Trecho de entrevista de Ariel Palacios ao Congresso em Foco, sobre a divisão politica do país, que ele analisa em seu livro
Os Argentinos (Editora Contexto):
Quando Palacios e sua família querem chamar amigos para jantarem, têm de
colocar na mesma reunião ou só apoiadores do governo, ou só opositores
do governo. Senão, é briga certa. “Agora a coisa piorou tanto que temos
que fazer três reuniões, porque os neutros começaram a ser criticados
pelos outros dois grupos”, revela o correspondente.
Aqui a entrevista que ele concedeu:
Ariel Palacios: “Argentina terá futuro de altos e baixos”
Correspondente brasileiro na
Argentina desde 1995 afirma que a instabilidade político-econômica ainda
é um fantasma. Leia a íntegra da entrevista concedida pelo jornalista
nascido em Buenos Aires, mas criado no Brasil, ao Congresso em Foco
Argentina, por Ariel Palacios: um país “atravancado”
Congresso em Foco – Você diz que seu livro não tem clichês. O que as pessoas não vão encontrar no seu livro?
Ariel Palacios – Não vai encontrar estereótipo, de
piada. Não é que seja livro sisudo. É bem humorado, mas tratando com
muito respeito a Argentina e os argentinos, explicando todas as
peculiaridades deste país, os fatos históricos, a vida cotidiana, a
gastronomia, os costumes, o esporte, a relação com o Brasil, se há a
rivalidade ou não com o Brasil, a economia, que é bastante
esquizofrênica se comparada com a brasileira. A economia brasileira é um
mar de rosas comparada com o que foi a argentina nos últimos 40 anos.
Não vai encontrar uma frase do tipo “os argentinos são ‘dois pontos’”,
aquela coisa de bater o martelo. O livro é uma tentativa de entender a
Argentina, até porque os próprios argentinos dizem que não entendem,
especialmente na área política e econômica. Se eles próprios não
entendem, imagina um olhar de fora. Os clichês vendem mais, por ser a
coisa mais fácil de compreender. Mas nunca gostei deles, e é isso que
tento explicar no livro, como a rivalidade Brasil-Argentina.
Os clichês são verdadeiros ou falsos?
Falsos. Um deles é que acham que os argentinos odeiam o Brasil. Existe
muito na cabeça dos mais velhos. É uma coisa que talvez acontecia há 80
anos, quando os dois países eram rivais militares, na Segunda Guerra
Mundial, nos anos 50. Mas isso desapareceu. Os argentinos adoram o
Brasil. Vêm passar a férias no Brasil, consomem quantidades colossais de
música brasileira, desde música mais popular como Michel Teló, até
música mais elaborada como Tom Zé ou João Gilberto. É um clichê que
ainda existe, mas os fatos mostram o contrário.
Eles nos odeiam no futebol?
Eles detestavam antigamente, até que surgiu um novo inimigo, a
Inglaterra. Por uma questão geopolítica, por causa [da guerra] das
Malvinas, em 1982. Eles agora preferem derrotar a Inglaterra nos campos
do que o Brasil.
Isso é uma decepção para o Galvão Bueno e mais da metade do Brasil.
Comentei isso com vários amigos. Houve um momento, na Copa do Japão e da
Coreia do Sul, em 2002. A Argentina estava desclassificada e o Brasil
enfrentava a Inglaterra [nas oitavas de final, quando a seleção
brasileira ganhou por 2 a 1 de virada]. Os argentinos torciam contra a
Inglaterra. Não é questão de solidariedade com sul-americano, é que eles
queriam ver derrotada a Inglaterra. Isso importava muito mais. Quando
eu comentava isso com os amigos no Brasil, notava que o pessoal ficava
frustrado, algo equivalente ao amor não correspondido, o ódio não
correspondido 100%. “Mas como? Se a gente quer derrotar os caras, por
que os caras não querem derrotar a gente?”, me diziam. Bom, eles querem
derrotar também, mas não é o principal objetivo. O foco está na
Inglaterra. Bem… pode ser frustrante pra muitas pessoas, mas é a
realidade. Fazer o quê? Não posso dourar a pílula. Eles querem derrotar o
Brasil, mas o principal é a Inglaterra.
