A estratégia de Trump para o “quintal” do Hemisfério Ocidental

Trump
Donald Trump liberou, no final de novembro de 2025, a nova estratégia de segurança nacional dos Estados Unidos, apresentando-a, como é do seu estilo, em tom grandiloquente:
Nos últimos nove meses, trouxemos de volta nossa nação – e o mundo –, à beira da catástrofe e do desastre. Depois de quatro anos de fraqueza, de extremismo, de fracassos mortais, minha administração avançou com urgência e rapidez histórica para restaurar a força americana no país e no exterior, e trouxe paz e estabilidade ao nosso mundo [sic]. Nenhuma administração na história [sic bis] alcançou uma reviravolta tão dramática em tão pouco tempo. (disponível: https://www.whitehouse.gov/wp-content/uploads/2025/12/2025-National-Security-Strategy.pdf).
O corpo do texto não é menos altissonante em suas pretensões imperiais: nada é modesto nessa nova doutrina, trumpiana, de segurança nacional, inovando em relação a documentos similares anteriores. Os EUA já tiveram grandes estratégias no século XX. A primeira, desenhada ao início da Guerra Fria, em 1947, contou com aportes significativos de militares e de técnicos vinculados à segurança nacional, inclusive à diplomacia, como a “doutrina da contenção” (da União Soviética), sugerida pelo diplomata George Kennan. Depois acrescentaram algumas “teorias”, como a do dominó, que se revelou um desastre: levou ao “over stretch”, que impôs um excesso de extensão militar – no Vietnã, por exemplo –, bases completas por toda parte e compromissos inviáveis economicamente.
A quebra do padrão de Bretton Woods, em 1971, sinalizou a ruptura de um sistema que já era insustentável desde o final dos anos 1950. Mas, enquanto perdurou o dinamismo econômico e político, o poderio americano continuou a se expandir pela força de atração de sua economia e de um regime de liberdades inigualável no mundo, atraindo imigrantes de todos os tipos e cores, braços e cérebros de todas as partes. Uma consulta aos premiados do Nobel revela quantos estrangeiros, trabalhando em laboratórios americanos, o receberam.
Até que um descendente de imigrantes furiosamente xenófobo resolveu “corrigir” essa abertura, para ele indesejável, postura que recebeu enorme destaque na nova estratégia, como se o fechamento do império aos estrangeiros pudesse inverter seu declínio relativo, ou como se os imigrantes representassem qualquer ameaça à segurança nacional de um país que conta com inúmeros estrangeiros em áreas sensíveis das políticas de Estado. Sua segunda preocupação se exerce em face do renascimento e fortalecimento de um velho império asiático, mas a China só quer exportar seus bens e serviços, não o “comunismo”.
Em lugar de definir uma estratégia de complementaridade com o gigante asiático, em prol de uma prosperidade comum, os paranoicos da nova estratégia preferiram adotar uma postura de enfrentamento em todos os continentes. A estrutura geográfica do documento começa pelo próprio Hemisfério Ocidental, no qual se perfila, ao Sul, uma América Latina pouco dinâmica, mas que aparece como um problema. A brutalidade da doutrina estratégica já se revela naprimeira frase da seção sobre o “Corolário Trump à Doutrina Monroe”:
Depois de anos de negligência, os Estados Unidos vão reafirmar e impor a Doutrina Monroe para restaurar a preeminência americana no Hemisfério Ocidental, para nossa pátria e o nosso acesso às geografias-chave em toda a região. (p. 15)
O fato de classificar a nova estratégia para o hemisfério como sendo um “Corolário Trump à doutrina Monroe” já revela a imensa ignorância de seus formuladores, que exibem uma prepotência em relação ao Hemisfério que há muito tempo não se via na política externa regional do Big Brother. Começa pelo fato de que a Doutrina Monroe original (1823), uma mensagem do presidente ao Congresso, não se destinava a estabelecer qualquer preeminência americana no Hemisfério, mas estava dirigida aos absolutismos europeus da Santa Aliança, em suas pretensões de recolonizar suas antigas colônias ibero-americanas.
O fato de identificar o “corolário Trump” à Doutrina Monroe não tem absolutamente nada a ver com a original, já que esse “corolário” foi uma leitura acintosamente imperialista, introduzida pelo presidente Theodore Roosevelt, o líder dos “Rough Riders”, os voluntários americanos envolvidos na revolução cubana de 1898 e contemporâneos da guerra hispano-americana do mesmo ano. Ele era vice-presidente de McKinley, assassinado em 1901, e queria legitimar novas intervenções dos Estados Unidos nas ilhas do Caribe e nos países da América Central. Esse primeiro Roosevelt, tio de Franklin, era um imperialista desabrido que recomendava: “fale macio, mas carregue um grande porrete”. Ele não inaugurou, mas expandiu desavergonhadamente a era imperialista dos Estados Unidos, também analisada criticamente por Oliveira Lima, jovem secretário da legação brasileira em Washington, nos anos 1890, em seu primeiro livro “internacional”: Nos Estados Unidos: impressões políticas e sociais (1899; eu o fiz republicar pelo Senado Federal 110 anos depois, em 2009).
