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domingo, 22 de novembro de 2020

O papel do euro no sistema monetário internacional (1999) - Paulo Roberto de Almeida

Um desses casos incríveis de um texto que foi, aparentemente, escrito DEPOIS (1999) que foi publicado (1998). A razão é conhecida por vários editores de periódicos: atraso na publicação dos periódicos, e busca de material para preencher as lacunas. O texto repete várias passagens que eu já havia exposta neste artigo: 606. “O futuro euro e o Brasil: efeitos esperados”, Brasília, 5 março 1998, já divulgado neste espaço: Diplomatizzando (22/11/2020; link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2020/11/o-futuro-euro-e-o-brasil-efeitos.html).


 O papel do euro no sistema monetário internacional

 

Paulo Roberto de Almeida 

Conselheiro. Chefe da Divisão de Política Financeira do

Ministério das Relações Exteriores. Doutor em Ciências Sociais.

Brasília, 22 janeiro 1999, 5 p.

Publicado em Carta Internacional

(São Paulo: NUPRI-USP, ano VI, nº 69, novembro 1998, p. 4-5). 

Relação de Publicados nº 231.

 

 

A inauguração do euro, em janeiro de 1999, como moeda oficial — embora ainda escritural — de onze dos quinze países-membros da União Europeia e sua introdução efetiva, a partir de 2002, como meio circulante único dos integrantes da “Euroland” representarão, para a Europa e para o mundo, o início de uma fase de grandes transformações no atual sistema monetário internacional, até agora marcado pela presença quase dominante do dólar enquanto instrumento de intercâmbio, reserva de valor e mesmo unidade de referência para dezenas de países integrando o sistema financeiro mundial. 

Caberia, contudo, advertir, antes de mais nada, que a criação do euro, em si, tem pouco a ver com seu papel futuro de desafio à hegemonia internacional do dólar, derivando essencialmente, não de um suposto projeto de “poder monetário”, mas, de um longo processo que pode ser remontado à visão integracionista de Jean Monnet e à concepção política que presidiu até agora à integração europeia. Não obstante tal fato, e a despeito da (até agora) oposição de princípio do Reino Unido e da Dinamarca, a opção dos Estados-membros pela renúncia à soberania monetária e em favor da administração coletiva da coordenação macroeconômica carrega também forte conteúdo emblemático sobre a Europa unida do século XXI e seu papel internacional. O elemento fundamental desse avanço na “união cada vez mais estreita dos povos europeus” no plano monetário é de natureza interna e tem a ver, em termos kantianos, com o compromisso irrevocável dos países membros com uma ordem comunitária como garantia de “paz perpétua” no continente. Adicionalmente, as funções que o euro possa assumir futuramente enquanto “moeda mundial” representarão a consequência eventual da afirmação ulterior do poder econômico da União Europeia no plano internacional.

O euro representa, portanto (e em primeiro lugar), a conformação definitiva do mercado unificado prometido pelo Ato Único de 1986 (conformado em 1993) e do projeto de união monetária estabelecido pelo Tratado de Maastricht de 1992 (em vigor desde novembro de 1993). Numa visão mais sequencial, o euro pode ser visto como o resultado dos primeiros esforços de coordenação de políticas e de unificação monetária, tal como estabelecidos nos planos Barre (1967-69) e Werner de união monetária (aprovado em 1970 e prevendo sua realização num espaço de dez anos), ambos tornados inexequíveis pelo desmantelamento do sistema de Bretton Woods em 1971-73. No regime de flutuação de moedas que se seguiu, a então Comunidade Europeia avançou nos esforços de coordenação, estabelecendo primeiro a “serpente dentro do túnel”, depois o Sistema Monetário Europeu (1979), funcionando segundo um mecanismo de banda cambial ajustável entre as moedas participantes (tendo o deutsche mark como âncora), mas com paridades estreitamente correlacionadas entre si.

O euro confirma, em segundo lugar, uma das tendências mais evidentes do processo de globalização, em curso acelerado desde a derrocada final do socialismo no começo dos anos 90, movimento tendente a unificar mercados, concentrar força e poder nas mãos de alguns global players e vincular estreitamente circuitos produtivos e financeiros. Ele também reforça as tendências à estabilidade do processo de integração europeia no que se refere aos mecanismos de coordenação intergovernamental de políticas macroeconômicas – o que parece ser válido para experiências similares de integração, como seria supostamente o caso do Mercosul ‑, ainda que a adesão permanente das autoridades financeiras nacionais, em relação a eventuais “desvios” orçamentários, por exemplo, tenha tido de ser reforçada por um “Pacto de Estabilidade e Crescimento”, concluído em meados de 1997. Esse acordo representou, como se sabe, um difícil compromisso entre aqueles que defendem, antes de mais nada, a manutenção do poder de compra da nova moeda – como é o caso do Bundesbank e outros aderentes da ortodoxia monetária – e os que privilegiam seu papel “social” e que gostariam de ver o Banco Central Europeu promover políticas de estímulo à criação de empregos. Cabe recordar a esse propósito que, de acordo com disposições do próprio Tratado de Maastricht, as autoridades monetárias nacionais são proibidas de financiar déficits orçamentários, prevendo ainda o Pacto penalidades pecuniárias para aqueles Estados que incorrerem em desvios significativos em relação aos critérios de Maastricht nesse particular (máximo de 3% do PIB de déficit orçamentário e compromisso político de manutenção do equilíbrio fiscal).

Do ponto de vista da atual “geopolítica” do sistema financeiro internacional, o euro será, inevitavelmente, um formidável concorrente em face do dólar, este até agora marginalmente complementado pelo deutsche mark e pelo iene japonês enquanto moedas de intercâmbio e expressão de ativos econômicos. A nova moeda terá efeitos diversos, de grande amplitude, nas áreas do comércio de bens e serviços, de fluxos de investimentos (de risco e de portfólio), dos mercados financeiros (isto é, empréstimos e créditos), das reservas em divisas dos países extra-europeus e, também, no âmbito do sistema monetário internacional, o que está evidentemente vinculado ao poder econômico da União Europeia.

