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domingo, 1 de setembro de 2024

Entrevista com Roubini, o "bruxo" que previu a crise de 2008 - Diego Viana (Valor Econômico)

 Entrevista com Roubini, o "bruxo" que previu a crise de 2008

 

O melhor e o pior dos tempos

Entrevista /  Nouriel Roubini destaca como avanços tecnológicos podem melhorar nossas vidas, mas comportamento humano pode pôr tudo a perder.

Por Diego Viana, para o Valor, de São Paulo

31/08/2924

 

Nouriel Roubini se expressa como Charles Dickens (1812-1870) para falar do mundo atual: é o melhor dos tempos e o pior dos tempos. Se o romancista inglês se referia ao século XVIII da Revolução Francesa, o economista ítalo-iraniano-americano está falando de uma era marcada por automação e inteligência artificial, situação geopolítica fragmentada, mudança climática, extremismo político e protecionismo comercial.

Roubini veio ao Brasil neste mês para participar da série de palestras Fronteiras do Pensamento. Neste ano, o evento sugere aos participantes que respondam à seguinte pergunta: "Quem está no controle"? A incerteza sobre a capacidade de comando em escala mundial é uma das maiores preocupações do economista. A falta de uma potência hegemônica neste século, afíima, reduz o incentivo para ofertar bens públicos globais, principalmente a segurança. Como consequência, o perigo de conflitos internacionais se amplifica.

Ainda assim, pelo menos no curto prazo, o autor do livro "Mega-ameaças" (2022, ed. Crítica), que ficou conhecido como "Dr. Catástrofe" por prever a crise de 2008, enxerga um cenário benigno. Apesar do recente solavanco nos mercados, a economia americana segue crescendo, com reflexos no resto do planeta. Mas a expansão também envolve perigos: se o Federal Reserve contrariar as expectativas e se vir obrigado a manter os juros altos por mais tempo, empresas podem começar a quebrar, provocando uma recessão. 

 

Trechos da entrevista de Roubini ao Valor:

Valor: A pergunta "Quem está no controle?" sugere que rumamos para um mundo anárquico. É o caso?

Nouriel Roubini: É uma pergunta importante. A estabilidade da ordem geopolítica requer a hegemonia de um poder que esteja, de fato, no comando do mundo. Esse poder provê bens públicos globais, porque seus interesses são tais que está disposto a fornecer segurança, livre comércio, coisas assim. O século XIX foi do Império Britânico, com a Pax Britannica. O século XX foi, em grande parte, o século da Pax Americana. Tivemos a Guerra Fria, claro, com a rivalidade entre Estados Unidos e União Soviética, mas a URSS estava desconectada da economia global. O colapso soviético levou a um momento unipolar. Parecia que os EUA seriam o único país hegemônico. Hoje, a ascensão da China sugere a vinda de um mundo bipolar, mas tudo aponta, na verdade, para a multipolaridade. Há outras potências, como a União Europeia, que é fragmentada, mas ainda um importante ator econômico global. Existem novas potências emergentes, como a índia. Há também os Estados médios do Sul global, importantes tanto regionalmente quanto, até certo ponto, para os assuntos globais. O poder dos EUA está reduzido, então fornecer bens públicos globais talvez não seja tão fácil.

Valor: É um estado transitório, rumo à "Pax Sinica"? Ou a ausência de hegemonia será prolongada?

Roubini: Por um tempo, pensou-se que o século XXI seria o século chinês. A China crescia a 10% e seu PIB parecia a caminho de ultrapassar o americano. Mas o motor de crescimento chinês estagnou. Estava em 7% antes da covid, depois passou a 5%. Estudos sugerem que, sem mudar suas políticas, a China pode chegar à taxa potencial de apenas 3% até o fim da década. Por outro lado, por causa da tecnologia, alguns argumentam que o crescimento potencial dos EUA, que anda em 1,8%, até o final da década pode ser de 3% ou mais. Acho que o século americano pode perdurar. O poder americano, seja comercial, financeiro, bancário, tecnológico, econômico, político, geopolítico ou militar, ainda é incomparável. Apesar do mau funcionamento de seu sistema político, o crescimento americano pode acelerar bastante. Já a China, com o capitalismo de Estado e o excesso de dívidas, com a crise no setor imobiliário e o estrangulamento do setor privado, pode acabar em uma armadilha de renda média.