É uma coisa de gerações também. Acho que as novas gerações no Brasil
enxergam a Argentina de forma diferente. Senão, não iriam de férias pra
lá. Um milhão de brasileiros foi de férias pra Argentina no ano passado.
No ano anterior, foram quase um milhão. Agora tem um fluxo
interessante. Desde 1978, vêm um milhão, em média, de argentinos para o
Brasil por ano. Os turistas brasileiros eram muito poucos. Nos anos 80,
eram 80 mil, 50 mil por ano. Isso foi crescendo nos anos 90
devagarzinho, nos últimos dez anos cresceu muito mesmo. Quando você
viaja, conhece e tem uma percepção diferente do país.
Os argentinos continuam vindo ao Brasil nessa proporção?
Sim, apesar do câmbio desfavorável. Uma coisa interessante é que, nesse
últimos 40 anos, não é apenas a classe média alta que vem ao Brasil, mas
também a classe média baixa. O motorista de ônibus, a manicure, o
bancário foram de férias. Os caras vêm modestamente, de ônibus ou de
carro, ficam nas praias mais baratas como Camboriú (SC). Quando você vem
num ano, passa duas semanas, volta no ano seguinte, passa 20 anos indo
de férias todo ano, óbvio que você conhece o Brasil. Nesses 40 anos de
fluxo intenso, os argentinos levaram para a Argentina várias gírias
brasileiras, que eles adaptaram lá, palavras que não eram da gíria
portenha, mas que foram importadas. O consumo de música é enorme.
Qual gíria?
Uma gíria é “curtir”. E a outra é “transar”. Mas foram levadas pra lá
com certas modificações. O “transar” não é o ato sexual em si, a cópula,
o coito. O “transar” na Argentina é o amasso, as carícias, as
preliminares. Se você está transando com alguém, você está saindo com
alguém, mas como no preliminar, não é a transa como o Brasil. O “curtir”
é o contrário. O “curtir” passou a ser: “Ele está transando com ela” no
sentindo brasileiro. As palavras acabam sendo importadas e tendo
pequenas nuances. E há frases que são ditas lá, puramente em português,
com sotaque portenho, mas ditas em português em tradução alguma, com o
mesmo sentido do Brasil. Os argentinos acham que essas são expressões
sonoras que representam muito o que querem dizer. Por exemplo: você
chega na casa de alguém e a pessoa fala em português, mas com sotaque:
“Adiante!”. Quer dizer: “Entra!”. Com alegria, assim como “bem-vindo”.
“Adiante” não existe no espanhol?
Não, não existe. É uma palavra estrangeira. É dito como se fosse
“Adiantchi”, com “tchi”. A outra é uma expressão quando eles querem
dizer que algo é o máximo. Eles falam em português, mas falam ‘errado’:
“Ah, Militão, isso daí é o mais grande”. [“Más grande” em espanhol
significa “maior”]. E eles falam meio rebolando, tentando imitar o
jeito… como se a gente, quando falasse, rebolasse. Eu já expliquei pra
eles que a gente não rebola quando fala. Então fica: “O mais grande do
mundo”, como se fosse “grandgi”, com “dgi” no final. Está ‘errado’, é o
‘maior’, mas não adianta explicar. Eles continuam falando. A presidente
Cristina Kirchner falou isso há uns três anos na frente do Lula, uma das
últimas visitas dele à Argetina. Ela falou uma frase como “Eu admiro
muito os brasileiros porque os brasileiros sempre pensam muito
positivamente sobre o Brasil, porque o Brasil, ora, é ‘o mais grande do
mundu’”. Ela falou assim: “du mundu”, com “u”. É uma expressão
totalmente incorporada. Quando você quer dizer que alguém é o melhor
jogador, o melhor diretor de cinema, quando algo é muito especial, você
fala: “o mais grande” em português com sotaque. É uma expressão
importada com erro gramatical incluído.
O ‘erro’ é uma adaptação argentina, não?
Exatamente, exatamente.
Por que a economia da Argentina é esquizofrênica?
Ela tem tido infelizmente um período muito longo de esquizofrenia. É um
termo psicológico, não econômico, mas e aplica muito, porque ela tem
tido altos e baixos, uma idas e vindas que qualquer coisa na política
econômica brasileira vai parecer um mar de rosas perto daqui. É um país
que, desde 1975, teve sete graves crises econômicas. Graves crises, não
estou falando de médias ou pequenas. Teve estatizações, privatizações,
reestatizações ou expropriações. Teve hiper-inflações pesadas. A
hiper-inflação da época do [José] Sarney [1985-1989] é nada perto
daquilo. A inflação do Sarney não chegou a 1.000% ao ano.