A importância da União Europeia na economia mundial pode ser comparada à dos Estados Unidos: com uma população de 300 milhões de pessoas, o PIB de 8 trilhões de dólares — similar ao do gigante norte-americano — cai ligeiramente quando computado apenas o peso da “Euroland”, mas deve aumentar para volumes equivalentes quando os países hoje ausentes da união monetária (Reino Unido, Suécia e Dinamarca, que optaram por ficar fora por enquanto, e a Grécia, que não se qualificou segundo os critérios de Maastricht) a ela aderirem numa fase seguinte. A Europa mobiliza parte significativa do comércio mundial, assim como ela constitui, igualmente, fonte importante de capitais internacionais de empréstimo e de investimento direto nos mercados emergentes. É previsível, por exemplo, que com base na política conservadora que deverá ser praticada pelo Banco Central Europeu, o euro constitua fonte de estabilização nos mercados financeiros globais, ao lado do comportamento algo mais errático do dólar e da importância ainda reduzida do iene nas transações comerciais e financeiras internacionais.

Do ponto de vista do intercâmbio comercial, o euro vai significar uma redução substancial dos custos em transações correntes realizadas no continente europeu, uma vez que a unificação efetiva do mercado representará maior fluidez das correntes existentes e potenciais de comércio, facilitando o rápido transbordo de mercadorias em todos os países aderentes ao euro e nos que o utilizarem como moeda de referência (toda a mittelEuropa, as zonas bálticas e mediterrâneas e mesmo escandinavas e britânicas). O comércio será apenas e simplesmente comércio, e não mais custosas operações de câmbio e perdas significativas em comissões para exchange-dealers.

No que se refere aos fluxos de investimento direto, os efeitos serão ainda mais impressionantes, pois que não apenas as empresas e os bancos europeus se fortalecerão nos mercados globais, como disporão de maior volume de recursos — considere-se, por exemplo, a aritmética da soma das poupanças nacionais e das pequenas sobras marginais, antes atomizadas em mercados segmentados — para aplicações de risco nas economias da própria região e nas extra-europeias. A Europa liberará enormes somas de dinheiro, numa única denominação, retomando a posição privilegiada que ela tinha no século XIX como principal exportador líquido de capitais para os países emergentes. 

Do ponto de vista dos mercados financeiros, os mesmos efeitos acima descritos potencializarão o papel histórico que ela tinha no século XIX como world’s banker, pois que uma fonte uniforme de créditos produzirá muito maior volume de recursos do que a soma dos mercados financeiros nacionais. Os custos de captação serão sensivelmente reduzidos, bem como, no caso dos empréstimos syndicated, os encargos adicionais derivados da mobilização de diferentes denominações, que simplesmente desaparecerão. Para os tomadores, será como se abastecer num grande shopping center, em lugar de percorrer sucessivas quitandas ou empórios “financeiros” nacionais. A concorrência da oferta atuará também para reduzir taxas de juros e eventualmente até os prêmios de risco. 

Os países de fora da zona também encontrarão algumas vantagens financeiras ou de simples contabilidade em converter, desde o início, uma parte de suas reservas em euro, uma moeda mais estável que o dólar e supostamente menos suscetível de sofrer ataques especulativos, pois que sustentada por um banco central autônomo, comprometido unicamente com sua estabilidade e seu poder de compra, independente das autoridades monetárias nacionais, mais sensíveis às questões sociais ou dotadas de maior permissividade orçamentária. Essa estabilidade — interna e externa — do poder de compra do euro será presumivelmente preservada, mesmo ao custo da manutenção de uma maior taxa de desemprego na Europa, cujos índices já são, aliás, anormalmente altos em relação ao padrão observado durante o regime de paridades fixas de Bretton Woods, mas isso tem mais a ver com a rigidez dos mercados laborais e com a relativa imobilidade de fatores do que com a orientação da política monetária em si.

A substituição de parte das reservas nacionais de países extra-europeus em euro não será exatamente representativa, no começo, do volume de intercâmbio realizado com a Europa — no caso do Brasil algo como 30% do total —, uma vez que a maior parte das commodities e as próprias empresas exportadoras continuarão a ter suas operações faturadas em dólar (hoje dominando 50% do comércio internacional). O peso do euro nas reservas nacionais também deverá levar em conta, pelo menos no início, sua menor liquidez internacional, comparativamente ao dólar, este mais bem aceito em mercados afastados como os da Ásia e da América Latina. Mas, essa fração tenderá a crescer progressivamente, em função do peso da Europa e do próprio euro nos diferentes tipos de transações econômicas internacionais.

Do ponto de vista dos mercados financeiros, por outro lado, deve-se reconhecer que os portfólios dos investidores privados e oficiais, mesmo na Europa, são altamente dolarizados, tendência que será revertida apenas gradualmente, em função, entre outros fatores, da rentabilidade relativa das moedas, de seu grau de estabilidade e de sua liquidez (elementos geralmente contraditórios entre si, como ensinam os manuais de economia). Não há, por exemplo, nenhum acordo entre as autoridades monetárias dos Estados Unidos, da “Euroland” e do Japão para a manutenção de paridades correlacionadas entre suas respectivas moedas, o que indica obviamente que o sistema monetário e financeiro internacional continuará a ser tão turbulento e instável como ele tem sido desde a derrocada do padrão-ouro ao final da belle époque.

O fato inédito é que assistimos ao começo do final — um cenário ainda longínquo, reconheça-se — da hegemonia absoluta do dólar no sistema financeiro conhecido no último meio século. Esse declínio da predominância do dólar será tanto mais lento quanto forem incertos os elementos propriamente econômicos e tecnológicos que poderão sustentar uma ascensão da Europa a sua antiga posição de world’s banker. Em favor do dólar deve-se lembrar que os padrões dominantes tendem a ganhar por inércia, fenômeno já conhecido nos mercados de software e de videocassetes, por exemplo. Em favor do euro pode-se adiantar sua menor volatilidade intrínseca e seu papel político positivo em outras experiências de integração regional, a começar pelo Mercosul. De fato, um mercado comum pleno requer, quase que naturalmente, uma moeda comum e o fato da existência do euro deverá atuar como catalisador político e econômico no processo de ampliação ulterior da União Europeia.

