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sábado, 11 de maio de 2013

A luta armada no Brasil: depoimento de um quase combatente (7) - Paulo Roberto de Almeida

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A luta armada no Brasil: depoimento de um quase combatente (7)
Paulo Roberto de Almeida
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Vamos tentar proceder de maneira sistemática para tornar o debate mais racional. Podemos, por exemplo, abordar a questão por meio das perguntas clássicas dos jornalistas, que também servem, com o acréscimo final da análise interpretativa, de guia para o historiador de um fato ou processo objetivo qualquer: o que, quando, onde, como e por que?
O que foi a luta armada no Brasil? Ela foi um empreendimento essencialmente artificial, conduzido por um reduzido número de militantes radicais que, interpretando mal os sinais de descontentamento de certa fração da comunidade politizada que tinha sido alijada do poder com a derrocada (quase sem traumas) do incompetente governo do presidente Goulart, resolveu passar à “ação”, não para se encaixar numa continuidade que poderia ser considerada “natural” da luta política – ou seja, um exercício de “resistência” incontornável em face de uma situação absolutamente opressiva – mas para atender a estímulos vindos de fora, basicamente das lideranças cubanas. Não havia, nem nunca houve sob o regime militar, um fechamento completo de todas as possibilidades de resistência e de luta política contra o governo, como o provam as inúmeras ações, processos e coalizões que se formaram para combatê-lo, seja por parte de forças políticas temporariamente alijadas do poder, seja ainda por frações da própria esquerda tradicional (o Partidão, por exemplo, que sempre condenou as ações dos guerrilheiros, chamando-os de “patriotas equivocados”).
Em outros termos, a luta armada não correspondia ao desdobramento natural, e necessário, em face de uma situação de bloqueio de todas as demais possibilidades de luta política para que fossem atingidos os fins pretendidos, sejam estes a “volta à democracia” – como alegam, hoje, mentirosamente, os derrotados vingativos –, sejam eles qualquer forma de “democracia popular” (como, aliás, vem ocorrendo hoje em diversos países da América Latina, pelo voto livre da população). O Brasil certamente não era a Argélia dos anos 1950, quando todas as possibilidades de autonomia tinham sido fechadas pelo colonizador; nem uma tirania despótica, como certos regimes asiáticos, ou mesmo latino-americanos, cuja caricatura foi feita em ampla literatura sobre os “supremos ditadores” da região. O Brasil dos militares era um regime modernizador autoritário, à la Bismarck, como aliás caracterizado em trabalhos de brasilianistas e como, justamente, consideravam ser uma “via rápida” e aceitável de modernização “pelo alto” personalidades da esquerda como Hélio Jaguaribe, por sinal exilado durante algum tempo por sua identificação com o governo anterior.
A luta armada no Brasil não se colocou, portanto, como a única via de luta política contra o regime militar e ela só veio a existir pela análise fundamentalmente errada que fizeram de sua dinâmica alguns líderes radicais da esquerda brasileira e pelo estímulo oportunista – pela sua própria necessidade de sobrevivência, num contexto relativamente hostil – que lhe deram os líderes comunistas cubanos. Sem esses dois elementos, o do equívoco de análise e o dos meios materiais e o incentivo político dos líderes cubanos – aliás muito admirados, e não só pelos engajados na luta armada, como por largas frações da juventude e da opinião pública mal informada, como até hoje, por sinal – a luta armada provavelmente jamais teria existido no Brasil.