Valor: Os mercados passaram por um solavanco recentemente, com começo no Japão e reflexos nos Estados Unidos. Depois, a situação se estabilizou. Ainda podemos classificar o cenário econômico global como benigno?

Roubini: O cenário é benigno, apesar de alguns riscos importantes.

Valor: Que riscos são esses?

Roubini: A desaceleração americana tem sido bem mais lenta do que o Fed previa. No momento, espera-se que sejam feitos cortes em setembro e dezembro, mas depois disso é possível que o afrouxamento não prossiga. Com isso, as condições financeiras continuariam apertadas. Dado o forte endividamento público e privado, altas taxas de jurospodem prejudicar as empresas que dependem de dinheiro barato. Paradoxalmente, passamos do risco de pouso forçado para o pouso suave, depois o não pouso, o que reintroduz o perigo de cair em recessão.

Valor: Sendo assim, o que é o mais importante a observar neste momento?

Roubini: O futuro da economia depende muito de quem será eleito em novembro. A política econômica seria bem diferente com Donald Trump ou Kamala Harris. Algumas políticas que Trump pretende implementar são inflacionárias, com protecionismo, enfraquecimento do dólar, interferência na política monetária, cortes permanentes de impostos. Isso aumentaria os déficits ainda mais, tornando-os menos sustentáveis, o que traz consigo o risco de que os juros sejam empurrados para cima. Não estamos fora de perigo. Primeiro, porque o Fed talvez não possa reduzir muito os juros. Segundo, porque, dependendo da política econômica do ano que vem, pode haver tormentas.

Valor: O sr. disse que o potencial de crescimento dos EUA será maior, graças à tecnologia. Mas a adoção de tecnologia tem sido bastante rápida. É possível que o crescimento esteja acontecendo com inflação em queda porque esse potencial maior já entrou em cena?

Roubini: É uma possibilidade. A empolgação com a inteligência artificial generativa levou a uma onda importante de investimentos nos EUA. Todo mundo está entrando na IA. Os produtores desses modelos estão comprando mais chips, mais bancos de dados, mais eletricidade. Além disso, nos EUA, as leis de infraestrutura, da indústria de chips e da redução da inflação (IRA) levaram a um boom de investimentos industriais, com centenas de bilhões de dólares em nova capacidade manufatureira prometidos para a próxima década. A antiga infraestrutura dos EUA começa a ser renovada e há incentivos à energia renovável. São coisas grandes, que provavelmente atuam tanto no lado da oferta quanto da demanda. Elas podem explicar por que o crescimento tem sido forte.

Valor: Pelo prisma do mundo em desenvolvimento, os juros altos nos EUA preocupam porque reduzem o fluxo de capital e desvalorizam as moedas. Como é o cenário para o Sul global?

Roubini: Se prevalecer o cenário benigno e o Fed mantiver os juros no nível atual, há problemas. Um país que tenha tomado emprestado em dólar vai ter um custo de serviço da dívida mais alto. Isso vale também para quem tomou emprestado em moeda local, porque quando os juros em dólar estão altos, os juros em moeda doméstica têm que ser ainda mais elevados, para evitar a depreciação. Essa depreciação de moedas pode ser útil para a exportação desses países, mas é inflacionária. Além disso, o câmbiotambém eleva o preço em dólar das commodities, o que é uma desvantagem para exportadores. Essa combinação de fatores implica ventos contrários significativos para muitos mercados emergentes.

Valor: Na reunião do G20, houve avanços na ideia da taxa global sobre os mais ricos. Impostos internacionais são discutidos desde a taxa Tobin. É uma ideia eficaz?

Roubini: As últimas décadas trouxeram um aumento na desigualdade ao redor do mundo. Isto provocou reações contra a democracia liberal e o capitalismo, porque muitas pessoas se sentem deixadas para trás. Há grande insegurança econômica. As reações são variadas, mas todas levam a algum grau de populismo. Por isso, precisamos fazer algo quanto à desigualdade. Aumentar o bolo econômico, dando mais oportunidades para as pessoas se educarem e desenvolverem habilidades, é sempre a melhor política. Mas faz sentido argumentar que é preciso taxar os vencedores, em termos de renda ou riqueza. É preciso chegar a um acordo global, assim como a OCDE obteve um acordo sobre o imposto corporativo mínimo. Só a cooperação internacional pode evitar esse problema.

