goldman Sachs, sinalizou que "as contínuas políticas de apoio à indústria de alta

tecnologia" e "o afrouxamento fiscal" ajudariam a suavizar o impacto das tarifas.

Pequim poderia usar o crescente protecionismo dos EUA como uma oportunidade

para melhorar relações comerciais com aliados frustrados dos EUA. Também

poderia retaliar vetando o acesso a materiais brutos vitais. A China detém 36%

das reservas mundiais de terras-raras, mas controla 70% da oferta mundial (daí a

obsessão de Trump com a Groenlândia).

Por fim, embora o Ocidente tenha vantagens na inteligência artificial (IA),

semicondutores e computação quântica, o protecionismo nessas áreas pode não

atrapalhar o avanço tecnológico da China tanto quanto se imagina.

Com controle federal sobre seu setor privado, Pequim se vale de subsídios,

diretrizes e incentivos para cumprir o objetivo de Xi Jinping de liderar o mundo em

inovação científica e tecnológica. A estratégia industrial liderada pelo Estado tem

suas falhas, mas a China é melhor do que qualquer outro país em executá-la bem.

Isso significa que os controles dos EUA sobre suas exportações podem motivar as

empresas chinesas - apoiadas por Pequim - a redobrar os esforços de substituição

de importações e de independência tecnológica por meio de soluções criativas,

da colaboração local e até de mercados paralelos. As fabricantes chinesas

enfrentam "competição ferrenha" entre si por apoio estatal.

"Em termos líquidos, as restrições americanas aceleraram o ímpeto chinês de

inovação", disse Dan Wanq, pesquisador no Pau Tsai China Center, da Yale Law

School. "Antes, Huawei e BYD compravam os melhores componentes no

mercado, mas agora seus incentivos estão alinhados aos do governo chinês. O

dinheiro da Huawei agora vai para as firmas locais de semicondutores".

Segundo o Australian Strategic Policy Institute, entre 2003 e 2007, a China liderava

em só 3 entre 64 tecnologias consideradas críticas. Entre 2019 e 2023, o país

tornou-se líder em 57 dessas tecnologias.

Pequim desenvolveu um processo local para impulsionar a inovação científica. O

país tem o maior número de formados do mundo nas áreas conhecidas como

STEM (ciência, tecnologia, engenharia e matemática) e oferece capital de longo

prazo para pesquisa e desenvolvimento (que, como proporção do PIB, está cada

vez mais próximo ao dos EUA).

Ainda assim, a situação pode não se desenrolar a favor da China. Por exemplo, a

agenda protecionista de Trump poderia gerar uma incerteza internacional

generalizada, o que deprimiria a demanda e amplificaria o impacto das tarifas

sobre a economia chinesa. O resto do mundo também poderia adotar uma

postura mais rigorosa em relação às importações provenientes da China. Além

disso, o modelo de inovação guiado pelo Estado chinês não é uma nenhuma

panaceia. Depende de o governo tomar as decisões corretas na alocação (e na

retirada) cie recursos. Isso pode gerar desperdícios.

A China também se depara com grandes problemas econômicos estruturais. Sua

trajetória cie crescimento perdeu força e o país encontra dificuldade para

reanimar os "espíritos animais" e impulsionar o nível do consumo, depois da crise

do mercado imobiliário. Isso toma o país dependente demais do crescimento

alimentado pelos investimentos e pelas exportações.

Ainda assim, o argumento continua de pé. As tarifas de Trump podem não ser tão

prejudiciais para a indústria e a supremacia tecnológica da China como se previa.

Pequim tem problemas maiores com os quais se preocupar. 


(Tradução de Sabino Âhumada)

domingo, 1 de setembro de 2024

Entrevista com Roubini, o "bruxo" que previu a crise de 2008 - Diego Viana (Valor Econômico)

 Entrevista com Roubini, o "bruxo" que previu a crise de 2008

 

O melhor e o pior dos tempos

Entrevista /  Nouriel Roubini destaca como avanços tecnológicos podem melhorar nossas vidas, mas comportamento humano pode pôr tudo a perder.

Por Diego Viana, para o Valor, de São Paulo

31/08/2924

 

Nouriel Roubini se expressa como Charles Dickens (1812-1870) para falar do mundo atual: é o melhor dos tempos e o pior dos tempos. Se o romancista inglês se referia ao século XVIII da Revolução Francesa, o economista ítalo-iraniano-americano está falando de uma era marcada por automação e inteligência artificial, situação geopolítica fragmentada, mudança climática, extremismo político e protecionismo comercial.