Finalmente, persistem ainda dúvidas sobre a importância financeira do euro nas operações das instituições monetárias internacionais e regionais, o que tem a ver, também, com a redefinição política do poder intrínseco associado aos Estados Unidos e aos países da “Euroland” no diretório das mais importantes dentre elas, a começar pelas “sisters in the woods”, em especial no FMI. A assunção, pelo Banco Central Europeu, de um mandato amplo de representação europeia nessas instituições pode suscitar um movimento de reforma do sistema financeiro internacional — que se requer desde o desmantelamento dos esquemas de Bretton Woods em 1971-73 —, o que não deixa de ser positivo para países como o Brasil, cujo poder econômico intrínseco vem crescendo na economia internacional. O euro dá início, com toda certeza, a um admirável mundo novo no sistema financeiro e monetário internacional.

Que ensinamentos ou que consequências poderiam ser extraídos a partir da experiência europeia para um esquema de integração conduzindo tendencialmente a um mercado comum como o Mercosul? Se é verdade que este não pretende permanecer indefinidamente como uma simples zona de livre comércio ou uma união aduaneira imperfeita, como hoje, a questão da moeda única deve ser desde já colocada como objetivo final, ainda que longínquo, do processo de integração. Um mercado comum pleno, repita-se, pede naturalmente uma moeda única. Atualmente, contudo, parece evidente que o problema não se coloca ainda em termos de moeda, mas simplesmente como uma obrigação de coordenação de políticas econômicas. Este é um requisito essencial para que choques assimétricos (sempre à espreita) não introduzam dificuldades adicionais e uma séria distorção nos efeitos potencialmente benéficos do processo integrativo. As autoridades financeiras dos países-membros devem reconhecer, antes de mais nada, que as políticas cambiais são uma matéria de interesse comum e que a interação constante entre formuladores de políticas e o permanente intercâmbio de informações entre seus operadores constituem passos indispensáveis para a coordenação de políticas nas áreas monetária e cambial. Essa coordenação deve ser institucionalizada progressivamente, até atingir-se o “ponto de não-retorno”, quando a própria renúncia de soberania monetária passa a ser considerada como uma garantia adicional de boa gestão macroeconômica e um passaporte para a estabilidade.

 

 [Brasília, 655: 27.01.99] 


O futuro euro e o Brasil: efeitos esperados (1998) - Paulo Roberto de Almeida

Em 1998, às vésperas da fixação das taxas de câmbio dos países candidatos a ingressar na primeira leva do euro – que seria uma moeda fiduciária entre 1999 e 2001, quando seria finalmente introduzida a moeda comum, não única, entre os países habilitados –, eu elaborei um texto sobre o impacto do euro para a economia brasileira, com destaque para as áreas de comércio, investimentos, finanças, reservas e no sistema monetário internacional. Posso dizer que eu estava bastante otimista quanto às chances dessa moeda representar uma mini-revolução no sistema monetário internacional, algo que não se confirmou no seguimento.

Paulo Roberto de Almeida

 O futuro euro e o Brasil: efeitos esperados

 

Paulo Roberto de Almeida 

[nota de comentários pessoais; não reflete eventuais

opiniões ou posições da área financeira governamental]

Brasília, 5 março 1998

Publicado na Carta de Conjuntura do CORECON-DF (Brasília: ano 12, nº 56, março/abril de 1998, p. 18-19). Relação de Publicados nº 216.

 

 

A introdução do euro como meio circulante, a partir de 2001, representará, para a Europa continental, a conformação definitiva do mercado unificado prometido pelo Ato Único de 1986 e pelos acordos de Maastricht sobre a união monetária. A nova moeda terá efeitos diversos, de grande amplitude econômica, nas áreas de comércio de bens e serviços, de fluxos de investimentos (de risco e de portfólio), dos mercados financeiros (isto é, empréstimos e créditos), das reservas em divisas dos países extra-europeus e, também, no âmbito do sistema monetário internacional, o que está evidentemente vinculado ao poder econômico da União Européia.

Um rápido sumário sobre seus reflexos para o Brasil evidencia um conjunto de efeitos progressivos, todos eminentemente positivos para o País enquanto: (a) global trader, (b) captador de investimentos, (c) receptor de créditos, (d) detentor de reservas e (e) país interessado numa reforma realista do atual sistema financeiro internacional, mas dispondo de reduzido poder de influência sobre seus mecanismos de funcionamento ou de mudança.

Do ponto de vista do intercâmbio, nas duas direções, o euro vai significar uma redução substancial dos custos em transações correntes, pois que a unificação efetiva do mercado representará maior fluidez das correntes existentes e potenciais de comércio, facilitando o rápido transbordo de mercadorias brasileiras em todos os países aderentes ao euro e nos que o utilizarem como moeda de referência (toda a mittelEuropa, as zonas bálticas e mediterrâneas e mesmo escandinavas e britânicas). O comércio será apenas e simplesmente comércio, e não mais custosas operações de câmbio e perdas significativas em comissões para exchange-dealers (mon taux de chômage!).

No que se refere aos fluxos de investimento direto, os efeitos serão ainda mais impressionantes, pois que não apenas as empresas e os bancos europeus se fortalecerão nos mercados globais, como disporão de maior volume de recursos — aritmética da soma das poupanças nacionais e das pequenas sobras marginais, antes atomizadas em mercados segmentados — para aplicações de risco nas economias intra- e extra-européias. A Europa liberará enormes somas de dinheiro, numa única denominação, retomando a posição privilegiada que ela tinha no século XIX como principal exportador líquido de capitais para os países emergentes (vivent les rentiers!).

Do ponto de vista dos mercados financeiros, os mesmos efeitos acima descritos potencializarão o papel histórico que ela tinha no século XIX como world’s banker, pois que uma fonte uniforme de créditos produzirá muito maior volume de recursos do que a soma dos mercados financeiros nacionais. Os custos de captação serão sensivelmente reduzidos, bem como, no caso dos empréstimos syndicated, os encargos adicionais derivados da mobilização de diferentes denominações, que simplesmente desaparecerão. Será como se abastecer num grande shopping center, em lugar de percorrer sucessivas quitandas ou empórios “financeiros”. A concorrência da oferta atuará também para reduzir taxas de juros e eventualmente até os prêmios de risco. As autoridades brasileiras fizeram bem, aliás, em lançar desde já bonus governamentais denominados em euro: é a moeda do futuro.

