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sábado, 10 de janeiro de 2015

Brasil-Argentina e o Consenso de Buenos Aires: Una Sombra Pronto Seras... - Paulo Roberto de Almeida

Um texto que tinh ficado esquecido, e do qual fui me lembrar agora ao fazer a postagem anterior, sobre o novo colonialismo chinês sobre a América Latina.


1136. “‘Una sombra pronto seras…’: Idealpolitik e o Consenso de Buenos Aires”, Miami, 20 out. 2003, 7 p. Comentários analíticos ao documento assinado pelos presidentes da Argentina e do Brasil, quando da visita oficial do presidente Luiz Inácio Lula da Silva a seu colega Nestor Kirchner, em 16/10/2003. Publicada na revista eletrônica O Debatedouro (Brasília: a. II, n. 38, 23 nov. 2003; ISSN 1678-6637; http://www.odebatedouro.com.br/edicoes/debat38.pdf). Relação de Publicados n. 453.

Tinha ficado relativamente esquecido e desprezado, todos esses anos.
Talvez ainda tenha algo válido. A ver...
Paulo Roberto de Almeida  

‘Una sombra pronto seras…’:
Idealpolitik e o Consenso de Buenos Aires

Paulo Roberto de Almeida

“… Una sombra ya pronto seras,
Una sombra como yo, y nada más…”
Caminito, tango argentino

            Os presidentes do Brasil e da Argentina assinaram em Buenos Aires, no dia 16 de outubro de 2003, um documento conceitual e programático que pretende balizar as ações internas e externas de ambos os países, no seu relacionamento recíproco, na agenda de temas coordenados por entidades multilaterais, na esfera das negociações comerciais regionais e multilaterais e em vários outros temas de interesse do Mercosul e da comunidade internacional. Ambiciosamente chamado de “Consenso de Buenos Aires”, o documento, com aproximadamente duas dezenas de pontos de definições e promessas nas áreas econômica, social e diplomática, formula idéias generosas e antecipa um conjunto de intenções meritórias, mas deixa sem resposta satisfatória a panóplia de ações concretas e de instrumentos que permitiria, de maneira concreta, alcançar aqueles objetivos.
            Farei uma análise linear deste documento, destacando em primeiro lugar seus pontos principais, suas ênfases conceituais e suas intenções implícitas, formulando em seguida comentários que julgo pertinentes em função da estratégia política perseguida pelo documento. Não pretendo, contudo, estabelecer qualquer comparação com o outro consenso mais famoso, o de Washington, por entender que cada um dos dois conjuntos de regras de políticas públicas, em especial na área econômica, segue uma linha peculiar de raciocínio, cada um pertence a universos distintos de operacionalização prática e eles visam, portanto, objetivos diferentes, um situado no terreno da governança econômica, o outro mais afeto à liderança política.


Resumo e comentários gerais:
            O documento apresenta forte ênfase política, com reafirmação dos princípios da democracia, da justiça e da equidade, e muito pouco conteúdo econômico, contrariamente ao que fora anunciado (e que era esperado) antes de sua divulgação. Brasil e Argentina prometem se coordenar para objetivos comuns, o reforço da integração regional e lograr resultados equilibrados nas negociações comerciais hemisféricas e multilaterais. Não existem, de fato, objetivos “objecionáveis”, nem se pretende confrontar quaisquer outros países ou eventuais parceiros regionais, mas pequenas indicações de “adversários” eventuais figuram esparsos no documento (capitais especulativos, blocos de poderosos), talvez como resquício de uma redação que começou por tomar posição “contra algo”, antes e em lugar de ser “a favor” de outras coisas.
            Cabe no entanto observar que o alto grau de generalidade deste documento tende a transformá-lo numa lista de boas intenções, com escassa explicitação dos meios ou medidas concretas que seriam eventualmente mobilizados para tornar essas intenções credíveis ou realizáveis. Alguns equívocos ou desajustes quanto aos meios foram detectados em algumas passagens, como a questão da garantia da paz e da segurança com base apenas nos instrumentos jurídicos da ONU, o que torna o documento um exemplo concreto de Idealpolitik.
            Se a intenção era apresentá-lo como uma alternativa a políticas ou medidas seguidas atualmente ou em implementação pelos dois países, o documento falha por não ser suficientemente detalhado ou explícito quanto aos meios e mecanismos pelos quais se faria a mudança de políticas. Se ele pretende, por outro lado, confirmar tendências ou movimentos já seguidos pelos dois países, trata-se de algo redundante e meramente declaratório. Nos dois casos, ele apresenta reduzido valor prático e escasso mérito quando às possibilidades futuras de sua universalização ou sua disseminação para outros países, dentro da região e fora dela.
            A rigor, o epíteto “consenso” parece um pouco exagerado, pois se trata, de fato, de uma declaração de apenas dois países de uma determinada região geográfica, o que talvez não o qualifique para ser apresentado com tal substantivo abrangente.
            Reduzirei agora as cinco páginas do documento ao núcleo essencial das propostas consignadas nos seus parágrafos, eliminando apostos e elementos adjetivos, e retendo apenas sua substância essencial.