Quando ela se desenvolveu? Praticamente desde o início – por despeito de líderes que se pretendiam maiores do que efetivamente eram, como Brizola, por exemplo – e bem antes, em 1965 para ser mais exato, quando o regime estava longe de ser aquele monstro repressivo apontado numa historiografia enviesada, totalmente equivocada e, de fato, intelectualmente desonesta em relação à verdade. A repressão do regime militar se desenvolveu depois, não antes, que a guerrilha urbana começasse suas ações, e esteve em atraso durante praticamente dois anos, até que sua organização tardia passasse a demonstrar alguma efetividade prática. Ou seja, não foi a repressão política do regime que provocou a guerrilha supostamente de resistência contra um “governo opressivo”, e sim o deslanche de operações armadas, quando o governo tentava uma espécie de “reconstitucionalização” do regime – por meio da nova Carta aprovada em 1967 – que incitou, na verdade obrigou, o governo a reagir contra os grupos armados. Essa cronologia, absolutamente objetiva e aderente aos fatos, precisa ser lembrada, para que os derrotados vingativos não aleguem que não lhes restava outra opção (de luta política) que a luta armada contra um regime ditatorial.
Os militares brasileiros nunca foram os golpistas tirânicos ou despóticos que essa historiografia maldosa insiste em proclamar. Desde o início de seu envolvimento nos processos de governança – praticamente com o golpe militar que derrocou a monarquia, aliás sem o desejar, e inaugurou a República – as forças armadas, por vias institucionais, ou por revoltas de oficiais subalternos, sempre buscaram atender aos reclamos de uma classe média desejosa de mais liberdade, mais transparência política, mais honestidade eleitoral e, sobretudo, de preservação da ordem e dos fundamentos mínimos da normalidade política e econômica. Foi assim nas revoltas dos anos 1920, na sua posição “atentista” em relação à revolução da Aliança Liberal em 1930, na defesa da unidade nacional em 1932, na intentona comandada do exterior em 1935, na derrocada do ditador em 1945, e em algumas ações de estabilização nos anos 1950, antes da decisão (aliás não unânime) de marchar contra o governo em 1964; foi bem menos no golpe estado-novista de 1937 e em algumas revoltas episódicas dos anos 1950, mas sem que o espirito legalista das FFAA deixasse de se manifestar, sempre em defesa da ordem e da unidade nacional. Mesmo durante o regime “militar” de 1964 a 1985, o registro é de uma predominância civil nos gabinetes e um cuidado legalista bastante pronunciado, com a emissão de atos institucionais em conjunturas precisas, sem o arbítrio (e até a selvageria) a que se assistiu em diversos outros episódios de triste memória na história de nossos vizinhos latino-americanos. De forma geral, não há comparação possível entre a chamada “ditabranda” brasileira – apenas episodicamente mais dura – e as ferozes ditaduras militares em alguns desses países, como tampouco há qualquer similitude, absoluta ou relativa, entre o número de “vítimas” que se pode honestamente computar num e noutros casos.

