Continuação do post anterior.
A luta armada no Brasil: depoimento de um quase combatente (4)
Paulo Roberto de Almeida
(...)
Os anos 1970: do Brasil para o mundo
Vendi alguns poucos
pertences, retirei meu FGTS, comprei uma passagem de terceira classe num navio
espanhol, e saí do Brasil, no final do ano, pouco antes de um novo sequestro de
embaixador, desta vez para libertar mais algumas dezenas de companheiros
presos: a relação de troca estava cada vez mais alta, pois já devia ter mais
companheiros na cadeia do que fora dela. Conclui que minha decisão fora
acertada, mas ela foi menos no país de destino inicial: a Tchecoslováquia,
recém saída da invasão soviética de agosto de 1968, e entregue a uma
restalinização exemplar. Passei o inverno do início de 1971 em Praga, bela
capital, mas como todas as capitais socialistas ainda trazendo algumas velhas
marcas da guerra (que ali não eram importantes) e as novas marcas da
deterioração socialista, com suas igrejas em ruinas ou fechadas, as ruas mal
pavimentadas, os prédios públicos e privados sem tinta, sem reboco, janelas
quebradas, enfim, a paisagem normal do socialismo burocrático.
A estada de três meses no
socialismo real permitiu-me constatar, em primeiro lugar, que o socialismo era
surreal. A propósito, visitei o Castelo de Praga, e a casa de Franz Kafka,
adjacente, e aproveitei para ler O
Processo, numa edição cubana da Casa de las Américas (que depois nunca mais
publicou nada do gênero). Pareceu-me absolutamente fiel ao que eu estava vendo,
todos os dias, nas filas intermináveis para comprar dois potinhos de iogurte
búlgaro, nas estantes vazias dos supermercados, nos restaurantes com plaquetas
de “Reservacje” em quase todas as mesas – “para que trabalhar, não é mesmo?, se
o salario é o mesmo no final do mês?” – e aquele clima de medo, de intimidação,
de denúncia, sem saber de onde, nem porque. Enfim, um Kafka perfeito, para
ninguém botar defeito, se vocês percebem a ironia.
O que, além de tudo, eu
mais descobri foi que, pior do que a miséria material, muito pior do que a
falta de produtos, de calefação, dos mínimos serviços que você está em direito
de esperar, mesmo num país subdesenvolvido como o Brasil, o que mais
caracterizava o socialismo era a miséria espiritual, a miséria moral na qual
viviam as pessoas, simples cidadãos, não especialmente politizados, apenas
cidadãos comuns, querendo apenas viver a sua vida, sem se opor ao socialismo,
às autoridades, nada; apenas uma miséria kafkiana.
Isso eu descobri ao
frequentar a biblioteca da Alliance Française, de Praga, um dos únicos lugares
onde se podia ler jornais ocidentais naquele canto do socialismo (o outro devia
ser a biblioteca da Usia, da embaixada americana, que eu não frequentava, pois
o meu inglês era muito pior do que o meu francês). Ao conversar com as
velhinhas tchecas, que ali estavam não exatamente para ler o Le Monde, como eu fazia, mas apenas para
poupar o carvão de casa (se é que o tinham), para se aquecer, simplesmente,
naquele inverno de -10o, eu descobri que, realmente, muito pior do
que a miséria material do socialismo real, era a real miséria moral na qual
viviam todos eles, simples cidadãos e altos dirigentes políticos, todos
obrigados a viver, a conviver, a suportar uma mentira imensa, todos os dias: a
da democracia socialista, a do regime da igualdade social, do proletariado, do
progresso, da paz e da solidariedade. Creio que foi ali, há poucas semanas de
saído do Brasil capitalista, opressivo, desigual e ditatorial, foi ali que eu
aprendi que o socialismo era muito pior; com isso fui temperando minhas crenças
nas verdades infalíveis da história e revisando todas as minhas concepções
sobre o mundo, sobre a economia, sobre a política, sobre a vida dos homens,
enfim.
Larguei o socialismo real
em três meses, e fui para o capitalismo ideal, não o da Suíça, que eu não tinha
dinheiro nem contatos para fazê-lo, mas o da Bélgica, um pequeno país, meio
francófono, meio flamengo, belgicano em suas cervejas e manias, mas ideal do
meu ponto de vista: vida mais barata, podendo trabalhar e estudar ao mesmo
tempo, o que me permitiu retomar minhas afinidades eletivas algo abandonadas
desde vários meses: ler, refletir, resumir o que estava lendo, pensar muito no
mundo, e retomar as bases de minhas concepções sobre a vida social, a política
e a economia. Depois de inscrever-me novamente no curso de Ciências Sociais da
Universidade Livre de Bruxelas – ah, esses sociólogos que sempre querem
revolucionar o mundo – passei mais tempo lendo livros, jornais e revistas na
biblioteca do Institut de Sociologie, do que propriamente assistindo aulas, que
achava chatas e aborrecidas, com muito poucas exceções. Tracei um imenso
programa de leituras – ainda razoavelmente marxista, mas já aberto aos
“inimigos de classe”, como Raymond Aron e outros – e o cumpri pela metade,
perdendo a outra na leitura de jornais e revistas e na retomada de contatos
“revolucionários”. Eu ainda não havia abandonado todas as ilusões...