Valor: A política americana tem tudo, menos tédio. Um candidato foi baleado, outro desistiu da corrida. Nunca sabemos o que vai acontecer a seguir. Como um investidor navega essa situação?

Roubini: É difícil prever aonde essa eleição vai conduzir. Agora os democratas têm uma candidata jovem, uma mulher afro-americana que pode energizar a militância. Há o risco de que ambos os lados se declarem vencedores, levando a decisão até a Suprema Corte, mais ou menos como em 2000. Podemos até repetir janeiro de 2021, só que de um jeito ainda mais caótico, com violência nas ruas se Trump perder. Tudo pode acontecer. Os mercados sabem que haverá diferenças na política externa entre Trump e os democratas, mas tendem a desconsiderá-las, porque nesse campo as variações não costumam ser grandes. No Oriente Médio, Trump deve pressionar os palestinos por um acordo de paz com Israel. Há preocupação de que ele abandone a Ucrânia, mas se fizer isso, haverá um efeito dominó. A China se veria em condições de assumir Taiwan sem reação. Mas a relação com a China é um ponto de concordância entre republicanos e democratas, são ambos agressivos. Sabemos muito pouco do que virá. Há algumas ideias, mas é difícil precificá-las nos mercados.

Valor: Como alocar os investimentos perante esse quadro?

Roubini: Não é nada fácil. Esse ponto sobre a política externa ajuda, e algumas coisas são legíveis na política fiscal. O risco para a democracia é real, o que bagunça tudo. Acho que os mercados vão caminhar passo a passo, esperando para ver o que vem a cada momento. Há potenciais impactos ainda maiores, como a escalada da guerra no Oriente Médio ou na Ucrânia. Mas os mercados estão ignorando essas coisas, como se fossem um risco secundário. A melhor coisa é esperar para ver, em vez de se apressar em tomar alguma posição.

Valor: O sr. mencionou três iniciativas econômicas de Biden: leis de infraestrutura, de chips, de redução da inflação. Elas foram consideradas o retomo da política industrial ao centro da economia do planeta. Sem Biden, a política industrial permanece?

Roubini: A política industrial voltou de vez, não só nos EUA Os chineses a praticam há tempos, os europeus estão tentando. Em um mundo onde o crescimento é impulsionado pela tecnologia, dados, conhecimento e inovação, não posso deixar o mercado fazer tudo. Tenho que usar políticas industriais com inteligência para afetar a economia. Já nos afastamos do lais-sez-faire. Os governos estão pensando em como garantir a manufatura, como atrair ou resguardar empregos de qualidade. No processo, muitos erros podem ser cometidos, mas também há coisas boas que podem ser feitas. O resultado final pode ser bom ou ruim, ainda não sabemos. Mas todo mundo está fazendo.

Valor: O sr. citou a Europa como um dos polos do mundo fragmentado. Há debates na Europa sobre a derrocada do continente. Ela será ainda um grande ator na cena global?

Roubini: Isso depende de fazer as reformas estruturais e concluir o mercado único. Hoje, a perspectiva não está boa para a Europa. Há problemas na vizinhança, com ameaças vindas do Oriente Médio e da Rússia. Os EUA têm dois grandes oceanos e vizinhos amigáveis. Os EUA são independentes em energia, a Europa não. Os EUA são um mercado totalmente integrado, enquanto a Europa ainda não concluiu a união economicamente, nem politicamente. A Europa envelhece mais do que os EUA, que recebe mais imigrantes. A Europa está sujeita ao risco de que a Guerra Fria entre EUA e China piore. Ela exporta muito para a China e tem investimentos diretos lá. Está próxima do Oriente Médio, onde há turbulência, que pode levar a um choque energético como o da década de 1970, se houver guerra entre Israel e o Irã. Os desafios são todos solucionáveis, mas é preciso que a Comissão Europeia seja enérgica e aprove legislação para mudar os incentivos na direção de mais inovação, competitividade, dinamismo econômico e empreendedorismo. A Europa começa o jogo com grande capital humano, instituições fortes, renda alta. É rica, mas não se pode viver dos louros do passado.

