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sábado, 11 de maio de 2013

A luta armada no Brasil: depoimento de um quase combatente (4) - Paulo Roberto de Almeida

Continuação do post anterior.

A luta armada no Brasil: depoimento de um quase combatente (4)
Paulo Roberto de Almeida

(...)

Os anos 1970: do Brasil para o mundo
Vendi alguns poucos pertences, retirei meu FGTS, comprei uma passagem de terceira classe num navio espanhol, e saí do Brasil, no final do ano, pouco antes de um novo sequestro de embaixador, desta vez para libertar mais algumas dezenas de companheiros presos: a relação de troca estava cada vez mais alta, pois já devia ter mais companheiros na cadeia do que fora dela. Conclui que minha decisão fora acertada, mas ela foi menos no país de destino inicial: a Tchecoslováquia, recém saída da invasão soviética de agosto de 1968, e entregue a uma restalinização exemplar. Passei o inverno do início de 1971 em Praga, bela capital, mas como todas as capitais socialistas ainda trazendo algumas velhas marcas da guerra (que ali não eram importantes) e as novas marcas da deterioração socialista, com suas igrejas em ruinas ou fechadas, as ruas mal pavimentadas, os prédios públicos e privados sem tinta, sem reboco, janelas quebradas, enfim, a paisagem normal do socialismo burocrático.
A estada de três meses no socialismo real permitiu-me constatar, em primeiro lugar, que o socialismo era surreal. A propósito, visitei o Castelo de Praga, e a casa de Franz Kafka, adjacente, e aproveitei para ler O Processo, numa edição cubana da Casa de las Américas (que depois nunca mais publicou nada do gênero). Pareceu-me absolutamente fiel ao que eu estava vendo, todos os dias, nas filas intermináveis para comprar dois potinhos de iogurte búlgaro, nas estantes vazias dos supermercados, nos restaurantes com plaquetas de “Reservacje” em quase todas as mesas – “para que trabalhar, não é mesmo?, se o salario é o mesmo no final do mês?” – e aquele clima de medo, de intimidação, de denúncia, sem saber de onde, nem porque. Enfim, um Kafka perfeito, para ninguém botar defeito, se vocês percebem a ironia.
O que, além de tudo, eu mais descobri foi que, pior do que a miséria material, muito pior do que a falta de produtos, de calefação, dos mínimos serviços que você está em direito de esperar, mesmo num país subdesenvolvido como o Brasil, o que mais caracterizava o socialismo era a miséria espiritual, a miséria moral na qual viviam as pessoas, simples cidadãos, não especialmente politizados, apenas cidadãos comuns, querendo apenas viver a sua vida, sem se opor ao socialismo, às autoridades, nada; apenas uma miséria kafkiana.
Isso eu descobri ao frequentar a biblioteca da Alliance Française, de Praga, um dos únicos lugares onde se podia ler jornais ocidentais naquele canto do socialismo (o outro devia ser a biblioteca da Usia, da embaixada americana, que eu não frequentava, pois o meu inglês era muito pior do que o meu francês). Ao conversar com as velhinhas tchecas, que ali estavam não exatamente para ler o Le Monde, como eu fazia, mas apenas para poupar o carvão de casa (se é que o tinham), para se aquecer, simplesmente, naquele inverno de -10o, eu descobri que, realmente, muito pior do que a miséria material do socialismo real, era a real miséria moral na qual viviam todos eles, simples cidadãos e altos dirigentes políticos, todos obrigados a viver, a conviver, a suportar uma mentira imensa, todos os dias: a da democracia socialista, a do regime da igualdade social, do proletariado, do progresso, da paz e da solidariedade. Creio que foi ali, há poucas semanas de saído do Brasil capitalista, opressivo, desigual e ditatorial, foi ali que eu aprendi que o socialismo era muito pior; com isso fui temperando minhas crenças nas verdades infalíveis da história e revisando todas as minhas concepções sobre o mundo, sobre a economia, sobre a política, sobre a vida dos homens, enfim.
Larguei o socialismo real em três meses, e fui para o capitalismo ideal, não o da Suíça, que eu não tinha dinheiro nem contatos para fazê-lo, mas o da Bélgica, um pequeno país, meio francófono, meio flamengo, belgicano em suas cervejas e manias, mas ideal do meu ponto de vista: vida mais barata, podendo trabalhar e estudar ao mesmo tempo, o que me permitiu retomar minhas afinidades eletivas algo abandonadas desde vários meses: ler, refletir, resumir o que estava lendo, pensar muito no mundo, e retomar as bases de minhas concepções sobre a vida social, a política e a economia. Depois de inscrever-me novamente no curso de Ciências Sociais da Universidade Livre de Bruxelas – ah, esses sociólogos que sempre querem revolucionar o mundo – passei mais tempo lendo livros, jornais e revistas na biblioteca do Institut de Sociologie, do que propriamente assistindo aulas, que achava chatas e aborrecidas, com muito poucas exceções. Tracei um imenso programa de leituras – ainda razoavelmente marxista, mas já aberto aos “inimigos de classe”, como Raymond Aron e outros – e o cumpri pela metade, perdendo a outra na leitura de jornais e revistas e na retomada de contatos “revolucionários”. Eu ainda não havia abandonado todas as ilusões...