(Continua...) 

A luta armada no Brasil: depoimento de um quase combatente (6) - Paulo Roberto de Almeida

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A luta armada no Brasil: depoimento de um quase combatente (6)
 Paulo Roberto de Almeida
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A luta armada e os derrotados vingativos: uma reflexão pessoal
A luta armada no Brasil, à diferença de outros experimentos guerrilheiros na América Latina, e de guerras civis na Ásia ou na África, foi relativamente breve, pouco cruenta e atingiu uma fração mínima da população, se é que se pode falar em população, no caso de umas poucas centenas de engajados ativos em seus diversos exercícios tentativos e alguns milhares de militares e policiais dedicados à sua repressão. Ela pode ter uma extensão maior, se considerarmos os primeiros ensaios, quase patéticos, dos brizolistas na imediata sequência da mudança de regime em 1964. No seu conceito mais restrito, porém, consistindo nas diversas iniciativas de inspiração cubana, de natureza mais urbana do que rural, ela durou, provavelmente, menos de seis anos, aos quais podem ser acrescentados os quatro ou cinco de guerrilha “maoísta” nas selvas do Araguaia, até meados da década seguinte. A maior parte desses experimentos foi bisonha, com muita improvisação, quase nenhuma inspiração, alguma transpiração, mas a repressão, no começo despreparada, foi brutal e eficaz: todos os focos, nas cidades e nos campos, foram eliminados a partir do planejamento e do engajamento dos militares nas tarefas da repressão direta, que contou mais com força bruta do que propriamente com inteligência: ela também foi feita mais de transpiração do que de inspiração.
Não tendo sido um protagonista direto, mas somente um espectador engajado num dos lados da contenda, e isso apenas tentativamente, sem jamais ter passado às vias de fato, ou seja, assumido responsabilidades de “combate”, talvez eu não seja a pessoa mais qualificada para oferecer meu testemunho sobre os chamados “anos de chumbo”, inclusive porque estava fora do país nos momentos mais repressivos do regime militar. Sou inclusive suspeito para me pronunciar, em razão da minha postura essencialmente crítica em relação ao que nós, da esquerda, fizemos, como provocação inútil, caótica, quixotesca, ao regime militar, que de outra forma não teria embarcado (disso tenho certeza) na voragem arbitrária de uma repressão que em alguns momentos assumiu características selvagens, quando os militares achavam que os pobres guerrilheiros, que éramos nós, representavam um perigo real para o regime e para a sociedade. Infelizmente, quase toda a historiografia em torno dessa fase menos dignificante da história brasileira é muito enviesada, para ser considerada seriamente numa avaliação isenta sobre o período e seu impacto para o presente. Mas tentarei oferecer uma reflexão isenta sobre a questão, como forma de testemunhar sobre um passado a que assisti, e que considero deva ser totalmente superado, para que o Brasil avance olhando para a frente, não para trás.

A luta armada, como disse, obedeceu, com a exceção do episódio maoísta no interior do Brasil, a uma inspiração essencialmente cubana, ainda que métodos, situações políticas e, obviamente, elementos humanos tenham sido totalmente diversos no Brasil do que foi a guerra de guerrilhas em Cuba, que teria supostamente servido de modelo para os empreendimentos realizados no Brasil de meados dos anos 1960 ao início da década seguinte. A revolução cubana foi, de fato, um fenômeno eletrizante no contexto latino-americano, bem mais do que sua importância real na história política do século 20 ou sua capacidade de transformar significativamente a realidade nos países da região. Todos os experimentos realizados sob sua inspiração direta – e na maior parte dos casos com seu apoio material – fracassaram: ou foram fragorosamente derrotados militarmente, ou se extinguiram por ineficácia prática, ou, ainda, sobreviveram apenas como deformação grotesca do projeto original, como no caso dos narco-guerrilheiros da Colômbia e do Peru, convertidos em meros criminosos, traficantes e sequestradores.
No Brasil, sua importância foi bastante reduzida, em termos práticos, ainda que a própria esquerda, e seus escribas gramscianos, e também os militares, tenham a ela atribuído uma relevância histórica que efetivamente não tem. A luta armada foi um fenômeno marginal, e os poucos casos de terrorismo mais marginais ainda, mas uma história isenta, completa, não passional, de todos os seus aspectos ainda esteja para ser escrita. Ela não foi tão traumática quanto o foi na Argentina, no Chile, no Peru e na Colômbia, para ficar nos casos mais relevantes, nem todos similares em dimensão, características e impacto residual, ou permanente. Em vários desses países, o grau de repressão foi tão vasto, que mesmo as lideranças políticas mais moderadas tiveram de acenar com algum “julgamento da História”, quando não com julgamentos reais. Este talvez seja um dos falsos “problemas” vinculados a uma avaliação isenta da luta armada no Brasil: mesmo não tendo a importância histórica, e um impacto efetivo num largo número de indivíduos, como nos casos acima mencionados – e estando muito longe de assumir a dimensão social de um fenômeno como o do Apartheid, na África do Sul – não parece haver justificativa razoável para a instalação de uma “comissão da verdade” ou sequer de julgamentos a posteriori, como reclamam os derrotados vingativos.
No Brasil, isso não se justificaria, e as tentativas atuais de se retomar os erros do passado – de um só lado, diga-se de passagem – estão condenadas ao repúdio da maior parte da cidadania, ainda que possam provocar algum alarido jornalístico e talvez algum desconforto momentâneo do lado das antigas “forças repressoras”. Meu julgamento pessoal é o de que o governo atual – composto exatamente por grande número de personagens vinculados à esquerda armada do passado – está criando um problema para si mesmo, e para o que lhe suceder, na tentativa de contemplar as demandas daqueles a quem chamo de “derrotados vingativos”, por não terem aceito o julgamento da história e por pretenderem, de maneira reacionária, fazer girar para trás a roda da História. Mas vejamos quais seriam os argumentos que sustentam a minha tese.