O Brasil também encontrará vantagens financeiras e de simples contabilidade em converter, desde o início, uma parte de suas reservas — digamos de 25 a 30% — em euro, uma moeda mais estável que o dólar e supostamente menos suscetível de sofrer ataques especulativos, pois que sustentada por um banco central autônomo e independente, comprometido unicamente com sua estabilidade e seu poder de compra, sem a obrigação de responder a autoridades monetárias nacionais, mais sensíveis às questões sociais ou dotadas de maior permissividade orçamentária. A contrapartida é a menor rentabilidade ou a própria heterogeneidade contábil — algo como sair do padrão-ouro da belle époque para o bimetalismo pré-1871 —, mas esse tipo de desconforto é menos nocivo do que a instabilidade cambial. A chancelaria brasileira trabalhou em libras de 1822 a 1931, adotando então o dólar; talvez ela passe a trabalhar em euro a partir de 2010, o mais tardar.

Finalmente, e aqui entra um elemento de diplomacia financeira, o euro será talvez a grande chance de realizar, no século XXI, a grande reforma do sistema financeiro internacional que se requer desde o desmantelamento dos esquemas de Bretton Woods em 1971. Com efeito, não apenas se terá de rever a composição do SDR/DES — hoje baseado num coquetel das cinco principais moedas, das quais duas, e talvez três, desaparecerão —, como as novas paridades implicarão igualmente numa redefinição política do poder intrínseco a elas associado no board das “sisters in the woods”, em especial no FMI. A Itália tem uma certa razão ao pedir uma “representação européia” no CSNU, mas o que não se prevê é que essa unificação do poder político — e liberação de “vagas” adicionais para “emergentes” — talvez se dê antes no terreno econômico, com a assunção, pelo IME/BCE, de um mandato amplo de representação européia nas IFIs. É um admirável mundo novo!

 

[Brasília, PRA/606: 04/03/1998]

sábado, 19 de janeiro de 2019

O sistema monetario internacional no século XX: book review

Ao colocar uma resenha de livro abaixo, permito-me remeter, novamente a meu artigo sobre o euro, elaborado no momento em que a moeda comum da Euroland era lançada fiduciariamente, 20 anos atrás.

O euro aos 20 anos; ensaio PRA quando de sua criação (2000)

