Um texto que tinh ficado esquecido, e do qual fui me lembrar agora ao fazer a postagem anterior, sobre o novo colonialismo chinês sobre a América Latina.
1136. “‘Una sombra pronto seras…’: Idealpolitik e o Consenso de Buenos
Aires”, Miami, 20 out. 2003, 7 p. Comentários analíticos ao documento assinado
pelos presidentes da Argentina e do Brasil, quando da visita oficial do
presidente Luiz Inácio Lula da Silva a seu colega Nestor Kirchner, em 16/10/2003.
Publicada na revista eletrônica O
Debatedouro (Brasília: a. II, n. 38, 23 nov. 2003; ISSN 1678-6637; http://www.odebatedouro.com.br/edicoes/debat38.pdf). Relação de Publicados n. 453.
Tinha ficado relativamente esquecido e desprezado, todos esses anos.
Talvez ainda tenha algo válido. A ver...
Paulo Roberto de Almeida
‘Una
sombra pronto seras…’:
Idealpolitik e o
Consenso de Buenos Aires
Paulo Roberto de Almeida
“… Una sombra ya pronto seras,
Una sombra como yo, y nada más…”
Caminito, tango argentino
Os
presidentes do Brasil e da Argentina assinaram em Buenos Aires, no dia 16 de
outubro de 2003, um documento conceitual e programático que pretende balizar as
ações internas e externas de ambos os países, no seu relacionamento recíproco,
na agenda de temas coordenados por entidades multilaterais, na esfera das
negociações comerciais regionais e multilaterais e em vários outros temas de
interesse do Mercosul e da comunidade internacional. Ambiciosamente chamado de
“Consenso de Buenos Aires”, o documento, com aproximadamente duas dezenas de
pontos de definições e promessas nas áreas econômica, social e diplomática,
formula idéias generosas e antecipa um conjunto de intenções meritórias, mas
deixa sem resposta satisfatória a panóplia de ações concretas e de instrumentos
que permitiria, de maneira concreta, alcançar aqueles objetivos.
Farei uma
análise linear deste documento, destacando em primeiro lugar seus pontos
principais, suas ênfases conceituais e suas intenções implícitas, formulando em
seguida comentários que julgo pertinentes em função da estratégia política
perseguida pelo documento. Não pretendo, contudo, estabelecer qualquer
comparação com o outro consenso mais famoso, o de Washington, por entender que
cada um dos dois conjuntos de regras de políticas públicas, em especial na área
econômica, segue uma linha peculiar de raciocínio, cada um pertence a universos
distintos de operacionalização prática e eles visam, portanto, objetivos
diferentes, um situado no terreno da governança econômica, o outro mais afeto à
liderança política.
Resumo e
comentários gerais:
O
documento apresenta forte ênfase política, com reafirmação dos princípios da
democracia, da justiça e da equidade, e muito pouco conteúdo econômico,
contrariamente ao que fora anunciado (e que era esperado) antes de sua
divulgação. Brasil e Argentina prometem se coordenar para objetivos comuns, o
reforço da integração regional e lograr resultados equilibrados nas negociações
comerciais hemisféricas e multilaterais. Não existem, de fato, objetivos
“objecionáveis”, nem se pretende confrontar quaisquer outros países ou
eventuais parceiros regionais, mas pequenas indicações de “adversários”
eventuais figuram esparsos no documento (capitais especulativos, blocos de
poderosos), talvez como resquício de uma redação que começou por tomar posição
“contra algo”, antes e em lugar de ser “a favor” de outras coisas.
Cabe no
entanto observar que o alto grau de generalidade deste documento tende a
transformá-lo numa lista de boas intenções, com escassa explicitação dos meios
ou medidas concretas que seriam eventualmente mobilizados para tornar essas
intenções credíveis ou realizáveis. Alguns equívocos ou desajustes quanto aos
meios foram detectados em algumas passagens, como a questão da garantia da paz
e da segurança com base apenas nos instrumentos jurídicos da ONU, o que torna o
documento um exemplo concreto de Idealpolitik.
Se a
intenção era apresentá-lo como uma alternativa a políticas ou medidas seguidas
atualmente ou em implementação pelos dois países, o documento falha por não ser
suficientemente detalhado ou explícito quanto aos meios e mecanismos pelos
quais se faria a mudança de políticas. Se ele pretende, por outro lado,
confirmar tendências ou movimentos já seguidos pelos dois países, trata-se de
algo redundante e meramente declaratório. Nos dois casos, ele apresenta
reduzido valor prático e escasso mérito quando às possibilidades futuras de sua
universalização ou sua disseminação para outros países, dentro da região e fora
dela.
A rigor,
o epíteto “consenso” parece um pouco exagerado, pois se trata, de fato, de uma
declaração de apenas dois países de uma determinada região geográfica, o que
talvez não o qualifique para ser apresentado com tal substantivo abrangente.