Análise tópica do documento:
1. Fortalecer a democracia política, com combate à pobreza e à desigualdade, que configuram perda de cidadania.
            Deveria ser apenas uma constatação de um estado de fato, não um objetivo a ser alcançado, o que denota, talvez, insegurança quanto à sustentabilidade do regime na região. Em todo caso, esse fortalecimento depende mais de dinâmicas internas do que de processos conjugados, já que na mesma região — seja Europa, Ásia ou América Latina — podem conviver diferentes regimes políticos, com maior ou menor renda per capita. Não existe, aliás, uma correlação estrita entre renda e regime político, mas é também verdade que países pobres, de escasso desenvolvimento econômico, tendem a ser mais autoritários do que as economias avançadas. A cidadania e a democracia têm mais a ver com a natureza da sociedade civil do que com a configuração estrita do Estado, ou com o grau mais ou menos equitativo, ou desigual, da distribuição de renda. Democracias avançadas tendem a ser mais igualitárias, o que não impede que regimes democráticos tenham convivido, no passado, com regimes de exclusão ou abertamente escravagistas — como na Grécia clássica, ou no sul dos Estados Unidos, por exemplo — e que democracias modernas tenham conhecido recentes processos de concentração de renda — como é o caso, mais uma vez, dos Estados Unidos na atualidade, ou de outros países mais desenvolvidos.


2. Impulsar a integração regional, com participação da sociedade civil.
            Objetivo meritório, mas a integração pode ser vista como uma meta em si — o que pode conduzir a eventuais deseconomias, se feita de forma restritiva — ou apenas como um meio para se atingir outras metas, como o desenvolvimento econômico e social ou o progresso tecnológico.


3. Globalização sem concentração econômica.
            Deveria ser uma aspiração, mas de fato, como se trata de processo relativamente aleatório, com poucos controles governamentais sobre seus resultados efetivos, torna-se difícil garantir esse objetivo, a menos que se empreenda uma administração restritiva das relações econômicas internacionais de cada país, ou seja a administração estatal da abertura econômica. A concentração de renda pode aliás ocorrer sem globalização, como provado pela experiência brasileira de grande crescimento e aumento das exportações nos anos 70 e 80, resultando num menor coeficiente de abertura econômica, num grau avançado de nacionalização dos sistemas produtivos e numa distribuição ainda mais desigual da renda. De fato, a experiência histórica precedente demonstrou que são os períodos de fechamento e, portanto, de não-globalização que conduzem a processos de concentração da renda e de monopólios — públicos e privados — e não as fases de abertura à competição externa, que desconcentram poder e riqueza.


4. Políticas de crescimento com distribuição eqüitativa, via ordenamentos tributários e fiscais mais justos.
            Totalmente desejável, mas não há nenhuma explicitação quanto aos meios pelos quais se faria esse crescimento com distribuição ou que natureza teriam os citados ordenamentos “mais justos”.


5. Fim da pobreza não se resolve com assistencia, mas requer emprego e investimento produtivo.
            Nada de mais verdadeiro, mas a observação acima também se aplica: como assegurar essa meta geral e como serão garantidos emprego e investimentos?


6. Papel estratégico do Estado, incremento de sua eficácia e transparência.
            O Estado sempre teve, e continuará tendo, papel estratégico nas economias modernas, o que quer que façam os governos para diminuir-lhe o tamanho. Ele conheceu notável evolução em todos os países, geralmente na direção de uma maior eficácia administrativa e de um tratamento impessoal — isto é, burocrático — de seus mecanismos de gestão. Em poucos lugares, e a África seria o exemplo mais contundente, ele regrediu ao ponto de caminhar no sentido da falência administrativa ou do aumento da corrupção.


7. Prioridade absoluta à educação como ferramenta de inclusão social.
            Objetivo altamente meritório e aliás verdadeiramente estratégico. Deveria ser erigido em princípio absoluto da ação do Estado e se ver atribuído prioridade sobre todas as demais prioridades, e não apenas de maneira declaratória.


8. Construir a sociedade da informação com inclusão social e desenvolvimento.
            Nada objecionável, como em outros casos de intenção declarada, mas não sabe bem como essa intenção será convertida em realidade.