Valor: Um ativo que a Europa preza muito é o "efeito Bruxelas", pelo qual as regulações europeias são adotadas no resto do mundo. Pode ser o caso da lei de IA recém-aprovada?

Roubini: Os europeus alegam que um dos seus papéis é fornecer parâmetros regulatórios, graças ao tamanho e importância de seu mercado. Mas é um comportamento complacente. Os grandes líderes em IA hoje são os EUA e a China, além de bolsões de excelência em Israel, Reino Unido e Japão. A Europa tem ambições nesse campo, mas não é tão forte. Mesmo antes da revolução da IA, os europeus não foram capazes de ocupar mercados com inovação. E se você não está inovando, tentar regular é ingênuo. Um: porque sua regulamentação pode ser demais e sufocar até mesmo o mínimo de investimento que você poderia obter. Dois: você pode errar. E três: não é óbvio que os outros vão adotar suas regras. Eu gastaria mais tempo tentando criar inovações em IA na Europa, em vez de regulá-la de uma forma que dá ainda menos incentivo para fazer parte dessa pesquisa.

Valor: Em resumo, que falta faz ter alguém "no controle"?

Roubini: Remeto ao título de um artigo que escrevi: "Inteligência artificial vs. estupidez humana". Se bem usada, a IA pode aumentar o crescimento, a produtividade, o bolo econômico. Mesmo se a maior parte da renda gerada for para poucos, sempre se pode taxá-los e redistribuir. O problema é a estupidez: não vivemos no mundo das máquinas inteligentes, mas de conflitos geopolíticos, reação contra a democracia e a globalização, relocalização da manufatura, nacionalismo econômico e mudanças climáticas. Essa mesma tecnologia pode ser usada para criar falsificações profundas, aumentar a desigualdade, aprofundar o desemprego e inclusive construir mais armas, para lutar guerras maiores. Vivemos no melhor dos tempos, porque a tecnologia pode nos fazer viver mais, melhor e com mais renda. E vivemos no pior dos tempos, com as mega-ameaças impulsionadas pelo comportamento humano. Podemos sobreviver aos próximos 20 anos sem guerra global, sem outra pandemia, sem catástrofe climática, sem crises financeiras? Se conseguirmos, o futuro será brilhante, usando a tecnologia para melhorar a situação de todos. 

 

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2023

Gelson Fonseca: Qual é a principal regra que o Brasil violou, segundo o diplomata mais citado em estudos acadêmicos - Diego Viana (Valor)

 Qual é a principal regra que o Brasil violou, segundo o diplomata mais citado em estudos acadêmicos


“O Brasil tem 200 anos de tradição diplomática sólida. Vai recuperar seu lugar, usando suas vantagens no meio ambiente, no comércio”, diz Gelson Fonseca Junior

Por Diego Viana — Para o Valor, de São Paulo
10/02/2023 05h02  Atualizado há 2 horas

Após duas décadas em que as instituições multilaterais ganharam fôlego nas relações entre os países, com foros globais de tomada de decisão, como as conferências do clima, e debates no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU) e da Organização Mundial do Comércio (OMC), a ascensão da China como nova grande potência pode estabelecer uma nova bipolaridade no mundo, justamente quando os problemas do cenário internacional são mais claramente globais, a começar pela emergência climática.

Uma nova crise do multilateralismo seria apenas um novo capítulo de uma história composta de crises, aponta o embaixador Gelson Fonseca Junior, diretor do Centro de História e Documentação Diplomática (CHDD) da Fundação Alexandre de Gusmão (Funag), ligada ao Ministério das Relações Exteriores. Com todas as dificuldades, ferramentas multilaterais estão disponíveis e funcionam, diz. Os atritos entre americanos e chineses são decisivos para o futuro das instituições multilaterais, mas há temas em que os avanços são possíveis, sobretudo o meio ambiente. Nesse cenário, o Brasil pode ter posição de destaque, graças em parte a sua tradição diplomática realista.