Paulo Roberto de Almeida

Behind the Scenes at the Central Banks that Created our Modern Monetary System

[From the Summer 2018 Quarterly Journal of Austrian Economics. A review of How Global Currencies Work: Past, Present, and Future by Barry Eichengreen, Arnaud Mehl, and Livia Chitu, Princeton, N.J.: Princeton University Press, 2018, 250 pp.]
The present volume is an engaging and intriguing account of how global currencies, such as British sterling and the U.S. dollar, have risen to global dominance in the international monetary arena, and how currencies such as the Chinese renminbi, for example, could follow in their footsteps. Divided into twelve chapters, the work focuses primarily on the international monetary history of the 20th century, complemented by a comparatively brief account of the 19th and 21st centuries. The narrower focus of the discussion in these chapters—and most of the data supplied in each chapter’s appendices—concerns the composition of foreign reserves, i.e. the balance between holdings of pounds and dollars, and later of yen, euro, and renminbi.
From this, the authors propose to tease out a few new factual discoveries and some implications for the future of the international monetary system. More precisely, they disavow the traditional theoretical view which argues that international currency status resembles a natural monopoly that arises organically from the benefits of using the currency of the most economically (commercially and financially) powerful country in international economic transactions, i.e. a monopoly due to network returns (p. 4), and winner-takes-all and lock-in effects.
Because, argue the authors, this ‘old’ model is not supported by much of the data from the 20th century, they propose a ‘new’ view arguing that multiple currencies can be used concomitantly on an international scale, such as the pound sterling and the dollar during the 1920s. These currencies played “consequential international roles” (p. 11) demonstrating that inertia and persistence due to network effects in international transactions are not as strong as previously thought. Their updated theoretical framework is borrowed from the process of technological development, where new technologies are adopted gradually by users and grow exponentially, thus using an analogy between the workings of international currencies and those of computer operating systems.
Eichengreen, Mehl and Chitu’s discussion also seems to revolve around the interplay between the political sphere and national monetary policies on an international scale, but this insight remains latent throughout their analysis. The authors focus rather on the technical aspects of international currency status and deliberately treat political and monetary matters as separate—in parts dismissing political matters completely.
Chapters 2, 3, and 4 contain a factually rich historical narrative of the origin and development of the holding of foreign reserves, particularly before and after the First World War. Scattered throughout are little gems useful to any scholar of monetary theory, like the fact that “foreign exchange reserves had accounted for less than 10 percent of total reserves in 1880, [but] accounted for nearly 15 percent in 1913” (p. 17).
In Chapter 4 the authors provide evidence of the currency composition of foreign exchange reserves in the 1920s and 1930s that best underpin their ‘new’ view: they find that the dollar overtook sterling as the international reserve currency in the mid-1920s, and not in the 1930s to 1940s as previously thought by monetary scholars. This proves that the sterling and the dollar shared, at the same time, the status of international currency. Contrary to the traditional view, then, international currency status is not subject to a natural monopoly.
To further explain how this came about, the authors show in subsequent chapters the great intervention efforts of the U.S. Federal Reserve to ‘support the market between 1917 and 1937’ (p. 69). The Fed’s heavy-handed approach to trade credit (chapter 5) and international bond markets (chapter 6) propelled the dollar to international currency status over a short period before its collapse during the Great Depression. However—and again disproving the theoretical model—the dollar recovered its status around the time of the Second World War and completely surpassed the British sterling, showing that the status of international currency is, once lost, not lost forever. Rather, it can be regained through the coordinated efforts of a powerful central bank, which can heavily benefit from engineering this rise to global currency status. Moreover, the authors argue, other countries benefit as well from not relying on one global lender of last resort, but rather on a network of lenders. Chapters 9, 10, and 11 discuss along the very same lines the rise and fall of the yen and the euro (with the euro crisis), and the future prospects of the Chinese renminbi, respectively.
Despite the great amount of historical information contained in this book, and the ample new data available to the authors, the volume falls short of the promise in its title. The narrative does not actually show how global currencies work in a comprehensive manner, but only how the global ascension of a currency can be traced back to the behind-the-scenes machinations of a central bank. As such, the subject could have been—and was—satisfactorily treated in a half dozen journal articles published by the authors between 2009 and 2016 (p. xv).
Nevertheless, it is still interesting to note that the geopolitical history of the world can be read through the history of monetary policy, or perhaps, that the history of monetary policy is mirrored in the history of geopolitics. As the authors themselves explain, the dominance of one country’s currency in international exchanges can indicate the “singular leverage” (p. 3) of that country’s central bank over international financial relations and international politics. More importantly, the reverse is also true: the dominance of one country in international politics is a good indicator of the international status of its currency throughout history.
However, because the authors choose to separate the political causes and implications of monetary policies from their economic aspects, the book ultimately provides a rather hesitant and unassuming analysis that makes it feel lackluster. Two questions arise that remain unanswered: Why do central banks benefit from their currency becoming global, if not by preventing domestic inflation from reflecting in their exchange rate and foreign reserves? And why do other countries benefit from having multiple lenders of last resort (multiple reserve currencies), if not by accomplishing the same disguise? Without an answer to these questions, or even an acknowledgment of their existence, the book appears to be a collection of great insights whose potential remains unrealized.
Let me briefly illustrate this by contrasting Eichengreen, Mehl, and Chitu’s analysis of the momentous change in international monetary relations at the Genoa Conference in 1922 with the one put forward by Mises and Rothbard.
The authors discuss in chapter 3 (From Jekyll Island to Genoa) the leading countries’ efforts to restore the gold standard in the 1920s whilst avoiding the deflationary repercussions following the period of great inflation during the First World War. According to the report of the financial commission,
the Genoa resolutions called for negotiating a convention based on the gold-exchange standard with a view to “preventing undue fluctuations in the purchasing power of gold”… The idea was to create an environment in which ‘credit will be regulated… with a view to maintaining the currencies at par with one another (pp. 38–39).
Eichengreen, Mehl and Chitu view this solely as an open effort of Great Britain to recover the lost dominance of the pound sterling, and the otherwise innocent desire to renounce the golden fetters of the pre-WWI gold standard. While discussing monetary competition between London and New York, they fail to pinpoint the nature of this competition, and avoid answering the question whether the new reserve system was “badly designed or badly managed” (p. 41).
In the system’s design lurked a fateful goal: the continued inflation of money supplies. Coordination efforts among central monetary authorities in reaching this goal was a first step toward abandoning the commodity money system. While the authors only seem to skirt around the issue, Rothbard (2010, pp. 94–95) explicitly argued that Great Britain wanted to establish
a new international monetary order which would induce or coerce other governments into inflating or into going back to gold at overvalued pars for their own currencies, thus crippling their own exports and subsidizing imports from Britain. This is precisely what Britain did, as it led the way, at the Genoa Conference of 1922, in creating a new international monetary order, the gold-exchange standard.
Mises had explained this need for policy coordination in a similar way:
Various governments went off the gold standard because they were eager to make domestic prices and wages rise above the world market level, and because they wanted to stimulate exports and to hinder imports. Stability of foreign exchange rates was in their eyes a mischief, not a blessing (2010a, p. 252).
If the various governments and central banks do not all act in the same way, if some banks or governments go a little farther than the others… those who expand [the money supply] more are forced to return to the market rate of interest in order to preserve their solvency through liquidity; they want to prevent funds from being withdrawn from their country; they do not want to see their reserves in… foreign money dwindling (Mises, 2010b, p. 77).
The crucial issue here, therefore, is not the prominence of one currency or another, but that this prominence was engineered to speed up the renunciation of the gold standard, and greatly enlarge the freedom of all central banks to inflate money supplies. The Genoa Conference had thus paved the way for the next steps: the Bretton-Woods conference of 1944 and the “closing of the gold window” in 1971. This process did not unfold without problems, but it created the auspicious environment for inter-governmental monetary agreements, and allowed the U.S. and other powerful nations to employ a “policy of benign neglect toward the international monetary consequences of [their] actions” (Rothbard, 2010, p. 101). This further removed many obstacles to creating “the ideal condition for unlimited inflation” (Rothbard, 2009, p. 1018)—a system mimicking a global fiat currency as closely as possible.
In this light, the desire to engineer global currency status for one nation’s currency is open to another, more somber interpretation, which highlights the pressing dangers of international fiat money. According to Mises (2010b, p. 254):
Under a system of world inflation or world credit expansion every nation will be eager to belong to the class of gainers and not to that of the losers. It will ask for as much as possible of the additional quantity of paper money or credit for its own country.
It is not usual in a book review to criticize the authors for failing to achieve something they did not explicitly set out to accomplish. And yet, How Global Currencies Work: Past, Present, and Future is wanting in both its depth and breadth of analysis. Nonetheless, the abundance of data on the composition of foreign exchange reserves the authors make available is impressive, and their accomplishment in this regard must be commended. The book is easy to read, even though largely technical in nature and much too narrow in its focus.
I remain hopeful that this project will be followed by another, more extensive investigation into the workings of global currencies. An alternative analysis of this data, focused on the differences in kind between commodity and paper money, would provide a much deeper and richer illustration of how global fiat currencies are made to work to serve the political purposes of one powerful nation or another. This would indeed illuminate much of the dark history of monetary policy over the last three centuries.
Dr. Carmen Elena Dorobăț is a Fellow of the Mises Institute and assistant professor of business and economics at Leeds Trinity University in the United Kingdom. She has a PhD in economics from the University of Angers, and is the recipient of the 2015 O.P. Alford III Prize in Political Economy and the 2017 Gary G. Schlarbaum Prize for Excellence in Research and Teaching. Her research interests include international trade, monetary theory and policy, and the history of economic thought.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