9. Revolução informática apresenta perigo de exclusão, gerando brecha tecnológica em relação aos países industrializados. Devemos promover a sociedade da informação.
            De acordo quanto aos objetivos “promocionais”, mas cabe observar que, se ocorre uma verdadeira revolução informática, ela raramente será excludente, pelo velho princípio revolucionário que tende a operar a transformação das estruturas sociais.


10. Gerar pólo científico e tecnológico regional com critério de eqüidade social.
            Idem, idem, mas pergunta-se porque a noção de pólo deve recolher prioridade em face da “simples” disseminação do conhecimento científico e tecnológico em toda a sociedade. O “pólo regional” não precisa estar desconectado das realizações em outros países nos mesmos terrenos, e a indução artificial de algum pólo pode representar deseconomias auto-cumulativas. No plano conceitual, aliás, a noção de pólo se choca com o critério da equidade.


11. Existem desequilíbrios internos e desigualdades regionais. Propomos políticas de desenvolvimento que respeitem a diversidade do território.
            Uma constatação óbvia, que requer medidas não tão óbvias. A proposta não diz absolutamente nada, pois se a política de desenvolvimento — o que quer que isso queira dizer — não respeitar a diversidade do território ela tende a gerar deseconomias e ser uma indutora artificial de atividades, com fortes subsídios ou distorções das atividades econômicas.


12. O trabalho constitui instrumento de promoção das condições de vida. Desejamos linhas de ação que permitam coesão social e dignidade do trabalhador.
            Excelente programa de trabalho. Fica faltando a explicitação quanto aos meios e a definição de quais seria, exatamente, essas linhas de ação. Algumas podem resultar em menor nível de empregabilidade, como descobriram vários países europeus que, ao garantir direitos amplos aos trabalhadores, acabaram gerando desemprego involuntário e extrema igidez nos mercados laborais, com segmentação exagerada e assistencialismo indevido, indutor de uma maior proporção de desemprego estrutural.


13. Reiteramos os princípios sobre o desenvolvimento sustentável e vamos implementar os acordos multilaterais ambientais.
            Meritório.


14. Continuaremos buscando a gestão integrada dos recursos hídricos compartilhados.
            Absolutamente inteligente, e mesmo racional em se tratando de vizinhos com rios e bacias contíguos e sucessivos.


15.O Mercosul não é apenas um acordo comercial, mas um espaço de valores e vamos fortalecê-lo e ampliá-lo.
            Certamente, e alguns desses valores já estão expressos nos parágrafos preambulares do Tratado de Assunção. O fortalecimento e mesmo a ampliação do Mercosul, porém, não devem ser vistos como fins em si mesmos, mas como meios para se atingir outros objetivos, como o desenvolvimento econômico e social, avanços tecnológicos, inserção na economia internacional etc.


16. A integração sul-americana fortalece nossa inserção no mundo, permitindo enfrentar os movimentos desestabilizadores do capital financeiro especulativo e os interesses dos blocos mais avançados e ela pretende conformar um modelo de desenvolvimento com crescimento, justiça social e dignidade dos cidadãos.
            A integração não deveria ser, a princípio, excludente ou confrontacionista. O tal de “capital financeiro especulativo” só adquire essa característica quando ele tem algo sobre o que especular, o que geralmente significa economias dotadas de regras pouco estáveis, submetidas a políticas erráticas e necessitadas de fortes influxos de capital, de qualquer natureza, por evidentes desequilíbrios internos. A volatilidade tende a ser algo intrínseco, não extrínseco às economias colocadas nessa situação. Capitais especulativos podem ser barrados por uma simples medida administrativa, como a aplicação de uma taxa, por exemplo, desde que se possa fazê-lo sem complicações para o próprio país.


17.Queremos continuar as negociações da Rodada de Doha em bases equilibradas, em particular no capítulo agrícola, para consolidar um sistema multilateral de comércio sem distorções e não-discriminatório. Vamos estabelecer alianças com países com interesses e preocupações semelhantes.
            Objetivo circunstancial e conjuntural, que se esgota em suas circunstâncias ou em sua conjuntura de realização. Não deveria, normalmente, fazer parte de um documento que se pretende de estabelecimento de regras programáticas, não de metas transitórias. Em todo caso, não há nada de objecionável nesse objetivo.


18.O Mercosul busca acordos equilibrados com outros sócios da região, em particular com a Comunidade Andina.
            Idem, ibidem. Há uma certa propensão natural, quase que de fatalidade geográfica, nesse objetivo, mas ele deveria ser visto, igualmente, como não excludente de outras relações e parcerias.


19. Negociaremos a ALCA à partir do Mercosul, para obter um acordo equilibrado e flexível, para acomodar situações nacionais. O Mercosul tem proposta alternativa realista para  alcançar um acordo satisfatório em janeiro de 2005.
            Idem. Plenamente justificado. Caberia defender e legitimar tal proposta.