(Continua...) 

A luta armada no Brasil: depoimento de um quase combatente (5) - Paulo Roberto de Almeida

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A luta armada no Brasil: depoimento de um quase combatente (5)
 Paulo Roberto de Almeida

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Nessa altura do meu itinerário europeu, eu já havia deixado de ser um candidato a “revolucionário profissional” – se é que o fui – para me tornar apenas um socialista reformista, desses que podiam debater o ridículo que era a posição dos eurocomunistas – ainda defendendo o que restava de socialismo real – e proclamar, por outro lado, as virtudes do socialismo moderado, à la francesa (ou seja, ainda com muita estatização, vários controles sociais e todas as bobagens que os socialistas são capazes de cometer).
O importante, na verdade, não era tanto a crença do momento, mas o sentido da busca, constante, incessante, regular e intensa, nos livros, nas discussões acadêmicas de qualidade, a pesquisa sobre as melhores formas de organizar a economia e a sociedade, sem sacrificar a liberdade e a democracia. Mas, cabe registrar que estas mesmas palavras ainda revelam o viés indisfarçável do autoritarismo em semente, ou residual: “organizar a economia”, como se ela não pudesse existir sem as “correções estatais” aos “mercados anárquicos”, “melhorar a sociedade”, enfim, todo um resquício de engenharia social, típicas de todos os socialistas e estatizantes, concepções das quais eu só iria me libertar quando engajei uma pesquisa séria para o doutorado.
Dei início a um doutorado no final de 1976, depois de uma graduação e de um mestrado feitos sem muitos cuidados propriamente acadêmicos, mas com extremo autodidatismo e um grande sentido de responsabilidade, na elaboração do “Mémoire de Licence” (sobre a ideologia e a política do desenvolvimento brasileiro, de 1945 a 1964) e da dissertação de mestrado (sobre o comércio exterior brasileiro sob o impacto das políticas dos anos 1960 e do primeiro choque do petróleo, em 1973). O projeto de tese, centrado na noção de “revolução burguesa”, ainda era razoavelmente poulantziano e intensamente florestânico, já que a intenção era “provar”, com Florestan ou sem ele, que o capitalismo no Brasil tendia para o autoritarismo e para as desigualdades estruturais (ainda que eu não acreditasse muito nessa história de dependência, que sempre achei uma espécie de revisionismo mal feito do marxismo). Mas a tese de doutorado ficaria temporariamente interrompida, pois, depois de quase sete anos de exterior, planejei voltar ao Brasil, num momento em que as promessas de abertura feitas pelo general Geisel pareciam reais e sinceras.
Logo depois de minha volta, em fevereiro ou março de 1977, sobreveio o “golpe de abril”, com novo fechamento do Congresso, novas cassações e mais um curto ciclo repressivo – inclusive com a tentativa de golpe do general Frota – antes da gradual abertura preparada por Geisel e aplicada, erraticamente, por Figueiredo. Eu já estava no Brasil, e mesmo que pretendesse, ainda, “derrubar a ditadura”, já não se tratava mais de decretar a ditadura do proletariado e construir o socialismo, e sim administrar um reformismo avançado nos quadros de um capitalismo possível, ou seja, com todas as contradições que a economia de mercado possui num país altamente estatizado como era o Brasil. Sim, a despeito de ser ainda um socialista moderado, minhas inclinações anarquistas e libertárias me faziam ser contra um papel muito preeminente para o Estado, justamente por ter assistido às misérias do Estado todo poderoso nos tristes e lamentáveis experimentos da Europa oriental e da União Soviética (eu tinha poucas informações sobre a China, nessa época, pois ela se tinha fechado para a Revolução Cultural durante quase toda a década, mas conhecia os livros de Alain Peyrefitte e de Simon Leis, sobre as realidades detrás da “cortina de bambu”).
Não é o caso de refazer aqui, esta parte de meu itinerário acadêmico e profissional, dominado pelo ingresso na carreira diplomática e pela retomada do doutoramento, já num sentido completamente diferente daquele traçado no projeto original, inclusive porque isso seria um tanto enfadonho e nos desviaria do debate sobre o tema selecionado para este ensaio: uma reflexão sobre a luta armada e seu peso, ainda hoje, na política brasileira contemporânea. Interrompo, portanto, a descrição de minha jornada intelectual em direção a uma modesta racionalidade instrumental e retomo a discussão sobre um dos mais importantes elementos de anomia na atual situação política brasileira: a tentativa que fazem os derrotados de 1964, de 1968 e do início dos anos 1970 – entre os quais eu poderia facilmente me incluir, se não tivesse esse sentido de autocrítica que parece faltar a certos personagens da política atual – de retornar ao passado para se vingar de quem os impediu de perpetrar seus projetos de engenharia social (e de miséria moral, nos campos político e social).