Em janeiro, o Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri) e a Funag publicaram o livro “O Brasil no mundo: Estudos sobre o pensamento de Gelson Fonseca Junior”, com contribuições de diplomatas e professores sobre a obra do embaixador. Entre outros cargos, Fonseca foi representante permanente do Brasil na ONU de 1999 a 2003. É autor de obras que são referência no estudo das relações internacionais no Brasil, como o livro “A legitimidade e outras questões internacionais” (Paz e Terra, 1998), e dedicou diversos artigos à questão do multilateralismo. É o diplomata mais citado em estudos acadêmicos em relações internacionais no Brasil.

Valor: Um dos principais temas de sua trajetória é o multilateralismo. Hoje, com a escalada do atrito entre EUA e China, ele está em risco?
Gelson Fonseca Junior: Não me lembro de um momento em que o multilateralismo não estivesse em crise. A ONU foi criada com a expectativa de ter um grande papel na segurança internacional, mas isso foi logo antes de estalar a Guerra Fria. Então ela cumpriu esse papel em alguns momentos mais, em outros menos. Nos anos 90, pensávamos que, sem Guerra Fria, a ONU deslancharia. De fato, foram feitas conferências globais e criou-se um padrão de ação multilateral. Mas persistiu o problema do jogo de poder. Na Guerra Fria, os instrumentos de manutenção da paz eram prejudicados pela disputa global, mas as instituições multilaterais funcionaram. Muita coisa aconteceu, como a descolonização. Os países em desenvolvimento se juntaram para propor uma nova ordem econômica. Hoje, a questão de como vai evoluir a relação entre EUA e China é que vai definir o futuro do multilateralismo. Vai haver um confronto? Eles vão se acomodar? Esses países têm uma relação íntima na área financeira e na tecnológica. É possível desligar essa relação e partir para o confronto? O que as instituições multilaterais podem fazer para atenuar o conflito, que já se manifesta em protecionismo tecnológico? As respostas, quando vêm, envolvem muita torcida. Quem deseja a paz olha para o lado positivo: a China investe nos EUA, os dois ganham com as trocas. O quadro de instituições multilaterais está funcionando. Mas nada disso invalida a armadilha de Tucídides: a China cresce e os EUA querem manter a hegemonia, o que leva ao confronto. O militar pode ser descartado, porque daria cabo de ambos. Aliás, de nós também.

Valor: Um mundo bipolar fortalece a capacidade de negociação dos países emergentes?
Fonseca: Hoje, um problema ao falar de emergentes é: existe um pleito em comum dos emergentes? Nos anos 60, era fácil criar um grupo de emergentes, que partiam de realidades comuns e tinham demandas semelhantes. Hoje, esses países são muito diversos e os interesses idem. Não se pode ter política comum sem uma base comum. As posições estratégicas também mudam muito. Alguns são mais próximos da China, outros ligados aos EUA. E a agenda internacional ficou muito fragmentada. Qual seria a plataforma comum dos emergentes no meio ambiente? E em direitos humanos? Na reforma do Conselho de Segurança? Esse é o dilema. Em matéria de meio ambiente, tem algumas plataformas comuns. Nos direitos humanos, não. No caso do comércio, é complicado, porque temos problemas com a Índia, por exemplo.

Valor: E a governança global? O clima, por exemplo, exige um alto nível de articulação.
Fonseca: Temas como clima e saúde são por natureza globais. Mas outros também, como a aviação comercial e as telecomunicações. Alguns podem ser resolvidos tecnicamente, outros são mais complicados. Quando a humanidade vai perceber que é preciso ter regras mais constrangedoras em matéria ambiental? Para que houvesse ONU, morreram 40 milhões de pessoas. Só aí se decidiu avançar no sistema global de governança. Mas uma vez iniciado, é difícil controlar o processo. Entram questões políticas e de interesse. No clima, apesar das dificuldades, existe a consciência comum de que é preciso agir. Há pressão social e científica. Quando se chega ao plano da política, vemos que há perdas e renúncias, os países ricos não querem desembolsar tanto quanto os pobres exigem, e por aí vai.