Reduzirei
agora as cinco páginas do documento ao núcleo essencial das propostas
consignadas nos seus parágrafos, eliminando apostos e elementos adjetivos, e
retendo apenas sua substância essencial.
Análise tópica do
documento:
1. Fortalecer a
democracia política, com combate à pobreza e à desigualdade, que configuram
perda de cidadania.
Deveria
ser apenas uma constatação de um estado de fato, não um objetivo a ser
alcançado, o que denota, talvez, insegurança quanto à sustentabilidade do
regime na região. Em todo caso, esse fortalecimento depende mais de dinâmicas
internas do que de processos conjugados, já que na mesma região — seja Europa,
Ásia ou América Latina — podem conviver diferentes regimes políticos, com maior
ou menor renda per capita. Não existe, aliás, uma correlação estrita entre
renda e regime político, mas é também verdade que países pobres, de escasso
desenvolvimento econômico, tendem a ser mais autoritários do que as economias
avançadas. A cidadania e a democracia têm mais a ver com a natureza da
sociedade civil do que com a configuração estrita do Estado, ou com o grau mais
ou menos equitativo, ou desigual, da distribuição de renda. Democracias
avançadas tendem a ser mais igualitárias, o que não impede que regimes
democráticos tenham convivido, no passado, com regimes de exclusão ou abertamente
escravagistas — como na Grécia clássica, ou no sul dos Estados Unidos, por
exemplo — e que democracias modernas tenham conhecido recentes processos de
concentração de renda — como é o caso, mais uma vez, dos Estados Unidos na
atualidade, ou de outros países mais desenvolvidos.
2. Impulsar a
integração regional, com participação da sociedade civil.
Objetivo
meritório, mas a integração pode ser vista como uma meta em si — o que pode
conduzir a eventuais deseconomias, se feita de forma restritiva — ou apenas
como um meio para se atingir outras metas, como o desenvolvimento econômico e
social ou o progresso tecnológico.
3. Globalização sem
concentração econômica.
Deveria
ser uma aspiração, mas de fato, como se trata de processo relativamente
aleatório, com poucos controles governamentais sobre seus resultados efetivos,
torna-se difícil garantir esse objetivo, a menos que se empreenda uma
administração restritiva das relações econômicas internacionais de cada país,
ou seja a administração estatal da abertura econômica. A concentração de renda
pode aliás ocorrer sem globalização, como provado pela experiência brasileira
de grande crescimento e aumento das exportações nos anos 70 e 80, resultando
num menor coeficiente de abertura econômica, num grau avançado de
nacionalização dos sistemas produtivos e numa distribuição ainda mais desigual
da renda. De fato, a experiência histórica precedente demonstrou que são os
períodos de fechamento e, portanto, de não-globalização que conduzem a
processos de concentração da renda e de monopólios — públicos e privados — e
não as fases de abertura à competição externa, que desconcentram poder e
riqueza.
4. Políticas de
crescimento com distribuição eqüitativa, via ordenamentos tributários e fiscais
mais justos.
Totalmente
desejável, mas não há nenhuma explicitação quanto aos meios pelos quais se
faria esse crescimento com distribuição ou que natureza teriam os citados
ordenamentos “mais justos”.
5. Fim da pobreza
não se resolve com assistencia, mas requer emprego e investimento produtivo.
Nada de
mais verdadeiro, mas a observação acima também se aplica: como assegurar essa
meta geral e como serão garantidos emprego e investimentos?
6. Papel estratégico
do Estado, incremento de sua eficácia e transparência.
O Estado
sempre teve, e continuará tendo, papel estratégico nas economias modernas, o
que quer que façam os governos para diminuir-lhe o tamanho. Ele conheceu
notável evolução em todos os países, geralmente na direção de uma maior
eficácia administrativa e de um tratamento impessoal — isto é, burocrático — de
seus mecanismos de gestão. Em poucos lugares, e a África seria o exemplo mais
contundente, ele regrediu ao ponto de caminhar no sentido da falência
administrativa ou do aumento da corrupção.
7. Prioridade absoluta
à educação como ferramenta de inclusão social.
Objetivo
altamente meritório e aliás verdadeiramente estratégico. Deveria ser erigido em
princípio absoluto da ação do Estado e se ver atribuído prioridade sobre todas
as demais prioridades, e não apenas de maneira declaratória.
8. Construir a
sociedade da informação com inclusão social e desenvolvimento.
Nada
objecionável, como em outros casos de intenção declarada, mas não sabe bem como
essa intenção será convertida em realidade.
9. Revolução informática
apresenta perigo de exclusão, gerando brecha tecnológica em relação aos países
industrializados. Devemos promover a sociedade da informação.