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A luta armada no Brasil: depoimento de um quase combatente (4) - Paulo Roberto de Almeida

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A luta armada no Brasil: depoimento de um quase combatente (4)
Paulo Roberto de Almeida

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Os anos 1970: do Brasil para o mundo
Vendi alguns poucos pertences, retirei meu FGTS, comprei uma passagem de terceira classe num navio espanhol, e saí do Brasil, no final do ano, pouco antes de um novo sequestro de embaixador, desta vez para libertar mais algumas dezenas de companheiros presos: a relação de troca estava cada vez mais alta, pois já devia ter mais companheiros na cadeia do que fora dela. Conclui que minha decisão fora acertada, mas ela foi menos no país de destino inicial: a Tchecoslováquia, recém saída da invasão soviética de agosto de 1968, e entregue a uma restalinização exemplar. Passei o inverno do início de 1971 em Praga, bela capital, mas como todas as capitais socialistas ainda trazendo algumas velhas marcas da guerra (que ali não eram importantes) e as novas marcas da deterioração socialista, com suas igrejas em ruinas ou fechadas, as ruas mal pavimentadas, os prédios públicos e privados sem tinta, sem reboco, janelas quebradas, enfim, a paisagem normal do socialismo burocrático.
A estada de três meses no socialismo real permitiu-me constatar, em primeiro lugar, que o socialismo era surreal. A propósito, visitei o Castelo de Praga, e a casa de Franz Kafka, adjacente, e aproveitei para ler O Processo, numa edição cubana da Casa de las Américas (que depois nunca mais publicou nada do gênero). Pareceu-me absolutamente fiel ao que eu estava vendo, todos os dias, nas filas intermináveis para comprar dois potinhos de iogurte búlgaro, nas estantes vazias dos supermercados, nos restaurantes com plaquetas de “Reservacje” em quase todas as mesas – “para que trabalhar, não é mesmo?, se o salario é o mesmo no final do mês?” – e aquele clima de medo, de intimidação, de denúncia, sem saber de onde, nem porque. Enfim, um Kafka perfeito, para ninguém botar defeito, se vocês percebem a ironia.
O que, além de tudo, eu mais descobri foi que, pior do que a miséria material, muito pior do que a falta de produtos, de calefação, dos mínimos serviços que você está em direito de esperar, mesmo num país subdesenvolvido como o Brasil, o que mais caracterizava o socialismo era a miséria espiritual, a miséria moral na qual viviam as pessoas, simples cidadãos, não especialmente politizados, apenas cidadãos comuns, querendo apenas viver a sua vida, sem se opor ao socialismo, às autoridades, nada; apenas uma miséria kafkiana.
Isso eu descobri ao frequentar a biblioteca da Alliance Française, de Praga, um dos únicos lugares onde se podia ler jornais ocidentais naquele canto do socialismo (o outro devia ser a biblioteca da Usia, da embaixada americana, que eu não frequentava, pois o meu inglês era muito pior do que o meu francês). Ao conversar com as velhinhas tchecas, que ali estavam não exatamente para ler o Le Monde, como eu fazia, mas apenas para poupar o carvão de casa (se é que o tinham), para se aquecer, simplesmente, naquele inverno de -10o, eu descobri que, realmente, muito pior do que a miséria material do socialismo real, era a real miséria moral na qual viviam todos