Roubini veio ao Brasil neste mês para participar da série de palestras Fronteiras do Pensamento. Neste ano, o evento sugere aos participantes que respondam à seguinte pergunta: "Quem está no controle"? A incerteza sobre a capacidade de comando em escala mundial é uma das maiores preocupações do economista. A falta de uma potência hegemônica neste século, afíima, reduz o incentivo para ofertar bens públicos globais, principalmente a segurança. Como consequência, o perigo de conflitos internacionais se amplifica.

Ainda assim, pelo menos no curto prazo, o autor do livro "Mega-ameaças" (2022, ed. Crítica), que ficou conhecido como "Dr. Catástrofe" por prever a crise de 2008, enxerga um cenário benigno. Apesar do recente solavanco nos mercados, a economia americana segue crescendo, com reflexos no resto do planeta. Mas a expansão também envolve perigos: se o Federal Reserve contrariar as expectativas e se vir obrigado a manter os juros altos por mais tempo, empresas podem começar a quebrar, provocando uma recessão. 

 

Trechos da entrevista de Roubini ao Valor:

Valor: A pergunta "Quem está no controle?" sugere que rumamos para um mundo anárquico. É o caso?

Nouriel Roubini: É uma pergunta importante. A estabilidade da ordem geopolítica requer a hegemonia de um poder que esteja, de fato, no comando do mundo. Esse poder provê bens públicos globais, porque seus interesses são tais que está disposto a fornecer segurança, livre comércio, coisas assim. O século XIX foi do Império Britânico, com a Pax Britannica. O século XX foi, em grande parte, o século da Pax Americana. Tivemos a Guerra Fria, claro, com a rivalidade entre Estados Unidos e União Soviética, mas a URSS estava desconectada da economia global. O colapso soviético levou a um momento unipolar. Parecia que os EUA seriam o único país hegemônico. Hoje, a ascensão da China sugere a vinda de um mundo bipolar, mas tudo aponta, na verdade, para a multipolaridade. Há outras potências, como a União Europeia, que é fragmentada, mas ainda um importante ator econômico global. Existem novas potências emergentes, como a índia. Há também os Estados médios do Sul global, importantes tanto regionalmente quanto, até certo ponto, para os assuntos globais. O poder dos EUA está reduzido, então fornecer bens públicos globais talvez não seja tão fácil.

Valor: É um estado transitório, rumo à "Pax Sinica"? Ou a ausência de hegemonia será prolongada?

Roubini: Por um tempo, pensou-se que o século XXI seria o século chinês. A China crescia a 10% e seu PIB parecia a caminho de ultrapassar o americano. Mas o motor de crescimento chinês estagnou. Estava em 7% antes da covid, depois passou a 5%. Estudos sugerem que, sem mudar suas políticas, a China pode chegar à taxa potencial de apenas 3% até o fim da década. Por outro lado, por causa da tecnologia, alguns argumentam que o crescimento potencial dos EUA, que anda em 1,8%, até o final da década pode ser de 3% ou mais. Acho que o século americano pode perdurar. O poder americano, seja comercial, financeiro, bancário, tecnológico, econômico, político, geopolítico ou militar, ainda é incomparável. Apesar do mau funcionamento de seu sistema político, o crescimento americano pode acelerar bastante. Já a China, com o capitalismo de Estado e o excesso de dívidas, com a crise no setor imobiliário e o estrangulamento do setor privado, pode acabar em uma armadilha de renda média.

Valor: Os mercados passaram por um solavanco recentemente, com começo no Japão e reflexos nos Estados Unidos. Depois, a situação se estabilizou. Ainda podemos classificar o cenário econômico global como benigno?

Roubini: O cenário é benigno, apesar de alguns riscos importantes.

Valor: Que riscos são esses?

Roubini: A desaceleração americana tem sido bem mais lenta do que o Fed previa. No momento, espera-se que sejam feitos cortes em setembro e dezembro, mas depois disso é possível que o afrouxamento não prossiga. Com isso, as condições financeiras continuariam apertadas. Dado o forte endividamento público e privado, altas taxas de jurospodem prejudicar as empresas que dependem de dinheiro barato. Paradoxalmente, passamos do risco de pouso forçado para o pouso suave, depois o não pouso, o que reintroduz o perigo de cair em recessão.

Valor: Sendo assim, o que é o mais importante a observar neste momento?

Roubini: O futuro da economia depende muito de quem será eleito em novembro. A política econômica seria bem diferente com Donald Trump ou Kamala Harris. Algumas políticas que Trump pretende implementar são inflacionárias, com protecionismo, enfraquecimento do dólar, interferência na política monetária, cortes permanentes de impostos. Isso aumentaria os déficits ainda mais, tornando-os menos sustentáveis, o que traz consigo o risco de que os juros sejam empurrados para cima. Não estamos fora de perigo. Primeiro, porque o Fed talvez não possa reduzir muito os juros. Segundo, porque, dependendo da política econômica do ano que vem, pode haver tormentas.