De acordo
quanto aos objetivos “promocionais”, mas cabe observar que, se ocorre uma
verdadeira revolução informática, ela raramente será excludente, pelo velho
princípio revolucionário que tende a operar a transformação das estruturas
sociais.
10. Gerar pólo
científico e tecnológico regional com critério de eqüidade social.
Idem,
idem, mas pergunta-se porque a noção de pólo deve recolher prioridade em face
da “simples” disseminação do conhecimento científico e tecnológico em toda a
sociedade. O “pólo regional” não precisa estar desconectado das realizações em
outros países nos mesmos terrenos, e a indução artificial de algum pólo pode
representar deseconomias auto-cumulativas. No plano conceitual, aliás, a noção
de pólo se choca com o critério da equidade.
11. Existem
desequilíbrios internos e desigualdades regionais. Propomos políticas de
desenvolvimento que respeitem a diversidade do território.
Uma
constatação óbvia, que requer medidas não tão óbvias. A proposta não diz
absolutamente nada, pois se a política de desenvolvimento — o que quer que isso
queira dizer — não respeitar a diversidade do território ela tende a gerar
deseconomias e ser uma indutora artificial de atividades, com fortes subsídios
ou distorções das atividades econômicas.
12. O trabalho
constitui instrumento de promoção das condições de vida. Desejamos linhas de
ação que permitam coesão social e dignidade do trabalhador.
Excelente
programa de trabalho. Fica faltando a explicitação quanto aos meios e a
definição de quais seria, exatamente, essas linhas de ação. Algumas podem
resultar em menor nível de empregabilidade, como descobriram vários países
europeus que, ao garantir direitos amplos aos trabalhadores, acabaram gerando
desemprego involuntário e extrema igidez nos mercados laborais, com segmentação
exagerada e assistencialismo indevido, indutor de uma maior proporção de desemprego
estrutural.
13. Reiteramos os
princípios sobre o desenvolvimento sustentável e vamos implementar os acordos
multilaterais ambientais.
Meritório.
14. Continuaremos
buscando a gestão integrada dos recursos hídricos compartilhados.
Absolutamente
inteligente, e mesmo racional em se tratando de vizinhos com rios e bacias
contíguos e sucessivos.
15.O Mercosul não é
apenas um acordo comercial, mas um espaço de valores e vamos fortalecê-lo e
ampliá-lo.
Certamente,
e alguns desses valores já estão expressos nos parágrafos preambulares do
Tratado de Assunção. O fortalecimento e mesmo a ampliação do Mercosul, porém,
não devem ser vistos como fins em si mesmos, mas como meios para se atingir
outros objetivos, como o desenvolvimento econômico e social, avanços
tecnológicos, inserção na economia internacional etc.
16. A integração
sul-americana fortalece nossa inserção no mundo, permitindo enfrentar os
movimentos desestabilizadores do capital financeiro especulativo e os
interesses dos blocos mais avançados e ela pretende conformar um modelo de
desenvolvimento com crescimento, justiça social e dignidade dos cidadãos.
A
integração não deveria ser, a princípio, excludente ou confrontacionista. O tal
de “capital financeiro especulativo” só adquire essa característica quando ele
tem algo sobre o que especular, o que geralmente significa economias dotadas de
regras pouco estáveis, submetidas a políticas erráticas e necessitadas de
fortes influxos de capital, de qualquer natureza, por evidentes desequilíbrios
internos. A volatilidade tende a ser algo intrínseco, não extrínseco às
economias colocadas nessa situação. Capitais especulativos podem ser barrados
por uma simples medida administrativa, como a aplicação de uma taxa, por
exemplo, desde que se possa fazê-lo sem complicações para o próprio país.
17.Queremos
continuar as negociações da Rodada de Doha em bases equilibradas, em particular
no capítulo agrícola, para consolidar um sistema multilateral de comércio sem
distorções e não-discriminatório. Vamos estabelecer alianças com países com
interesses e preocupações semelhantes.
Objetivo
circunstancial e conjuntural, que se esgota em suas circunstâncias ou em sua
conjuntura de realização. Não deveria, normalmente, fazer parte de um documento
que se pretende de estabelecimento de regras programáticas, não de metas
transitórias. Em todo caso, não há nada de objecionável nesse objetivo.
18.O Mercosul busca
acordos equilibrados com outros sócios da região, em particular com a
Comunidade Andina.
Idem,
ibidem. Há uma certa propensão natural, quase que de fatalidade geográfica,
nesse objetivo, mas ele deveria ser visto, igualmente, como não excludente de
outras relações e parcerias.
19. Negociaremos a
ALCA à partir do Mercosul, para obter um acordo equilibrado e flexível, para
acomodar situações nacionais. O Mercosul tem proposta alternativa realista
para alcançar um acordo satisfatório em
janeiro de 2005.
Idem.