O euro aos 20 anos; ensaio PRA quando de sua criação (2000)

Quando o euro foi introduzido como moeda fiduciária – ou seja, em 1999, antes de sua introdução efetiva, como meio circulante, o que só ocorreu em 2002 – eu recebi um convite para fazer um verbete sobre o euro para uma Enciclopédia de Direito.
Agora que o euro já completou 20 anos, pode-se ler este meu ensaio com o olhar crítico do que deu certo e do que pode não dar certo. A integração tem muitos requerimentos e o da unificação monetária é um dos mais difíceis.
Eu provavelmente vou escrever um novo ensaio, com a experiência – êxitos e frustrações – das últimas duas décadas, e as falhas se devem mais a decisões políticas dos países membros do que a deficiências da própria moeda. Enquanto isso, vale ler o que eu escrevia no início de 2000, com uma pequena revisão alguns meses depois, apenas para contemplar a questão de uma eventual moeda comum no Mercosul, este sim uma grande frustração.
Mas, como no caso do euro, a culpa não é do Mercosul, e sim por causa de decisões políticas dos países membros.
Vamos reler e refletir.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 14 de janeiro de 2019

O euro: a moeda europeia

Paulo Roberto de Almeida
Washington, 719: 14/01/2000
In Carlos Valder do Nascimento e Geraldo Magela Alves (coords.), Enciclopédia de Direito Brasileiro, 2º volume: Direito Comunitário, de Integração e Internacional
(Rio de Janeiro: Editora Forense, 2002; ISBN 85-309-0860-0), pp. 214-219.