eles, simples cidadãos e altos dirigentes políticos, todos obrigados a viver, a conviver, a suportar uma mentira imensa, todos os dias: a da democracia socialista, a do regime da igualdade social, do proletariado, do progresso, da paz e da solidariedade. Creio que foi ali, há poucas semanas de saído do Brasil capitalista, opressivo, desigual e ditatorial, foi ali que eu aprendi que o socialismo era muito pior; com isso fui temperando minhas crenças nas verdades infalíveis da história e revisando todas as minhas concepções sobre o mundo, sobre a economia, sobre a política, sobre a vida dos homens, enfim.
Larguei o socialismo real em três meses, e fui para o capitalismo ideal, não o da Suíça, que eu não tinha dinheiro nem contatos para fazê-lo, mas o da Bélgica, um pequeno país, meio francófono, meio flamengo, belgicano em suas cervejas e manias, mas ideal do meu ponto de vista: vida mais barata, podendo trabalhar e estudar ao mesmo tempo, o que me permitiu retomar minhas afinidades eletivas algo abandonadas desde vários meses: ler, refletir, resumir o que estava lendo, pensar muito no mundo, e retomar as bases de minhas concepções sobre a vida social, a política e a economia. Depois de inscrever-me novamente no curso de Ciências Sociais da Universidade Livre de Bruxelas – ah, esses sociólogos que sempre querem revolucionar o mundo – passei mais tempo lendo livros, jornais e revistas na biblioteca do Institut de Sociologie, do que propriamente assistindo aulas, que achava chatas e aborrecidas, com muito poucas exceções. Tracei um imenso programa de leituras – ainda razoavelmente marxista, mas já aberto aos “inimigos de classe”, como Raymond Aron e outros – e o cumpri pela metade, perdendo a outra na leitura de jornais e revistas e na retomada de contatos “revolucionários”. Eu ainda não havia abandonado todas as ilusões...
Creio que cheguei a me tornar um expert em Terceiro Mundo, tal a quantidade de leituras que devorei sobre a África, a Ásia e a América Latina. O ambiente ajudava: dezenas de estudantes estrangeiros, protestos contra a guerra do Vietnã, contra Israel, contra as ditaduras latino-americanas (Brasil certamente, mas o Chile teve de esperar mais um pouco), conferências e palestras dos mais finos marxistas, trotskistas, anarquistas (menos), e também estruturalistas, claro, pois essas pragas nunca acontecem sozinhas. Fui refinando minha leitura do mundo e das oposições políticas: eu ainda era marxista, obviamente, mas já não tinha certeza de ser leninista ou guevarista: leituras de Soljenitsin, do grupo “Socialismo ou Barbárie” e outros dissidentes do socialismo real, o conhecimento direto da nomenklatura e do seu modo hipócrita de reprodução, tudo isso me fazia refletir sobre como o mundo era mais complicado do que nossas pobres elaborações mentais sobre as desigualdades do capitalismo brasileiro e sua situação de “dependência” em relação ao imperialismo.
Duas outras atividades me ocuparam intensamente durante meus anos belgas, além do estudo, claro, menos na sala de aula e mais nas bibliotecas: viagens e trabalho “revolucionário”. As viagens eram de estudante, muitas de carona, ou de oportunidade, sempre que podiam ser combinadas ao trabalho “revolucionário”. Esse, na verdade, se limitava a repassar informações sobre a repressão no Brasil a jornalistas e aos habituais simpatizantes do Terceiro Mundo, como sempre se encontram nas economias ricas do capitalismo avançado. Colaborava, mais ou menos informalmente, com a Frente Brasileira de Informações, animada por exilados brasileiros um pouco em todos os países da Europa ocidental e apoiada em dinheiro e meios materiais dos esquerdistas e simpatizantes europeus.