A do Sarney? E a inflação do Collor?
Isso. Também a do Collor. Se você fala pra um argentino que já sofreu
com inflação, ele vai olhar: “Vocês? Hiper-inflação?”. Na época do
[Raúl] Alfonsín [1983-1989], chegou a mais de 5 mil por cento por ano.
Isso, sim, é hiper-inflação. Depois, o [Carlos] Menem [1989-1999] teve
uma inflação de 3 mil por cento e outra de 1.300 por cento ao ano. Houve
confiscos bancários, falências de bancos… Então, as pessoas, nessa
esquizofrenia, buscam refúgio no dólar, por exemplo. Há 40 anos, elas
buscam refúgio no dólar [Ainda existem empresas na Argentina que só
aceitam pagamentos em dólar, como alguns hotéis].
Existiu um período em que as pessoas usavam várias moedas.
Isso aí foi na época da crise [2001-2003], quando as províncias estavam
falidas e não tinham dinheiro, tiveram que recorrer a uma medida
desesperada de emitir bônus provinciais. Eram como títulos da dívida,
mas foram mais além e começaram a ser usados como notas, como se fosse
dinheiro. É o que chamam de moedas paralelas. Isso durou uns dois ou
três anos. Mais ou menos metade das [23] províncias argentinas tiveram
que recorrer a isso, de emitir bônus, inclusive sem lastro algum.
Nem todos os “estados” tinham como pagar esses títulos?
Não. Depois, foram pagando lentamente. A crise pegou o final do Fernando
De La Rúa e terminou no Eduardo Duhalde. Essas moedas foram eliminadas
já no começo do governo do Nestor Kirchner, gradualmente. Na crise, em
três anos, de De La Rúa a Dualde, houve cinco presidentes. É como
aconteceu em Brasília, quando o governador José Roberto Arruda (ex-DEM)
foi preso e cassado em 2009. Era um escândalo de corrupção… Claro, aí
você não afeta o resto do país. E essa foi uma crise política. A troca
de governadores não afetou a economia do estado, né? Na Argentina, a
economia está muito vinculada à política. Qualquer solavanco da política
altera as coisas.
Você falou que, no futebol, o rival maior é a Inglaterra por causa das Malvinas. O argentino é mais politizado que o brasileiro?
De forma geral, sim. Houve um período de altíssima politização, dos anos
40 até os 80. A ditadura atingiu muito isso, mas era um período de
altíssima politização. Houve um desinteresse crescente pela política nos
anos 90 e na crise de 2001, 2002. E esse interesse voltou a crescer –
não é que havia sumido, foi menor o interesse, mas sempre maior que no
Brasil. Mas a discussão política é muito forte. É politizado? Sim, é.
Mas está altissimamente polarizado, ultra-polarizado. Sumiu praticamente
do dicionário político argentino o diálogo. As pessoas têm posições
políticas, mas elas não dialogam de jeito nenhum. Há uma situação muito
tensa na sociedade. As pessoas discutem e não topam ouvir o outro. Isso é
uma coisa que ficou muito intensa nos últimos anos. Muito intensa a
ponto de não se poder mais reunir amigos de diferentes ideias, porque
senão dá briga, de as reuniões familiares terminarem em discussão brava
ou, pior ainda, de as pessoas não falarem em política pra evitar
problema. Você já sabe que vai dar problema, você omite o assunto. Aí
você tem que começar buscar assunto totalmente diferente pra não criar
problemas. É impressionante.
Então, é comum terem brigas em família por causa de política?
Sim. Aconteceu nos anos 40 e 50 e voltou agora com muita força mesmo.
Nós mesmos antes reuníamos todos os amigos. E, depois, há uns três anos,
começamos a fazer duas reuniões diferentes. Os governistas de um lado e
o antigovernistas por outro. Meu aniversário e o da Miriam [esposa de
Palacios] são muito próximas. Às vezes fazíamos uma reunião grande com
os amigos para comer algo em casa, uma pizza, umas empanadas e tal.