Creio que cheguei a me tornar um expert em Terceiro Mundo, tal a quantidade de leituras que devorei sobre a África, a Ásia e a América Latina. O ambiente ajudava: dezenas de estudantes estrangeiros, protestos contra a guerra do Vietnã, contra Israel, contra as ditaduras latino-americanas (Brasil certamente, mas o Chile teve de esperar mais um pouco), conferências e palestras dos mais finos marxistas, trotskistas, anarquistas (menos), e também estruturalistas, claro, pois essas pragas nunca acontecem sozinhas. Fui refinando minha leitura do mundo e das oposições políticas: eu ainda era marxista, obviamente, mas já não tinha certeza de ser leninista ou guevarista: leituras de Soljenitsin, do grupo “Socialismo ou Barbárie” e outros dissidentes do socialismo real, o conhecimento direto da nomenklatura e do seu modo hipócrita de reprodução, tudo isso me fazia refletir sobre como o mundo era mais complicado do que nossas pobres elaborações mentais sobre as desigualdades do capitalismo brasileiro e sua situação de “dependência” em relação ao imperialismo.
Duas outras atividades me ocuparam intensamente durante meus anos belgas, além do estudo, claro, menos na sala de aula e mais nas bibliotecas: viagens e trabalho “revolucionário”. As viagens eram de estudante, muitas de carona, ou de oportunidade, sempre que podiam ser combinadas ao trabalho “revolucionário”. Esse, na verdade, se limitava a repassar informações sobre a repressão no Brasil a jornalistas e aos habituais simpatizantes do Terceiro Mundo, como sempre se encontram nas economias ricas do capitalismo avançado. Colaborava, mais ou menos informalmente, com a Frente Brasileira de Informações, animada por exilados brasileiros um pouco em todos os países da Europa ocidental e apoiada em dinheiro e meios materiais dos esquerdistas e simpatizantes europeus.
Na verdade, esse trabalho de denúncia da repressão no Brasil nunca me atraiu especialmente, pois eu preferia aprofundar a discussão e a análise sobre as razões e os fundamentos de o Brasil ser o que é: país dependente?; sub-imperialista?; atrasado ainda que industrializado?; desigual, certamente, mas tão ditatorial quanto o socialismo real, que eu havia visto na Tchecoslováquia, depois na União Soviética e em outros países da chamada “cortina de ferro”? Todas essas questões eu me colocava todos os dias, quando adentrava uma biblioteca – e foram muitas – e percorria as fichas ou as estantes em busca de respostas nos livros e nos artigos de revistas especializadas, em várias línguas. Aprendi a ler – apenas ler – em várias línguas, e devorava tudo o que me caia sob as mãos, sobretudo gratuitamente nas bibliotecas ou nos centros de pesquisa: ainda me permitia gastar meus poucos tostões no Le Monde, algumas vezes por semana (e sempre na sexta, para o Le Monde des Livres), e no Le Monde Diplomatique (que considero ser, hoje, apenas um jornalzinho esquerdista simplista). Eu preferia escrever artigos de corte mais acadêmico, e lembro-me de ter publicado, gloriosamente, meus primeiros artigos em francês (revisto por um jornalista belga), um pequeno, sobre o “arrocho salarial” no Brasil e outro, mais alentado, sobre o Estado “fascista” militar. Nada que eu possa me orgulhar, atualmente, mas pelo menos feitos com pesquisa, dados e argumentos, ainda que falhos, no segundo caso.
Além de frequentar bibliotecas, ler e escrever – enchi vários cadernos de notas manuscritas, com resumos de livros, notas para artigos, simples observações casuais – o que mais fiz, além de pensar sobre tudo isso, foi viajar, para todas as partes acessíveis ao meu pequeno orçamento de estudante trabalhador (sim, passei todo o verão de 1972 lavando pratos na Suécia, o que me deu renda para quase um ano inteiro). Viajei para conhecer outros socialismos reais, e alguns surreais, e também os capitalismos dos diversos países da Europa, sempre um mosaico de culturas e de problemas. A Itália não era muito diferente do Brasil, no seu caos burocrático, apenas mais rica e agradável; a Inglaterra já estava há vários anos em decadência, e em algumas visitas me pareceu estar entrando num país do Terceiro Mundo; a França sempre orgulhosa, ainda que arrogante, a Alemanha e a Suíça, muito prussianas para o meu gosto, mas pujantes, em sua riqueza brilhante, toda a cheirar cobre. Em face da abundância capitalista, os países socialistas não eram sequer de uma pobreza franciscana, mas tampouco era africana: eles eram apenas bregas, kitsch, totalmente defasados em relação à modernidade, com os seus pepinos em lata, seus repolhos mal cheirosos, suas salsichas horríveis e seus carrinhos Lada impressionantes de atrasados. Quanto tive dinheiro para comprar um Citroen Dois Cavalos (daqueles que a porta abria para a frente) e viajei novamente a Praga, fiz sensação na cidade. Enfim, o socialismo era de uma mediocridade terrível.

(Continua...)

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