A inauguração do euro, em janeiro de 1999, como moeda oficial — embora ainda sob forma escritural até o final de 2001 — de onze dos quinze países-membros da União Européia, seguida de sua introdução efetiva, a partir de janeiro de 2002, como meio circulante único dos integrantes da chamada “Euroland”, representam, para a Europa e para o mundo, o início de uma fase de grandes transformações no sistema monetário internacional, até agora marcado pela presença dominante do dólar enquanto instrumento de intercâmbio, reserva de valor e unidade de referência para dezenas de países integrando o sistema financeiro mundial. Essa etapa recente do movimento de unificação monetária na Europa ocidental deriva de um longo processo de aproximação econômica que pode ser remontado à visão integracionista de Jean Monnet, do final dos anos 1940, e à concepção política que presidiu desde então, à integração européia.
Com efeito, ainda que não mencionada expressamente nos primeiros instrumentos jurídicos da integração européia – o Tratado da Comunidade Européia do Carvão e do Aço (CECA), de 1951, e os Tratados de Roma, de 1957 – o projeto de um “poder monetário” estava implícito nos propósitos a vocação “unionista” que foram dando sustentação econômica ao alargamento progressivo dos campos de intervenção da então Comunidade Européia. Os primeiros seis países que assinaram os Tratados de Roma (Alemanha, Bélgica, França, Itália, Luxemburgo e Países Baixos) já previam trabalhar com políticas econômicas comuns, nomeadamente no domínio da agricultura. Esses campos foram sendo depois ampliados para novos domínios, como os da indústria e da ciência e tecnologia, ainda que não com o monitoramento estrito em matéria de organização da produção e da comercialização como na agricultura ou com o abandono completo de soberania em matéria de política comercial que representou a concretização da união aduaneira, em 1968, e do mercado comum pleno nas etapas subsequentes.
O movimento “unificacionista” no campo monetário começa efetivamente a caminhar em meados dos anos 1960 — em pleno regime de paridades fixas do sistema de Bretton Woods –, a partir do plano Barre (1967-69) e do relatório Werner de união monetária (de 1968, mas aprovado em 1970 e prevendo sua realização num espaço de dez anos). Ambos foram tornados inexeqüíveis pelo desmantelamento, entre 1971 e 1973, do sistema de Bretton Woods que, ao operar a desvinculação do dólar de seu valor fixo em ouro, significou igualmente a interrupção desse processo por etapas de unificação das moedas nacionais da então Comunidade Européia.
No regime de livre flutuação de moedas que se seguiu, os países europeus avançaram nos esforços de coordenação, estabelecendo primeiro a “serpente dentro do túnel” e depois, como resposta política à crise do sistema monetário internacional, o Sistema Monetário Europeu (1979). O SME – com um número variável de países participantes, segundo as épocas – funcionava segundo um mecanismo de banda cambial ajustável entre as moedas participantes (tendo o marco alemão como âncora), mas com paridades estreitamente correlacionadas entre si. De fato, durante a maior parte de existência do SME, o mundo viveu em constante turbulência monetária, ocorrendo grandes variações nos valores respectivos das principais moedas, o deutsche mark, o iene japonês e o dólar dos Estados Unidos. No interior do próprio SME, contudo, as margens de variação recíproca estabelecidas para moedas como o marco alemão e o florim holandês eram, obviamente, bem menores do que aquelas permitidas para a flutuação de moedas mais “fracas” como a lira italiana.
Em 1986, a adoção do acordo conhecido como “Ato Único Europeu” deslancha o processo de unificação definitiva do mercado comum, instituindo uma série de medidas adicionais de liberalização econômica, em especial na prestação de serviços, inclusive financeiros, e na circulação de capitais. Em 1989, o relatório Delors já proclamava o objetivo de uma futura moeda comum, podendo-se considerar o ecuEuropean currency unit, até então um simples instrumento de contabilidade orçamentária – como o antecessor do euro. Mas é o Tratado de Maastricht sobre a União Européia, de 1992, que dá os fundamentos jurídicos da união econômica e monetária (UEM) e da moeda única européia.
O Tratado de Maastricht, que entrou em vigor em novembro de 1993, estabeleceu três fases para a concretização da UEM: a primeira, com início em 1º de Julho de 1990, permitiu a livre circulação de capitais e o oferecimento de serviços bancários além-fronteiras; a segunda, começando em 1º de Janeiro de 1994, constituiu uma fase intermediária de preparação para a moeda única, tendo assistido ao estabelecimento da independência dos bancos centrais nacionais e à criação do Instituto Monetário Europeu, já com sede em Frankfurt. A terceira fase, que começou em 1º de Janeiro de 1999, viu o estabelecimento do Banco Central Europeu — no lugar do IME – e o lançamento da moeda única (cujo nome, euro, tinha sido escolhido dois anos antes).
No decurso da segunda fase seriam definidos os países habilitados a entrar na terceira fase da união monetária, segundo rígidos requisitos de “bom comportamento macroeconômico”, o que significou a instauração de uma coordenação reforçada das políticas econômicas nacionais, visando a reduzir a inflação, as taxas de juros e as flutuações cambiais, assim como os déficits e a dívida pública dos Estados. Os principais critérios de convergência definidos pelo Tratado de Maastricht referiam-se à estabilidade dos preços, à disciplina orçamentária, às contas públicas, à convergência das taxas de juros e à estabilidade das taxas de câmbio. Concretamente, eles significaram que os países desejosos de aderir à moeda comum necessitariam cumprir os requisitos seguintes: a taxa de inflação não poderia ser superior em mais de um ponto e meio percentual à média dos três Estados-membros com as taxas menos elevadas de inflação; o déficit público não deveria ultrapassar 3% do PIB e a dívida pública não poderia ultrapassar 60% do PIB; a taxa de juros de longo prazo não poderia ser superior em mais de dois pontos percentuais à média dos três Estados-membros com as taxas menos elevadas; no plano cambial, deveriam ser observadas, durante dois anos, as margens normais do SME, sem tensões graves nem desvalorizações, o que nem sempre pôde ser alcançado.
Com uma avaliação algo mais política do que estritamente econômica dos critérios de Maastricht (uma vez que nem a Bélgica nem a Itália, por exemplo, se qualificavam do ponto de vista da dívida pública), em 1998 foram definidos os Estados-membros que participariam do euro a partir de 1º de Janeiro seguinte. O Conselho Europeu de Bruxelas (Maio de 1998) determinou que os Estados-membros participantes seriam em número de onze: Alemanha, Áustria, Bélgica, Espanha, Finlândia França, Irlanda, Itália, Luxemburgo, Países Baixos e Portugal. Três outros membros da UE, Dinamarca, Reino Unido e Suécia, decidiram, por escolha própria, permanecer à margem do novo esquema monetário e apenas um, a Grécia, não conseguiu se qualificar em diversos critérios importantes. No final de 1998, foram fixadas irrevogavelmente as taxas de câmbio entre o euro e as moedas nacionais, bem como entrou em vigor a legislação sobre o euro, com o que os mercados monetários e cambiais passaram a poder operar com euros.
A opção dos Estados-membros da UE pela renúncia à soberania monetária e em favor da administração coletiva da coordenação macroeconômica apresenta forte conteúdo emblemático para a Europa unida do século XXI e para seu subsequente papel internacional. O elemento fundamental desse avanço na “união cada vez mais estreita dos povos europeus” no plano monetário é de natureza interna e tem a ver, em termos kantianos, com o compromisso irrevogável dos países membros com uma ordem comunitária como garantia de “paz perpétua” no continente. Adicionalmente, as funções que o euro possa assumir futuramente enquanto “moeda mundial” e seu papel eventual de desafio à hegemonia internacional do dólar representarão a conseqüência natural da afirmação ulterior do poder econômico da União Européia no plano internacional.