Valor: O tema da governança revive a antiga questão da paz perpétua. É um beco sem saída?
Fonseca: O problema da governança global é imaginar uma racionalidade que resolva problemas irracionais. Hoje, instrumentos de governança existem. O primeiro é a ONU, cuja atuação é limitada. O problema não está nos instrumentos. Está na criação de vontade política para que os instrumentos funcionem. Por que a regulação do tráfego aéreo funciona? E por que os instrumentos da segurança não funcionam? Já a pergunta dos autores antigos, em seus projetos de paz perpétua, era: por que há guerras? Era o grande tema da humanidade. Ainda é, vide a Ucrânia. Teoricamente, o conselho de segurança poderia se reunir e mandar a Rússia voltar atrás. Mas pode? Pode no caso do Iraque. As instituições multilaterais têm sempre uma reserva de soberania. Na Carta da ONU, consta que os Estados têm o direito de atuar por fora em situações de legítima defesa. Então eles inventam uma razão para atacar uns aos outros invocando legítima defesa. Não tem como desligar um processo internacional da realidade do poder. As questões são levaas adiante se houver uma liderança que queira levar adiante. Quem lidera as negociações do clima? Não tem um país que seja o dono da história e possa se impor. É preciso articular, e esse é um processo difícil.

Valor: Lula assume com a mesma ambição do primeiro mandato: dar protagonismo global ao Brasil. O mundo atual não é o de 2003. Pode haver barreiras para esse protagonismo?
Fonseca: Por seu tamanho e a importância que temos em áreas como o meio ambiente, o Brasil é sempre protagonista. O mundo é outro, mas um lugar de importância para o Brasil está reservado. Nossa capacidade de mobilização é forte e conhecida na agenda multilateral, na OMC, na ONU. A expectativa de que o Brasil voltasse a ter papel relevante era natural. Somos protagonistas na cena internacional, não como superpotência, nem potência secundária, mas somos. Como, então? Tem um tipo de poder em que o Brasil se destaca. Não temos poder militar, nem ideológico, nem econômico, ou só em algumas áreas. Mas temos um poder diplomático. A tradição brasileira é de uma visão bem realista de como o mundo é e do que podemos fazer nele. E temos um comportamento diplomático que nos ajuda nesses processos de negociação. Tudo é negociado e o Brasil sabe negociar.

Valor: O período em que o Brasil abdicou desse realismo deixa cicatrizes?
Fonseca: Foi um período curto, em que se infringiram não só tradições da diplomacia brasileira, mas regras da diplomacia em geral. Um colega dizia que só há uma regra na diplomacia: seja gentil com as pessoas. E deixamos de fazer isso por alguns anos. Fechar a embaixada em Caracas foi inusitado. Nem os americanos, que impõem sanções a Cuba, deixaram de ter um escritório em Havana. Mas o Brasil tem 200 anos de tradição diplomática sólida. Vai recuperar seu lugar, usando suas vantagens no meio ambiente, no comércio e outras. Entre os parceiros, existe a torcida para que o Brasil volte ao protagonismo. Líderes da Europa, dos EUA, da América Latina, querem o Brasil participando das decisões. Os vizinhos querem que o Brasil ajude a consertar o Mercosul, a aumentar as relações comerciais desses países, a organizar uma frente comum de atuação.

Valor: Em 1981, sua tese no Itamaraty defendia a aproximação da diplomacia com o mundo acadêmico. Qual foi sua motivação?
Fonseca: Estava claro que a democratização iria acontecer. A pergunta era: como o Itamaraty vai viver a nova situação? Minha geração começou na ditadura e pensava a política externa na perspectiva dela. Nós nos preocupávamos com as limitações impostas por um governo militar. Meu primeiro chefe foi João Augusto de Araújo Castro, que tinha sido ministro de João Goulart e mantinha uma boa relação com jornalistas. E trabalhei com Ítalo Zappa, para quem o que dava legitimidade à política externa era o modo como ela era passada à sociedade. Mesmo na ditadura, o Itamaraty tinha uma relação com a imprensa diferente dos outros ministérios. Mas fui olhar para a relação para a universidade, onde, nos anos 80, havia um grupo muito pequeno, mas visivelmente de muita qualidade, estudando relações internacionais na universidade. Até então, não era comum que pessoas de formação acadêmica estudassem as relações internacionais. Meu chefe, Ronaldo Sardenberg, começou a interlocução com esse grupo. Hoje, o campo está consolidad.