Reuníamos dez, doze pessoas, que tinham posições ideológicas totalmente
diferentes. Agora não dá mais pra fazer isso. Agora, num sábado você
chama os kirchneristas e no domingo, os anti-kirchnerista. E os neutros a
gente distribuía nos dois grupos. Só que agora a coisa piorou tanto que
a gente tem que fazer três reuniões. Os neutros começaram a ser
criticados pelos outros dois grupos. “Como é que você não tem uma
posição? Você fica neutro? Traidor da pátria!” e aquelas coisas todas.
Aí a gente teve que salvar os neutros e botar eles no terceiro dia. Isso
porque a gente é muito diplomático.
Com esses solavancos na economia, essa polarização radical da
política, qual é o futuro da Argentina em paralelo com o Brasil? O
Brasil é um país em que, diz-se, está melhorando suas condições de vida
aos poucos. E a Argentina?
O Brasil sempre foi pra frente. Aquela coisa de dar um passo gradual,
mas ir avançando. E feito basicamente tudo no consenso. Essa é uma marca
da política brasileira. Conseguir consenso é difícil, mas, quando se
consegue, estabelece-se alvo e avança. Escuta, faz consenso, avança
outro passo. Na Argentina, não. A Argentina é sempre a política do
antagonismo. Você dá dois passos pra frente, volta três, avança dois,
volta quatro, dá um pulo de dez, volta cinco. É um mistério o que pode
ser a Argentina. Tem uma excelente base de educação, que não é como era
há 20 anos, porque degradou muito. Você tem um fluxo de profissionais
que foram embora do país e nunca mais voltaram. E de novo você tem um
fluxo de pessoas que foram embora da Argentina, procurando melhores
lugares no exterior. E, quando falo isso, não é o operário, é o
profissional técnico. Não dá para saber. Não é um país que tem futuro
bastante garantido como é o caso o Brasil. Acho que a Argentina terá um
futuro de idas e vindas, de altos e baixos. Até porque tem a questão do
diálogo da classe política. Nem o governo nem a oposição são civilizados
a ponto de poderem dialogar. Nos dois lados, há uma falta total de
vontade de diálogo. Então, não tem como, né? Os próprios governantes
tomam medidas contraditórias. O governo diz: “Vamos restringir a compra
de dólares por parte da população”. Daí, a própria presidente, a
Cristina, tinha 3 milhões de dólares em aplicações financeiras nos
bancos, em dólares. Uma pessoa faz uma cruzada anti-dólar e você diz:
“Peraí, como pode ser?”. Quando o negócio ficou meio escandaloso, ela
decidiu pesificar esses investimentos, passar dos dólares para os pesos.
É um país que, de tão acostumado com as crises, investe pouco. O
brasileiro é mais arrojado, é mais confiante no futuro, tem menos medo,
às vezes meio ingênuo nesse aspecto, pois se arrisca demais. O argentino
não se arrisca tanto porque tem medo de alguma crise, algum erro. Outro
caso de economia pessoal. A presidente Cristina – além de [ter tido]
investimentos em dólares – fala muito em investimento produtivo, na
aposta pela indústria, mais até do que na agricultura. A presidente
Cristina tem 17, 19 milhões de dólares, uma fortuna, a segunda
presidente mais rica da América Latina, depois do [Sebastián] Piñera
[presidente do Chile]. Mas o Piñera é bilionário, aí é outra história.
Mas, no segundo lugar, não muito mais embaixo está a Cristina. Quais são
os investimentos da Cristina? Você nota bem como pensa um político
olhando quais os investimentos que ele tem. Imóveis! Ou seja, um
investimento assegurado, sem risco algum, que não tem produtividade
nenhuma. Imóveis! Compra de casas e apartamentos, e o aluguel dessas
casas e apartamentos. Isso é o investimento da Cristina. E tem dois
hotéis – serviços. Nada. Nem uma coisa, uma fábrica de autopeças, nada
em qualquer de investigação científica. Nada! Então, você nota que, se a
presidente pensa assim… E, se ela tinha dólares até pouco tempo atrás, é
porque não confiava no peso. A população não confia na economia e a
classe política tampouco confia. Uma coisa é o discurso e outra é a
realidade que você vê.
O futuro da Argentina é obscuro?
