As administrações kirchneristas completaram dez anos de governo ininterrupto, período que a presidente Cristina Kirchner chamou de "década ganha" (em contraste com a chamada "década perdida" dos anos 80), com certo fundamento se a análise se restringir a comparar pontas do ciclo. Mas considerar estes últimos anos como um todo e como um único esquema de política econômica é, a nosso ver, um erro. Porque, de acordo com nosso diagnóstico, ele é composto por três etapas, não uma só. Uma diferença que não é irrelevante, já que os resultados a que se chega seguindo esse caminho abrem um leque de dúvidas quanto aos benefícios da década.
A primeira etapa é a da abundância, caracterizada por alto crescimento num ambiente de baixa inflação, em que a economia mostrava fortalezas macroeconômicas inéditas. Isso se traduziu rapidamente em melhoria dos indicadores sociais, acompanhada por uma política agressiva das autoridades nacionais nesse campo. Nessa etapa, soube-se aproveitar o vento de popa externo que favoreceu toda a região. A isso se somou um ponto de partida pós-crise de 2001-02 muito favorável, com recursos produtivos ociosos e um câmbio real muito elevado, o que possibilitou um crescimento a taxas inéditas sem se chocar com as restrições fiscais e externas, evitando repetir a história das décadas anteriores. Porém, lamentavelmente, durante esse período se falhou em assentar as bases para sustentar o crescimento.
Isso deu passagem a nova etapa, na qual, em vez de melhorar e mudar essas questões, se tentou remendar as falhas da anterior. Uma etapa em que ficou de lado a abundância, as restrições fiscal e externa começaram a operar em maior ou menor medida e, portanto, os graus de liberdade da política econômica se reduziram. Assim, em meio a uma volatilidade mais acentuada associada a essas margens menores e a um contexto externo conturbado, a economia mostrou maior heterogeneidade em termos de crescimento, com tendência à desaceleração e uma característica que distinguiu essa fase: inflação ascendente até se estabilizar em níveis elevados.
Esse período terminou em 2011. Nesse ano todos os remendos nas inconsistências vindas da etapa anterior se mostraram insuficientes para conter as pressões de todo lado sobre a política econômica, forçando uma mudança de regime. Isto é, não só modificações sobre uma mesma base de política econômica, mas uma mudança total das regras do jogo. Isso abriu nova etapa, a da escassez.
Esse período apagou o crescimento. O investimento despencou e a economia parou de gerar postos de trabalho no setor privado. A economia voltou assim a entrar em cheio, definitivamente, nos ciclos stop-and-go que a caracterizaram em todo o pós-guerra, com uma sucessão de recessões e expansões no marco da inflação alta, embora com uma diferença não desprezível: o contexto internacional, representado pelo preço da soja em torno de US$ 500 a tonelada, e uma pressão fiscal inédita, com uma arrecadação que subiu 10% do PIB em todos esses anos. Num cenário com essas características, é praticamente inexplicável que haja falta de dólares e problemas fiscais. Só o mau desempenho das autoridades pode explicar isso.
Uma década de relação oscilante com o Brasil - A relação com o Brasil foi sempre um reflexo dessas etapas por que transitou a economia argentina nas administrações kirchneristas. Os primeiros anos se caracterizaram por forte aumento das importações do sócio principal, o que deteriorou rapidamente o saldo comercial bilateral. Mas também foi marcada por intensa chegada de investimentos brasileiros, que vieram substituir os de países desenvolvidos. Decisões de investimento que foram enquadradas numa estratégia de internacionalização de empresas do país vizinho, na qual o mercado argentino desempenha papel importante.
Mas no contexto de aumento incessante das importações vindas do Brasil começaram a se fazer ouvir vozes reclamando regulamentações do comércio que protegessem a produção argentina, sobretudo no setor industrial, situação que se agravou com a crise internacional. Assim se intensificaram os primeiros acordos sobre cotas para diversos produtos sensíveis.
Esse panorama se agravou ainda mais já bem entrada a terceira etapa. A necessidade de sustentar o superávit comercial como única ferramenta de geração genuína de divisas na economia obrigou a Argentina a implementar restrições amplas e universais à importação de todo tipo de produtos. O objetivo foi reduzir os déficits comerciais mais significativos em nível setorial, alcançando vários itens de que o Brasil é um dos principais provedores, o que endureceu as posições. Em especial porque a redução das importações oriundas do Brasil muitas vezes não foi compensada por maior produção argentina, mas por um aumento simultâneo da entrada de produtos de outras origens.
Esse cenário piora se somarmos a análise dos maus sinais provenientes do lado do investimento, que têm muito que ver com esse clima negativo em matéria comercial, mas também com a crescente incerteza para fazer negócios na Argentina. O caso Vale, incluindo a forma como se tratou a situação em ambos os países, parece ser a gota d'água do velho formato em que se baseou a relação bilateral (ainda que por trás da decisão da empresa mineradora haja questões próprias de seu negócio), abrindo a porta para um novo cenário que terá de se definir em algum momento próximo.
Assim, a relação bilateral parece estar passando por um equilíbrio muito precário. No entanto, o vínculo histórico e estratégico que nos liga permitirá superar esta e qualquer outra contingência. A vontade política e a vocação de integração nos dois países sempre foram suficientes para resolver as questões em aberto. Mas as tarefas pendentes terão de seguir esperando um momento mais oportuno.
DANTE SICA É ECONOMISTA, DIRETOR DA CONSULTORIA ABECEB.COM, FOI SECRETÁRIO DE INDÚSTRIA DA ARGENTINA
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