Valor: O sr. disse que o potencial de crescimento dos EUA será maior, graças à tecnologia. Mas a adoção de tecnologia tem sido bastante rápida. É possível que o crescimento esteja acontecendo com inflação em queda porque esse potencial maior já entrou em cena?

Roubini: É uma possibilidade. A empolgação com a inteligência artificial generativa levou a uma onda importante de investimentos nos EUA. Todo mundo está entrando na IA. Os produtores desses modelos estão comprando mais chips, mais bancos de dados, mais eletricidade. Além disso, nos EUA, as leis de infraestrutura, da indústria de chips e da redução da inflação (IRA) levaram a um boom de investimentos industriais, com centenas de bilhões de dólares em nova capacidade manufatureira prometidos para a próxima década. A antiga infraestrutura dos EUA começa a ser renovada e há incentivos à energia renovável. São coisas grandes, que provavelmente atuam tanto no lado da oferta quanto da demanda. Elas podem explicar por que o crescimento tem sido forte.

Valor: Pelo prisma do mundo em desenvolvimento, os juros altos nos EUA preocupam porque reduzem o fluxo de capital e desvalorizam as moedas. Como é o cenário para o Sul global?

Roubini: Se prevalecer o cenário benigno e o Fed mantiver os juros no nível atual, há problemas. Um país que tenha tomado emprestado em dólar vai ter um custo de serviço da dívida mais alto. Isso vale também para quem tomou emprestado em moeda local, porque quando os juros em dólar estão altos, os juros em moeda doméstica têm que ser ainda mais elevados, para evitar a depreciação. Essa depreciação de moedas pode ser útil para a exportação desses países, mas é inflacionária. Além disso, o câmbiotambém eleva o preço em dólar das commodities, o que é uma desvantagem para exportadores. Essa combinação de fatores implica ventos contrários significativos para muitos mercados emergentes.

Valor: Na reunião do G20, houve avanços na ideia da taxa global sobre os mais ricos. Impostos internacionais são discutidos desde a taxa Tobin. É uma ideia eficaz?

Roubini: As últimas décadas trouxeram um aumento na desigualdade ao redor do mundo. Isto provocou reações contra a democracia liberal e o capitalismo, porque muitas pessoas se sentem deixadas para trás. Há grande insegurança econômica. As reações são variadas, mas todas levam a algum grau de populismo. Por isso, precisamos fazer algo quanto à desigualdade. Aumentar o bolo econômico, dando mais oportunidades para as pessoas se educarem e desenvolverem habilidades, é sempre a melhor política. Mas faz sentido argumentar que é preciso taxar os vencedores, em termos de renda ou riqueza. É preciso chegar a um acordo global, assim como a OCDE obteve um acordo sobre o imposto corporativo mínimo. Só a cooperação internacional pode evitar esse problema.

Valor: A política americana tem tudo, menos tédio. Um candidato foi baleado, outro desistiu da corrida. Nunca sabemos o que vai acontecer a seguir. Como um investidor navega essa situação?

Roubini: É difícil prever aonde essa eleição vai conduzir. Agora os democratas têm uma candidata jovem, uma mulher afro-americana que pode energizar a militância. Há o risco de que ambos os lados se declarem vencedores, levando a decisão até a Suprema Corte, mais ou menos como em 2000. Podemos até repetir janeiro de 2021, só que de um jeito ainda mais caótico, com violência nas ruas se Trump perder. Tudo pode acontecer. Os mercados sabem que haverá diferenças na política externa entre Trump e os democratas, mas tendem a desconsiderá-las, porque nesse campo as variações não costumam ser grandes. No Oriente Médio, Trump deve pressionar os palestinos por um acordo de paz com Israel. Há preocupação de que ele abandone a Ucrânia, mas se fizer isso, haverá um efeito dominó. A China se veria em condições de assumir Taiwan sem reação. Mas a relação com a China é um ponto de concordância entre republicanos e democratas, são ambos agressivos. Sabemos muito pouco do que virá. Há algumas ideias, mas é difícil precificá-las nos mercados.

Valor: Como alocar os investimentos perante esse quadro?

Roubini: Não é nada fácil. Esse ponto sobre a política externa ajuda, e algumas coisas são legíveis na política fiscal. O risco para a democracia é real, o que bagunça tudo. Acho que os mercados vão caminhar passo a passo, esperando para ver o que vem a cada momento. Há potenciais impactos ainda maiores, como a escalada da guerra no Oriente Médio ou na Ucrânia. Mas os mercados estão ignorando essas coisas, como se fossem um risco secundário. A melhor coisa é esperar para ver, em vez de se apressar em tomar alguma posição.