Creio que cheguei a me
tornar um expert em Terceiro Mundo, tal a quantidade de leituras que devorei
sobre a África, a Ásia e a América Latina. O ambiente ajudava: dezenas de
estudantes estrangeiros, protestos contra a guerra do Vietnã, contra Israel,
contra as ditaduras latino-americanas (Brasil certamente, mas o Chile teve de
esperar mais um pouco), conferências e palestras dos mais finos marxistas,
trotskistas, anarquistas (menos), e também estruturalistas, claro, pois essas
pragas nunca acontecem sozinhas. Fui refinando minha leitura do mundo e das
oposições políticas: eu ainda era marxista, obviamente, mas já não tinha
certeza de ser leninista ou guevarista: leituras de Soljenitsin, do grupo
“Socialismo ou Barbárie” e outros dissidentes do socialismo real, o
conhecimento direto da nomenklatura e do seu modo hipócrita de reprodução, tudo
isso me fazia refletir sobre como o mundo era mais complicado do que nossas
pobres elaborações mentais sobre as desigualdades do capitalismo brasileiro e
sua situação de “dependência” em relação ao imperialismo.
Duas outras atividades me
ocuparam intensamente durante meus anos belgas, além do estudo, claro, menos na
sala de aula e mais nas bibliotecas: viagens e trabalho “revolucionário”. As
viagens eram de estudante, muitas de carona, ou de oportunidade, sempre que
podiam ser combinadas ao trabalho “revolucionário”. Esse, na verdade, se
limitava a repassar informações sobre a repressão no Brasil a jornalistas e aos
habituais simpatizantes do Terceiro Mundo, como sempre se encontram nas
economias ricas do capitalismo avançado. Colaborava, mais ou menos
informalmente, com a Frente Brasileira de Informações, animada por exilados
brasileiros um pouco em todos os países da Europa ocidental e apoiada em
dinheiro e meios materiais dos esquerdistas e simpatizantes europeus.
Na verdade, esse trabalho
de denúncia da repressão no Brasil nunca me atraiu especialmente, pois eu
preferia aprofundar a discussão e a análise sobre as razões e os fundamentos de
o Brasil ser o que é: país dependente?; sub-imperialista?; atrasado ainda que
industrializado?; desigual, certamente, mas tão ditatorial quanto o socialismo
real, que eu havia visto na Tchecoslováquia, depois na União Soviética e em
outros países da chamada “cortina de ferro”? Todas essas questões eu me
colocava todos os dias, quando adentrava uma biblioteca – e foram muitas – e
percorria as fichas ou as estantes em busca de respostas nos livros e nos
artigos de revistas especializadas, em várias línguas. Aprendi a ler – apenas
ler – em várias línguas, e devorava tudo o que me caia sob as mãos, sobretudo
gratuitamente nas bibliotecas ou nos centros de pesquisa: ainda me permitia
gastar meus poucos tostões no Le Monde,
algumas vezes por semana (e sempre na sexta, para o Le Monde des Livres), e no Le
Monde Diplomatique (que considero
ser, hoje, apenas um jornalzinho esquerdista simplista). Eu preferia escrever
artigos de corte mais acadêmico, e lembro-me de ter publicado, gloriosamente,
meus primeiros artigos em francês (revisto por um jornalista belga), um
pequeno, sobre o “arrocho salarial” no Brasil e outro, mais alentado, sobre o
Estado “fascista” militar. Nada que eu possa me orgulhar, atualmente, mas pelo
menos feitos com pesquisa, dados e argumentos, ainda que falhos, no segundo
caso.
Além de frequentar
bibliotecas, ler e escrever – enchi vários cadernos de notas manuscritas, com
resumos de livros, notas para artigos, simples observações casuais – o que mais
fiz, além de pensar sobre tudo isso, foi viajar, para todas as partes
acessíveis ao meu pequeno orçamento de estudante trabalhador (sim, passei todo
o verão de 1972 lavando pratos na Suécia, o que me deu renda para quase um ano
inteiro). Viajei para conhecer outros socialismos reais, e alguns surreais, e
também os capitalismos dos diversos países da Europa, sempre um mosaico de
culturas e de problemas. A Itália não era muito diferente do Brasil, no seu
caos burocrático, apenas mais rica e agradável; a Inglaterra já estava há
vários anos em decadência, e em algumas visitas me pareceu estar entrando num
país do Terceiro Mundo; a França sempre orgulhosa, ainda que arrogante, a
Alemanha e a Suíça, muito prussianas para o meu gosto, mas pujantes, em sua
riqueza brilhante, toda a cheirar cobre. Em face da abundância capitalista, os
países socialistas não eram sequer de uma pobreza franciscana, mas tampouco era
africana: eles eram apenas bregas, kitsch, totalmente defasados em relação à
modernidade, com os seus pepinos em lata, seus repolhos mal cheirosos, suas
salsichas horríveis e seus carrinhos Lada impressionantes de atrasados. Quanto
tive dinheiro para comprar um Citroen Dois Cavalos (daqueles que a porta abria
para a frente) e viajei novamente a Praga, fiz sensação na cidade. Enfim, o
socialismo era de uma mediocridade terrível.
(Continua...)
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