De fato, o euro confirma uma das tendências mais evidentes do processo de globalização, em curso acelerado desde a derrocada final do socialismo no começo dos anos 90, movimento tendente a unificar mercados, concentrar força e poder nas mãos de alguns global players e vincular estreitamente circuitos produtivos e financeiros. Ele também reforça as tendências à estabilidade do processo de integração européia no que se refere aos mecanismos de coordenação intergovernamental de políticas macroeconômicas – o que parece ser válido para experiências similares de integração, como seria supostamente o caso do Mercosul –, ainda que a adesão permanente das autoridades financeiras nacionais, em relação a eventuais “desvios” orçamentários, por exemplo, tenha tido de ser reforçada por um “Pacto de Estabilidade e Crescimento”, concluído em meados de 1997. Esse último acordo representou, como se sabe, um difícil compromisso entre aqueles que defendem, antes de mais nada, a manutenção do poder de compra da nova moeda – como é o caso do Bundesbank e outros aderentes da ortodoxia monetária – e os que privilegiam seu papel “social” e que gostariam de ver o Banco Central Europeu promover políticas de estímulo à criação de empregos, como os franceses e italianos. Cabe recordar a esse propósito que, de acordo com disposições do próprio Tratado de Maastricht, as autoridades monetárias nacionais são proibidas de financiar déficits orçamentários, prevendo ainda o Pacto penalidades pecuniárias para aqueles Estados que incorrerem em desvios significativos em relação aos critérios de Maastricht nesse particular (máximo de 3% do PIB de déficit orçamentário e compromisso político de manutenção do equilíbrio fiscal).
No plano interno, as vantagens do euro parecem evidentes: ele simplesmente suprime os riscos de câmbio, reforça o mercado único e a convergência das economias e favorece o investimento na zona do euro. Suas vantagens microeconômicas também são facilmente demonstráveis, sobretudo do ponto de vista do viajante e do consumidor, ao facilitar as operações financeiras transfronteiras, eliminar os encargos relacionados com as operações cambiais e tornar totalmente transparente a comparação dos preços entre países e mais especialmente regiões fronteiriças (e portanto a eventual punção fiscal exercida por alguns Estados).
O período de transição, que vai de 1º de Janeiro de 1999 a 31 de Dezembro de 2001, assiste ao desenvolvimento de processos importantes do ponto de vista da implantação da nova moeda: os principais agregados monetários e a emissões passam a ser de responsabilidade exclusiva do BCE, os mercados financeiros passam a operar em euros, ainda que do ponto de vista prático o euro só pode ser utilizado sob forma escritural (mas qualquer pessoa passa a poder ter uma conta bancária em euros e emitir cheques nessa moeda). Finalmente, no primeiro semestre de 2002, se terá a circulação das notas e das moedas de euros, de modo concomitante à retirada progressiva das notas e das moedas nacionais. O mais tardar em 1º de Julho de 2002 se assistirá à supressão do curso legal das notas e moedas nacionais e passam a circular unicamente notas e moedas de euro. Entretempos, outros candidatos – os atuais ou futuros países membros da UE – poderão decidir-se por sua incorporação à UEM.
Do ponto de vista da “geopolítica” do sistema financeiro internacional, o euro será, inevitavelmente, um formidável concorrente em face do dólar, este até agora marginalmente complementado pelo deutsche mark e pelo iene japonês enquanto moedas de intercâmbio e expressão de ativos econômicos. A nova moeda terá efeitos diversos, de grande amplitude, nas áreas do comércio de bens e serviços, de fluxos de investimentos (de risco e de portfólio), dos mercados financeiros (isto é, empréstimos e créditos), das reservas em divisas dos países extra-europeus e, também, no âmbito do sistema monetário internacional, o que está vinculado ao poder econômico da União Européia.
A importância da União Européia na economia mundial pode ser comparada à dos Estados Unidos. Com uma população de aproximadamente 300 milhões de pessoas, o PIB comunitário de cerca de 9 trilhões de dólares — similar ao norte-americano — cai ligeiramente quando computado apenas o peso da “Euroland”, mas deve aumentar para volumes equivalentes quando os países hoje ausentes da união monetária a ela aderirem numa fase seguinte. A Europa mobiliza parte significativa – perto de um terço – do comércio mundial, assim como ela constitui, igualmente, fonte importante de capitais internacionais de empréstimo e de investimento direto nos mercados emergentes. Seria de se esperar, por exemplo, que com base na política conservadora do Banco Central Europeu, o euro contribua para a estabilização dos mercados financeiros globais, ao lado do papel ainda dominante do dólar e da importância reduzida do iene nas transações comerciais e financeiras internacionais. Não há, entretanto, nenhum acordo de princípio entre as autoridades monetárias dos Estados Unidos, da “Euroland” e do Japão para a manutenção de paridades correlacionadas entre suas respectivas moedas, o que indica obviamente que o sistema monetário e financeiro internacional continuará a ser tão turbulento e instável como ele tem sido desde a derrocada do padrão-ouro ao final da belle époque e do desmantelamento do regime de Bretton Woods nos anos 1970.
O fato inédito é que assistimos ao começo do final — um cenário ainda longínquo, reconheça-se — da hegemonia do dólar no sistema financeiro internacional. Esse declínio da predominância absoluta do dólar será tanto mais lento quanto forem incertos os elementos propriamente econômicos e tecnológicos que poderão sustentar uma ascensão da Europa a sua antiga posição de world’s banker. Em favor do dólar deve-se lembrar que os padrões dominantes tendem a ganhar por inércia. Em favor do euro pode-se adiantar sua menor volatilidade intrínseca e seu papel político positivo em outras experiências de integração regional, a começar pelo Mercosul. De fato, um mercado comum pleno requer, quase que naturalmente, uma moeda comum e o fato da existência do euro deverá atuar como catalisador político e econômico no processo de ampliação ulterior da União Européia.
O comportamento de uma moeda, contudo, é tanto a expressão das condições objetivas da economia que a sustenta quanto o resultado de fatores sociais e psicológicos subjacentes, basicamente a confiança dos detentores em seu futuro poder de compra. Desse ponto de vista, o euro (ainda que apenas virtual) sofreu, desde sua introdução, alguns percalços monetários e políticos: ele não apenas enfrentou, em 2000, uma inesperada desvalorização de 25% frente ao dólar, em vista de um desempenho econômico mais fraco (e da maior taxa de desemprego) na Europa, como manifestou-se uma certa desafeição dos cidadãos em relação ao que é percebido como um excesso de centralismo legislativo e de controles burocráticos por parte de Bruxelas. Com efeito, a despeito dos progressos efetuados pela Grécia no sentido de sua incorporação à UEM (a partir de 2001) e da campanha favorável conduzida pelo big business nos prováveis membros, em especial na Grã-Bretanha, o plebiscito dinamarquês sobre a introdução do euro, efetuado em setembro de 2000, com resultados negativos, pode sinalizar o reforço das correntes contrárias à unificação monetária nos demais países e o aparecimento de uma espécie de “marcha lenta” no processo de integração européia.
Que ensinamentos ou que conseqüências poderiam ser extraídos a partir da experiência européia para um esquema de integração conduzindo tendencialmente a um mercado comum como o Mercosul? Se é verdade que este não pretende permanecer uma simples zona de livre comércio ou uma união aduaneira imperfeita, como hoje, a questão da moeda única deve ser colocada como objetivo final, ainda que longínquo. Um mercado comum pleno, repita-se, pede naturalmente a moeda única. Atualmente, contudo, parece evidente que o problema não se coloca ainda em termos de moeda, mas simplesmente como uma obrigação de coordenação de políticas econômicas. Este é um requisito essencial para que choques assimétricos (sempre à espreita) não introduzam dificuldades adicionais e uma séria distorção nos efeitos potencialmente benéficos do processo integrativo. As autoridades financeiras dos países-membros do Mercosul devem reconhecer, antes de mais nada, que as políticas cambiais são uma matéria de interesse comum e que a interação constante entre formuladores de políticas e o permanente intercâmbio de informações entre seus operadores constituem passos indispensáveis para a coordenação de políticas nas áreas monetária e cambial. Essa coordenação deve ser institucionalizada progressivamente, até atingir-se o “ponto de não-retorno”, quando a própria renúncia de soberania monetária passa a ser considerada como uma garantia adicional de boa gestão macroeconômica e um passaporte para a estabilidade.
Referência: A principal fonte de informação sobre o euro e as economia dos países membros é a página do banco Central Europeu, que comporta textos em português: http://www.ecb.int.

Paulo Roberto de Almeida
 [Washington, 719: 14.01.2000]

[Revisão, 719b: 30.09.2000]