Não diria que é obscuro. Há um grau alto de incertezas, pela classe
política que tem na oposição e no governo. Até porque a Argentina tem
uma grande sorte, ter vizinhos que são prósperos. A sorte da Argentina é
ter vizinhos prósperos. Se você tem um vizinho que está bem, acaba
pegando uma carona nessa onda boa. Brasil, Uruguai, Chile… O próprio
Paraguai cresceu muitíssimo nos últimos anos, coincidentemente durante o
governo [Fernando] Lugo, tudo bem que basicamente graças à soja. Mas o
Paraguai melhorou muito do que era há uns seis, sete, oito anos. Há uma
certa prosperidade na região – ou uma grande prosperidade se comparando
com a Europa – e a Argentina tem essa vantagem, estar numa vizinhança
que está indo bem. Se a vizinhança está indo bem, você pega uma carona
nisso. Se for pelos vizinhos, acho que a Argentina está em boa
companhia.
Mas, de todo modo, é como você diz: há um grau alto de incerteza.
Há um grau alto de incertezas por causa da classe política, de todo os
partidos, que não apostam sério no país e isso fica claro pelos próprios
investimentos pessoais desses políticos. O dia que aparecer um político
que me diga “Eu tenho um investimento aqui porque tenho uma fabriqueta
de autopeças” ou “Eu produzo seringas descartáveis” e o cara não tenha
só aplicações financeiras em imóveis, aí eu vou dizer: “Esse aí é um
cara sério, que está se arriscando e apostando”. Mas quando os caras
vivem de renda, nem os próprios políticos apostam.
Você vê um bom futuro para a Argentina?
Não, eu vejo um futuro incerto. Não sei se é bom ou ruim. No momento,
vejo que o país está atravancado. A curto prazo não vejo nada bom. Não
vejo nada catastrófico, tampouco vejo alguma crise. Algumas pessoas me
dizem: “A Argentina está indo de novo para o caminho de 2001, quando
colapsou”. Não, longe disso. A situação é totalmente diferente, até
porque as reservas do Banco Central não são minúsculas como naquela
época. Todo cenário é diferente. Para ter uma crise como aquela, não
seria algo imediato. Precisaria muito mais tempo de mancadas. Mas, a
curto ou médio prazo, seria impossível uma crise como aquela. Mas não um
futuro complicado ou catastrófico pela frente. Isso não tem. Também não
é nenhum futuro excelente que vejo. É uma incógnita, não é ruim, nem
catastrófico, nem excelente. Tá ali no meio, mas não sei em que grau ali
no meio está.
Qual o PIB Argentino em 2012? Foi 0,9% também?
Segundo o governo, 3% e pouco. Mas os economistas dizem que é menos, 1% por aí. Não lembro o número exato.
O Juan Perón morreu, mas o peronismo não. Vai haver chavismo depois da morte de Hugo Chávez na Venezuela?
Eu acho que sim. Continua. Há várias nuances. A sociedade argentina não é
como a venezuelana. É muito diferente. A proporção de classe média
quando o Perón estava vivo não se compara com a Venezuela chavista.
Segundo, o Perón vivo ficou mais tempo no comando do peronismo – não
necessariamente no poder, mas no comando do peronismo, quando estava no
exílio – mais tempo que o Chávez. O Perón chegou ao poder em 1945 e
morreu em 1974, quase 30 anos. E o Chávez são 14 anos mais um ou dois
anos antes como oposição. O Perón ficou mais tempo no comando do
peronismo que o Chávez no chavismo. São duas sociedades muito
diferentes. A economia venezuelana depende altissimamente do petróleo. A
Argentina não era nada disso. Há muitos pontos similares, mas não
totalmente intransferíveis. Sem a figura do líder, quem vai assumir o
comando? Se bem que ele deixou um herdeiro [Nicolás Maduro,
vice-presidente da Venezuela]. U herdeiro que é mais moderado que o
Chávez, aliás o Chávez estava mais moderado nos últimos anos. Tem que
ver como ficam as brigas internas dentro do chavismo. Ou se vai
acontecer algo semelhante ao peronismo. O próprio Perón era muito
ambíguo. Fazia coisas que eram mais pra esquerda e coisas que eram muito
pra direita. Tem que ser os chavistas vão se dividir em radicais e
moderados. Acho que vai aparecer uma multiplicidade de chavismos. Vai
depender se vão conseguir manter a coesão durante muito tempo ou se vão
depois de subdividir e fazer partidos diferentes, cada um sempre dizendo
que está representando a vontade do líder defunto. Esse é um clássico
na Argentina com o peronismo. O peronista de esquerda e o peronista de
direita dizem que ele é quem está seguindo o que o Perón havia mandado.