Sua “emenda” justificava não apenas o direito, mas o dever dos EUA de intervir nos assuntos domésticos das nações do continente em todos os casos nos quais o próprio governo americano considerasse que havia um perigo iminente de revoltas políticas ou qualquer outro tipo de desordem. Até aquele momento eram os europeus que continuavam a interferir nos assuntos internos de países da região, como ainda o fizeram em 1902-1903, na Venezuela, quando o presidente Cipriano Castro repudiou a dívida externa e barcos da Grã-Bretanha, da Alemanha e da Itália impuseram um bloqueio naval contra o país. Castro, uma espécie de Chávez avant la lettre, confiava em que, pela doutrina Monroe, os Estados Unidos não permitiriam uma invasão militar europeia, mas Roosevelt entendeu que se deveria apenas objetar a uma possível ocupação territorial, e não a uma intervenção militar. O governo americano assistiu de forma complacente ao bombardeio de Maracaibo, com o que Castro acedeu a um processo de arbitragem. O “corolário Roosevelt” emergiu na sequência dessa intervenção. O assunto foi tratado na segunda conferência da paz da Haia (1907), quando o chanceler argentino José Maria Drago propôs a não cobrança pela força de dívidas soberanas, mas os próprios Estados Unidos propunham a doutrina Porter, recomendando arbitragem antes do uso da força. Rui Barbosa estava lá e transmitiu suas impressões a Rio Branco.
Nas duas décadas seguintes, a cada conferência interamericana, os latino-americanos insistiam no fim das intervenções, sem sucesso porém. Apenas em 1934, o sobrinho Franklin Roosevelt, eleito presidente no ano anterior, preocupado com novas incursões europeias no que já era considerado um “quintal americano”, consentiu em substituir o “corolário” do tio pela Good Neighbor Policy, ainda assim longe do panamericanismo multilateral e respeitoso da independência dos “vizinhos” defendido pelo Brasil e alguns outros países. Na era da OEA, as intervenções militares foram menos frequentes; ainda assim ficaram à disposição do irmão maior, cada vez que ele julgasse necessário ou urgente: Cuba em 1961, República Dominicana em 1965 (com a participação da ditadura militar brasileira), depois Panamá, Granada e outras interferências clandestinas nos assuntos internos dos “países turbulentos”.
Na continuidade do primeiro parágrafo “hemisférico”, a truculência possessiva, unilateral e brutal, prossegue em toda a sua petulância:
Nós vamos denegar a competidores não-hemisféricos a possibilidade de posicionar forças ou outras capacidades ameaçadoras, ou possuir ou controlar ativos estratégicos vitais, em nosso [sic] Hemisfério. Este ‘Corolário Trump’ à Doutrina Monroe é uma restauração potente e de senso comum do poder e das prioridades americanas, consistente com os interesses da segurança americana. (p. 15).
Seguem-se três páginas sobre os métodos a serem utilizados para tal finalidade: recrutar e expandir, ou seja, a pretensão de incorporar e de ampliar “sócios” e “aliados na região para alcançar seus objetivos, como se os agentes trumpistas pudessem determinar sozinhos e unilateralmente o curso dos eventos, da evolução política e da sua própria interação no resto do continente. O recrutamento se daria pela seleção de amigos “para controlar a migração, eliminar o fluxo de drogas e para reforçar a estabilidade e a segurança em terra e no mar” (p. 16). O restante da seção é dedicado às várias tarefas do “Enlist and Expand”, inclusive o recrutamento de “campeões regionais” e alguma expansão em novas presenças militares na região, com ativação de guarda costeira e naval para o controle das rotas marítimas, chegando até ao uso de “força letal” para compensar o insucesso na manutenção da lei e da ordem.
A nova estratégia está destinada ao fracasso, e não apenas no Hemisfério Ocidental. Mas, enquanto durar o poder dos ignorantes no império declinante, ela está provavelmente destinada a provocar maiores fracassos e desapontamentos, para os próprios EUA, para os vizinhos ao sul do Rio Grande e no resto do mundo. A razão pode ser explicada pela própria concepção míope do documento: ele não parece ter tido o cuidado de “recrutar e expandir” o número e a diversidade de seus formuladores, mas permaneceu restrito ao pequeno núcleo de seguidores, bajuladores, conversos e submissos ao chefe autoritário, apenas focados em apresentar suas fantasias numa terminologia grandiosa, aparentemente triunfante, mas completamente artificial na situação atual de disputa de poder com outro grande império.
Logo após a seção dedicada ao Hemisfério Ocidental, o documento foca na Ásia, de onde virão provavelmente os piores fracassos da “estratégia”, baseada numa nova doutrina de “contenção”, simplesmente inaplicável, absurda e equivocada. A Europa, genericamente, vem em seguida, com todo o desprezo que lhe devotam os trumpistas-raiz. Os “aliados europeus”, hoje desprezados, não vão protestar pelo tratamento, porque seria politicamente incorreto e muito pouco diplomático.
A Rússia praticamente não é mencionada, a não ser quanto à necessidade de restabelecer a “estabilidade estratégica” com o invasor da Ucrânia, já pensando, provavelmente, na “estabilidade” dos novos e lucrativos negócios. O suposto “adversário”, a China, tampouco vai reagir; ao contrário, ficará quieto. Afinal de contas, como recomendou Sun Tzu (500 a.C.), não se deve fazer nada quando o seu “inimigo” estiver fazendo bobagens. Raras vezes na história mundial um grande império teve o cuidado de documentar e de registrar o caminho do seu próprio declínio.
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