Valor: O sr. mencionou três iniciativas econômicas de Biden: leis de infraestrutura, de chips, de redução da inflação. Elas foram consideradas o retomo da política industrial ao centro da economia do planeta. Sem Biden, a política industrial permanece?

Roubini: A política industrial voltou de vez, não só nos EUA Os chineses a praticam há tempos, os europeus estão tentando. Em um mundo onde o crescimento é impulsionado pela tecnologia, dados, conhecimento e inovação, não posso deixar o mercado fazer tudo. Tenho que usar políticas industriais com inteligência para afetar a economia. Já nos afastamos do lais-sez-faire. Os governos estão pensando em como garantir a manufatura, como atrair ou resguardar empregos de qualidade. No processo, muitos erros podem ser cometidos, mas também há coisas boas que podem ser feitas. O resultado final pode ser bom ou ruim, ainda não sabemos. Mas todo mundo está fazendo.

Valor: O sr. citou a Europa como um dos polos do mundo fragmentado. Há debates na Europa sobre a derrocada do continente. Ela será ainda um grande ator na cena global?

Roubini: Isso depende de fazer as reformas estruturais e concluir o mercado único. Hoje, a perspectiva não está boa para a Europa. Há problemas na vizinhança, com ameaças vindas do Oriente Médio e da Rússia. Os EUA têm dois grandes oceanos e vizinhos amigáveis. Os EUA são independentes em energia, a Europa não. Os EUA são um mercado totalmente integrado, enquanto a Europa ainda não concluiu a união economicamente, nem politicamente. A Europa envelhece mais do que os EUA, que recebe mais imigrantes. A Europa está sujeita ao risco de que a Guerra Fria entre EUA e China piore. Ela exporta muito para a China e tem investimentos diretos lá. Está próxima do Oriente Médio, onde há turbulência, que pode levar a um choque energético como o da década de 1970, se houver guerra entre Israel e o Irã. Os desafios são todos solucionáveis, mas é preciso que a Comissão Europeia seja enérgica e aprove legislação para mudar os incentivos na direção de mais inovação, competitividade, dinamismo econômico e empreendedorismo. A Europa começa o jogo com grande capital humano, instituições fortes, renda alta. É rica, mas não se pode viver dos louros do passado.

Valor: Um ativo que a Europa preza muito é o "efeito Bruxelas", pelo qual as regulações europeias são adotadas no resto do mundo. Pode ser o caso da lei de IA recém-aprovada?

Roubini: Os europeus alegam que um dos seus papéis é fornecer parâmetros regulatórios, graças ao tamanho e importância de seu mercado. Mas é um comportamento complacente. Os grandes líderes em IA hoje são os EUA e a China, além de bolsões de excelência em Israel, Reino Unido e Japão. A Europa tem ambições nesse campo, mas não é tão forte. Mesmo antes da revolução da IA, os europeus não foram capazes de ocupar mercados com inovação. E se você não está inovando, tentar regular é ingênuo. Um: porque sua regulamentação pode ser demais e sufocar até mesmo o mínimo de investimento que você poderia obter. Dois: você pode errar. E três: não é óbvio que os outros vão adotar suas regras. Eu gastaria mais tempo tentando criar inovações em IA na Europa, em vez de regulá-la de uma forma que dá ainda menos incentivo para fazer parte dessa pesquisa.

Valor: Em resumo, que falta faz ter alguém "no controle"?

Roubini: Remeto ao título de um artigo que escrevi: "Inteligência artificial vs. estupidez humana". Se bem usada, a IA pode aumentar o crescimento, a produtividade, o bolo econômico. Mesmo se a maior parte da renda gerada for para poucos, sempre se pode taxá-los e redistribuir. O problema é a estupidez: não vivemos no mundo das máquinas inteligentes, mas de conflitos geopolíticos, reação contra a democracia e a globalização, relocalização da manufatura, nacionalismo econômico e mudanças climáticas. Essa mesma tecnologia pode ser usada para criar falsificações profundas, aumentar a desigualdade, aprofundar o desemprego e inclusive construir mais armas, para lutar guerras maiores. Vivemos no melhor dos tempos, porque a tecnologia pode nos fazer viver mais, melhor e com mais renda. E vivemos no pior dos tempos, com as mega-ameaças impulsionadas pelo comportamento humano. Podemos sobreviver aos próximos 20 anos sem guerra global, sem outra pandemia, sem catástrofe climática, sem crises financeiras? Se conseguirmos, o futuro será brilhante, usando a tecnologia para melhorar a situação de todos.