Tudo mundo usa a imagem dele dizendo que ele tinha dito que fazer tal
coisa, interpretando do jeito que quer. O Perón é um cara que criou um
monte de estatais, mas o Menem dizia que ele, nos últimos anos de vida
já falava em privatizações. O que é verdade, não é mentira. O fato que
cada um usa o morto do jeito que quer. O morto não está aí para dizer o
que acha, até porque talvez, quando o morto estava vivo, não deixava
muito claras as coisas. O Chávez criticava os Estados Unidos, mas
continuava vendendo petróleo para eles. O Chávez fazia pose de
progressista, mas era homofóbico e contra o aborto. Ao contrário do
Uruguai, um país de vanguarda mesmo.
O brasileiro come melhor ou pior que o argentino?
Você tem uma carne com melhor qualidade na Argentina e uma gastronomia
italiana muito forte, porque o volume de italianos é bestial na
proporção do país. Isso não acontece em outro país do mundo, porque mais
de 50% da população tem um ancestral italiano. No Brasil em geral, isso
não acontece. Vice pode encontrar em São Paulo, mas você não tem uma
proporção enorme de italianos no Acre ou na Paraíba ou em Minas. Na
Argentina, o peso italiano é descomunal. Você tem uma pasta muito bem
elaborada. Mas, ao mesmo tempo, tem uma pouca variedade gastronômica. No
Brasil existe mais variedade, mais opções. A gastronomia argentina tem
menores opções. São boas, mas muito menores. Menos frutas, menos pratos
com verduras, pouquíssimo peixe, apesar da costa, quase nada de peixe. É
uma gastronomia muito gostosa, mas bem menos variada.
Carnes e massas.
É o cotidiano. Tem pratos elaborados como o locro, o equivalente mais ou
menos à feijoada. Mas o locro as pessoas comem uma vez por ano, em
ocasiões especiais. Mas quantas pessoas comem feijoada todo dia? Não
conheço ninguém.
A cultura argentina é bem mais que tango e Jorge Luís Borges, né? Mas o tango ainda é vivo?
Sim, eu comento no livro que o tango representa 25% do consumo cultural.
Não é tão presente como antes, quando era ouvido pela maioria da
população, mas ele tem 25% do mercado. O mercado se diversificou, o que é
bom. Você tem um grande grupo que ouve rock argentino e um que ouve
música folclórica argentina, como Mercedes Sosa [1935-2009] ou
sucessores dela. Tem uma diversificação grande, mas os próprios
argentinos dizem que o tango é a música que os representa no exterior.
Vinte e cinco por cento não é pouco.
Não é pouco, mas não é mais da metade.
É como se você no Brasil forró, sertanejo, samba e pagode?
Seria. É o símbolo do país no exterior.
E na literatura, o que há além do Borges (1899-1986)?
Há grandes escritores, como Adolfo Bioy Casares [1914-1999], o Ernesto
Sábato [1911-2011], Júlio Cortázar – no ano que vem é o centenário de
nascimento dele. Há poucas semanas se completaram os 50 anos de “O jogo
da amarelinha”, o livro do Cortázar. Não tem grandes figuras nos últimos
anos, algumas estão aparecendo, mas ninguém muito consolidado por
enquanto na literatura. Ir mais além daquele patamar de Borges, Casares e
Cortázar é muito difícil. Não é bolinho pra um escritor fincar o pé
nesse território, mas existem escritores muito legais que estão
aparecendo, caras jovens, de 30 e poucos anos.
Quem são?
Uma delas é genial. Foi traduzida no Brasil no finalzinho do ano
passado, a Samanta Schweblin [autora de “Pássaros na boca”]. Escreve
contos, que era o forte do Borges. Mora em Buenos Aires, mas agora está
fazendo uma bolsa em Berlim este ano.
Veja ainda:
Argentina, por Ariel Palacios: um país “atravancado”