20. A contrapartida da dívida pública é a criação de riqueza e de emprego, a poupança, a redução da pobreza, a educação e a saúde, bem como políticas de desenvolvimento econômico e social.
            Difícil objetar quanto aos objetivos em si, mas caberia observar, como boa regra de política econômica, que isso é verdadeiro apenas nos casos em que a dívida pública significa investimento com retorno futuro, para que as gerações seguintes sejam beneficiadas com os desequilíbrios orçamentários ou as “antecipações de gastos” do presente, caso contrário, se a dívida é acumulada para financiar gastos correntes e outras atividades rentistas o resultado não será criação de riqueza, mas promessa de pobreza e de cargas insuportáveis para as gerações futuras. Infelizmente, nas histórias econômicas respectivas de Brasil e Argentina, temos assistido mais exemplos da segunda experiência do que da primeira, com resultados atuais que já se conhecem.


21. Queremos uma ordem multilateral baseada na igualdade soberana e rechaçamos o unilateralismo.
            Compreensível que seja assim, ao início do século XXI, quando atitudes imperiais e imposições com base na força já não mais podem guiar as ações das nações civilizadas. O mundo entretanto ainda não chegou a Kant, estando bem mais para Hobbes em várias de suas manifestações, e não apenas por parte de países poderosos.


22. O multilateralismo e o respeito ao Direito Internacional são a base da segurança internacional e dos esforços de desarmamento e de não-proliferação.
            Absolutamente sem objeções, quanto ao fundo. Em circunstâncias concretas, porém, esses princípios não bastam. Em 1938, os chamados appeasers pretenderam fazer economia de um conflito com Hitler: ganharam um ano, após o que o mundo mergulhou no pior conflito de toda a história das civilizações humanas. Talvez uma atitude mais firme, não necessariamente prevista no direito internacional da Liga das Nações, tivesse poupado a humanidade de tanto sofrimento e destruição de bens e vidas. Por vezes, o desarmamento tem de ser imposto com a força das armas, não com a invocação de  um direito ainda não abrangente e sobretudo não garantidor da paz e da segurança.


23. As Nações Unidas e seu Conselho de Segurança são centrais na manutenção da paz e da segurança internacionais, e para a promoção do desenvolvimento econômico e social. Deve-se respeitar a Carta da ONU e os princípios do direito internacional.
            De acordo. Mas, a Carta também previu uma força militar da própria ONU, o que até agora não foi possível lograr-se. Sem dispor de meios eficazes de dissuasão ou de imposição de sua vontade, a ONU e seu Conselho de Segurança podem não ser tão eficientes quanto se pretende.


24. As ameaças à paz e à segurança internacionais e o terrorismo devem ser combatidos de acordo com a Carta das Nações Unidas e com os instrumentos jurídicos nos quais o Brasil e a Argentina são parte.
            Nem a Carta, nem a ONU podem impedir ataques terroristas, que tendem a ser imprevisíveis e de toda forma não podem ser dissuadidos por “instrumentos jurídicos”, já que os terroristas se colocam à margem da lei e das próprias normas da sociedade civilizada. A menos que a Carta e esses instrumentos sejam capazes de garantir essas ameaças, os países têm o direito — e suas lideranças políticas o dever — de assegurar que tais condições não colocarão a vida de seus cidadãos em risco.
            Dois exemplos bastam para comprovar isso: os ataques contra a Embaixada de Israel e a associação judaica em Buenos Aires, até hoje não elucidados, com terroristas não plenamente identificados. Aliás, um único exemplo bastaria para destruir a tese de que ONU e instrumentos jurídicos são suficientes nesse tipo de ameaça.


25. Vamos trabalhar para a concretização deste Consenso e convidamos os países latino-americanos para alcançarmos juntos uma sociedade mais justa, eqüitativa e solidária, que fortaleça a democracia na região.
            De acordo. Seria preciso começar disseminando este documento e recolher então a opinião dos demais, antes que ele possa efetivamente apresentar-se como “Consenso”. Não se deveria, entretanto, esperar adesão inquestionável dos demais, pois isso significaria talvez uma espécie de “imposição unilateral” de dois países sobre os demais, que provavelmente teriam, ou terão, suas próprias contribuições e comentários a fazer ao documento. O teste da história significa que um documento com tal pretensão tende a ser incorporado como um dos referenciais de políticas, internas e externas, a serem seguidas por esses países: o tempo dirá se o destino efetivo do documento confirmará suas pretensões, de resto legítimas, como todo texto que pretende ao bom senso.

Paulo Roberto de Almeida
Miami, 20 de outubro de 2003