Na verdade, esse trabalho de denúncia da repressão no Brasil nunca me atraiu especialmente, pois eu preferia aprofundar a discussão e a análise sobre as razões e os fundamentos de o Brasil ser o que é: país dependente?; sub-imperialista?; atrasado ainda que industrializado?; desigual, certamente, mas tão ditatorial quanto o socialismo real, que eu havia visto na Tchecoslováquia, depois na União Soviética e em outros países da chamada “cortina de ferro”? Todas essas questões eu me colocava todos os dias, quando adentrava uma biblioteca – e foram muitas – e percorria as fichas ou as estantes em busca de respostas nos livros e nos artigos de revistas especializadas, em várias línguas. Aprendi a ler – apenas ler – em várias línguas, e devorava tudo o que me caia sob as mãos, sobretudo gratuitamente nas bibliotecas ou nos centros de pesquisa: ainda me permitia gastar meus poucos tostões no Le Monde, algumas vezes por semana (e sempre na sexta, para o Le Monde des Livres), e no Le Monde Diplomatique (que considero ser, hoje, apenas um jornalzinho esquerdista simplista). Eu preferia escrever artigos de corte mais acadêmico, e lembro-me de ter publicado, gloriosamente, meus primeiros artigos em francês (revisto por um jornalista belga), um pequeno, sobre o “arrocho salarial” no Brasil e outro, mais alentado, sobre o Estado “fascista” militar. Nada que eu possa me orgulhar, atualmente, mas pelo menos feitos com pesquisa, dados e argumentos, ainda que falhos, no segundo caso.
Além de frequentar bibliotecas, ler e escrever – enchi vários cadernos de notas manuscritas, com resumos de livros, notas para artigos, simples observações casuais – o que mais fiz, além de pensar sobre tudo isso, foi viajar, para todas as partes acessíveis ao meu pequeno orçamento de estudante trabalhador (sim, passei todo o verão de 1972 lavando pratos na Suécia, o que me deu renda para quase um ano inteiro). Viajei para conhecer outros socialismos reais, e alguns surreais, e também os capitalismos dos diversos países da Europa, sempre um mosaico de culturas e de problemas. A Itália não era muito diferente do Brasil, no seu caos burocrático, apenas mais rica e agradável; a Inglaterra já estava há vários anos em decadência, e em algumas visitas me pareceu estar entrando num país do Terceiro Mundo; a França sempre orgulhosa, ainda que arrogante, a Alemanha e a Suíça, muito prussianas para o meu gosto, mas pujantes, em sua riqueza brilhante, toda a cheirar cobre. Em face da abundância capitalista, os países socialistas não eram sequer de uma pobreza franciscana, mas tampouco era africana: eles eram apenas bregas, kitsch, totalmente defasados em relação à modernidade, com os seus pepinos em lata, seus repolhos mal cheirosos, suas salsichas horríveis e seus carrinhos Lada impressionantes de atrasados. Quanto tive dinheiro para comprar um Citroen Dois Cavalos (daqueles que a porta abria para a frente) e viajei novamente a Praga, fiz sensação na cidade. Enfim, o socialismo era de uma mediocridade terrível.

(Continua...)