Continuação do post anterior
A luta armada no Brasil: depoimento de um quase combatente (7)
Paulo Roberto de Almeida
(...)
Vamos tentar proceder de
maneira sistemática para tornar o debate mais racional. Podemos, por exemplo,
abordar a questão por meio das perguntas clássicas dos jornalistas, que também
servem, com o acréscimo final da análise interpretativa, de guia para o
historiador de um fato ou processo objetivo qualquer: o que, quando, onde, como
e por que?
O que foi a luta armada no Brasil? Ela foi um empreendimento
essencialmente artificial, conduzido por um reduzido número de militantes
radicais que, interpretando mal os sinais de descontentamento de certa fração
da comunidade politizada que tinha sido alijada do poder com a derrocada (quase
sem traumas) do incompetente governo do presidente Goulart, resolveu passar à
“ação”, não para se encaixar numa continuidade que poderia ser considerada
“natural” da luta política – ou seja, um exercício de “resistência”
incontornável em face de uma situação absolutamente opressiva – mas para
atender a estímulos vindos de fora, basicamente das lideranças cubanas. Não
havia, nem nunca houve sob o regime militar, um fechamento completo de todas as
possibilidades de resistência e de luta política contra o governo, como o provam
as inúmeras ações, processos e coalizões que se formaram para combatê-lo, seja
por parte de forças políticas temporariamente alijadas do poder, seja ainda por
frações da própria esquerda tradicional (o Partidão, por exemplo, que sempre
condenou as ações dos guerrilheiros, chamando-os de “patriotas equivocados”).
Em outros termos, a luta
armada não correspondia ao desdobramento natural, e necessário, em face de uma
situação de bloqueio de todas as demais possibilidades de luta política para
que fossem atingidos os fins pretendidos, sejam estes a “volta à democracia” –
como alegam, hoje, mentirosamente, os derrotados vingativos –, sejam eles
qualquer forma de “democracia popular” (como, aliás, vem ocorrendo hoje em
diversos países da América Latina, pelo voto livre da população). O Brasil
certamente não era a Argélia dos anos 1950, quando todas as possibilidades de
autonomia tinham sido fechadas pelo colonizador; nem uma tirania despótica,
como certos regimes asiáticos, ou mesmo latino-americanos, cuja caricatura foi
feita em ampla literatura sobre os “supremos ditadores” da região. O Brasil dos
militares era um regime modernizador autoritário, à la Bismarck, como aliás
caracterizado em trabalhos de brasilianistas e como, justamente, consideravam
ser uma “via rápida” e aceitável de modernização “pelo alto” personalidades da
esquerda como Hélio Jaguaribe, por sinal exilado durante algum tempo por sua
identificação com o governo anterior.
A luta armada no Brasil
não se colocou, portanto, como a única via de luta política contra o regime
militar e ela só veio a existir pela análise fundamentalmente errada que
fizeram de sua dinâmica alguns líderes radicais da esquerda brasileira e pelo
estímulo oportunista – pela sua própria necessidade de sobrevivência, num contexto
relativamente hostil – que lhe deram os líderes comunistas cubanos. Sem esses
dois elementos, o do equívoco de análise e o dos meios materiais e o incentivo
político dos líderes cubanos – aliás muito admirados, e não só pelos engajados
na luta armada, como por largas frações da juventude e da opinião pública mal
informada, como até hoje, por sinal – a luta armada provavelmente jamais teria
existido no Brasil.
Quando ela se desenvolveu? Praticamente desde o início – por
despeito de líderes que se pretendiam maiores do que efetivamente eram, como
Brizola, por exemplo – e bem antes, em 1965 para ser mais exato, quando o
regime estava longe de ser aquele monstro repressivo apontado numa
historiografia enviesada, totalmente equivocada e, de fato, intelectualmente
desonesta em relação à verdade. A repressão do regime militar se desenvolveu depois, não antes, que a guerrilha
urbana começasse suas ações, e esteve em atraso durante praticamente dois anos,
até que sua organização tardia passasse a demonstrar alguma efetividade
prática. Ou seja, não foi a repressão política do regime que provocou a
guerrilha supostamente de resistência contra um “governo opressivo”, e sim o
deslanche de operações armadas, quando o governo tentava uma espécie de
“reconstitucionalização” do regime – por meio da nova Carta aprovada em 1967 –
que incitou, na verdade obrigou, o governo a reagir contra os grupos armados.
Essa cronologia, absolutamente objetiva e aderente aos fatos, precisa ser
lembrada, para que os derrotados vingativos não aleguem que não lhes restava
outra opção (de luta política) que a luta armada contra um regime ditatorial.
Os militares brasileiros
nunca foram os golpistas tirânicos ou despóticos que essa historiografia
maldosa insiste em proclamar. Desde o início de seu envolvimento nos processos
de governança – praticamente com o golpe militar que derrocou a monarquia,
aliás sem o desejar, e inaugurou a República – as forças armadas, por vias
institucionais, ou por revoltas de oficiais subalternos, sempre buscaram atender
aos reclamos de uma classe média desejosa de mais liberdade, mais transparência
política, mais honestidade eleitoral e, sobretudo, de preservação da ordem e
dos fundamentos mínimos da normalidade política e econômica. Foi assim nas
revoltas dos anos 1920, na sua posição “atentista” em relação à revolução da
Aliança Liberal em 1930, na defesa da unidade nacional em 1932, na intentona
comandada do exterior em 1935, na derrocada do ditador em 1945, e em algumas
ações de estabilização nos anos 1950, antes da decisão (aliás não unânime) de
marchar contra o governo em 1964; foi bem menos no golpe estado-novista de 1937
e em algumas revoltas episódicas dos anos 1950, mas sem que o espirito
legalista das FFAA deixasse de se manifestar, sempre em defesa da ordem e da
unidade nacional. Mesmo durante o regime “militar” de 1964 a 1985, o registro é
de uma predominância civil nos gabinetes e um cuidado legalista bastante
pronunciado, com a emissão de atos institucionais em conjunturas precisas, sem
o arbítrio (e até a selvageria) a que se assistiu em diversos outros episódios
de triste memória na história de nossos vizinhos latino-americanos. De forma
geral, não há comparação possível entre a chamada “ditabranda” brasileira –
apenas episodicamente mais dura – e as ferozes ditaduras militares em alguns
desses países, como tampouco há qualquer similitude, absoluta ou relativa,
entre o número de “vítimas” que se pode honestamente computar num e noutros
casos.
(Continua...)
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