Plenamente justificado. Caberia defender e legitimar tal proposta.
20. A contrapartida
da dívida pública é a criação de riqueza e de emprego, a poupança, a redução da
pobreza, a educação e a saúde, bem como políticas de desenvolvimento econômico
e social.
Difícil
objetar quanto aos objetivos em si, mas caberia observar, como boa regra de
política econômica, que isso é verdadeiro apenas nos casos em que a dívida
pública significa investimento com retorno futuro, para que as gerações
seguintes sejam beneficiadas com os desequilíbrios orçamentários ou as
“antecipações de gastos” do presente, caso contrário, se a dívida é acumulada
para financiar gastos correntes e outras atividades rentistas o resultado não
será criação de riqueza, mas promessa de pobreza e de cargas insuportáveis para
as gerações futuras. Infelizmente, nas histórias econômicas respectivas de
Brasil e Argentina, temos assistido mais exemplos da segunda experiência do que
da primeira, com resultados atuais que já se conhecem.
21. Queremos uma
ordem multilateral baseada na igualdade soberana e rechaçamos o unilateralismo.
Compreensível
que seja assim, ao início do século XXI, quando atitudes imperiais e imposições
com base na força já não mais podem guiar as ações das nações civilizadas. O
mundo entretanto ainda não chegou a Kant, estando bem mais para Hobbes em
várias de suas manifestações, e não apenas por parte de países poderosos.
22. O
multilateralismo e o respeito ao Direito Internacional são a base da segurança
internacional e dos esforços de desarmamento e de não-proliferação.
Absolutamente
sem objeções, quanto ao fundo. Em circunstâncias concretas, porém, esses
princípios não bastam. Em 1938, os chamados appeasers
pretenderam fazer economia de um conflito com Hitler: ganharam um ano, após o
que o mundo mergulhou no pior conflito de toda a história das civilizações
humanas. Talvez uma atitude mais firme, não necessariamente prevista no direito
internacional da Liga das Nações, tivesse poupado a humanidade de tanto
sofrimento e destruição de bens e vidas. Por vezes, o desarmamento tem de ser
imposto com a força das armas, não com a invocação de um direito ainda não abrangente e sobretudo
não garantidor da paz e da segurança.
23. As Nações Unidas
e seu Conselho de Segurança são centrais na manutenção da paz e da segurança
internacionais, e para a promoção do desenvolvimento econômico e social.
Deve-se respeitar a Carta da ONU e os princípios do direito internacional.
De
acordo. Mas, a Carta também previu uma força militar da própria ONU, o que até
agora não foi possível lograr-se. Sem dispor de meios eficazes de dissuasão ou
de imposição de sua vontade, a ONU e seu Conselho de Segurança podem não ser
tão eficientes quanto se pretende.
24. As ameaças à paz
e à segurança internacionais e o terrorismo devem ser combatidos de acordo com
a Carta das Nações Unidas e com os instrumentos jurídicos nos quais o Brasil e
a Argentina são parte.
Nem a
Carta, nem a ONU podem impedir ataques terroristas, que tendem a ser
imprevisíveis e de toda forma não podem ser dissuadidos por “instrumentos
jurídicos”, já que os terroristas se colocam à margem da lei e das próprias
normas da sociedade civilizada. A menos que a Carta e esses instrumentos sejam
capazes de garantir essas ameaças, os países têm o direito — e suas lideranças
políticas o dever — de assegurar que tais condições não colocarão a vida de
seus cidadãos em risco.
Dois
exemplos bastam para comprovar isso: os ataques contra a Embaixada de Israel e
a associação judaica em Buenos Aires, até hoje não elucidados, com terroristas
não plenamente identificados. Aliás, um único exemplo bastaria para destruir a
tese de que ONU e instrumentos jurídicos são suficientes nesse tipo de ameaça.
25. Vamos trabalhar
para a concretização deste Consenso e convidamos os países latino-americanos
para alcançarmos juntos uma sociedade mais justa, eqüitativa e solidária, que
fortaleça a democracia na região.
De
acordo. Seria preciso começar disseminando este documento e recolher então a
opinião dos demais, antes que ele possa efetivamente apresentar-se como
“Consenso”. Não se deveria, entretanto, esperar adesão inquestionável dos
demais, pois isso significaria talvez uma espécie de “imposição unilateral” de
dois países sobre os demais, que provavelmente teriam, ou terão, suas próprias
contribuições e comentários a fazer ao documento. O teste da história significa
que um documento com tal pretensão tende a ser incorporado como um dos
referenciais de políticas, internas e externas, a serem seguidas por esses
países: o tempo dirá se o destino efetivo do documento confirmará suas
pretensões, de resto legítimas, como todo texto que pretende ao bom senso.
Paulo Roberto de Almeida
Miami, 20 de outubro de 2003