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domingo, 22 de novembro de 2020

O futuro euro e o Brasil: efeitos esperados (1998) - Paulo Roberto de Almeida

Em 1998, às vésperas da fixação das taxas de câmbio dos países candidatos a ingressar na primeira leva do euro – que seria uma moeda fiduciária entre 1999 e 2001, quando seria finalmente introduzida a moeda comum, não única, entre os países habilitados –, eu elaborei um texto sobre o impacto do euro para a economia brasileira, com destaque para as áreas de comércio, investimentos, finanças, reservas e no sistema monetário internacional. Posso dizer que eu estava bastante otimista quanto às chances dessa moeda representar uma mini-revolução no sistema monetário internacional, algo que não se confirmou no seguimento.

Paulo Roberto de Almeida

 O futuro euro e o Brasil: efeitos esperados

 

Paulo Roberto de Almeida 

[nota de comentários pessoais; não reflete eventuais

opiniões ou posições da área financeira governamental]

Brasília, 5 março 1998

Publicado na Carta de Conjuntura do CORECON-DF (Brasília: ano 12, nº 56, março/abril de 1998, p. 18-19). Relação de Publicados nº 216.

 

 

A introdução do euro como meio circulante, a partir de 2001, representará, para a Europa continental, a conformação definitiva do mercado unificado prometido pelo Ato Único de 1986 e pelos acordos de Maastricht sobre a união monetária. A nova moeda terá efeitos diversos, de grande amplitude econômica, nas áreas de comércio de bens e serviços, de fluxos de investimentos (de risco e de portfólio), dos mercados financeiros (isto é, empréstimos e créditos), das reservas em divisas dos países extra-europeus e, também, no âmbito do sistema monetário internacional, o que está evidentemente vinculado ao poder econômico da União Européia.

Um rápido sumário sobre seus reflexos para o Brasil evidencia um conjunto de efeitos progressivos, todos eminentemente positivos para o País enquanto: (a) global trader, (b) captador de investimentos, (c) receptor de créditos, (d) detentor de reservas e (e) país interessado numa reforma realista do atual sistema financeiro internacional, mas dispondo de reduzido poder de influência sobre seus mecanismos de funcionamento ou de mudança.

Do ponto de vista do intercâmbio, nas duas direções, o euro vai significar uma redução substancial dos custos em transações correntes, pois que a unificação efetiva do mercado representará maior fluidez das correntes existentes e potenciais de comércio, facilitando o rápido transbordo de mercadorias brasileiras em todos os países aderentes ao euro e nos que o utilizarem como moeda de referência (toda a mittelEuropa, as zonas bálticas e mediterrâneas e mesmo escandinavas e britânicas). O comércio será apenas e simplesmente comércio, e não mais custosas operações de câmbio e perdas significativas em comissões para exchange-dealers (mon taux de chômage!).

No que se refere aos fluxos de investimento direto, os efeitos serão ainda mais impressionantes, pois que não apenas as empresas e os bancos europeus se fortalecerão nos mercados globais, como disporão de maior volume de recursos — aritmética da soma das poupanças nacionais e das pequenas sobras marginais, antes atomizadas em mercados segmentados — para aplicações de risco nas economias intra- e extra-européias. A Europa liberará enormes somas de dinheiro, numa única denominação, retomando a posição privilegiada que ela tinha no século XIX como principal exportador líquido de capitais para os países emergentes (vivent les rentiers!).

Do ponto de vista dos mercados financeiros, os mesmos efeitos acima descritos potencializarão o papel histórico que ela tinha no século XIX como world’s banker, pois que uma fonte uniforme de créditos produzirá muito maior volume de recursos do que a soma dos mercados financeiros nacionais. Os custos de captação serão sensivelmente reduzidos, bem como, no caso dos empréstimos syndicated, os encargos adicionais derivados da mobilização de diferentes denominações, que simplesmente desaparecerão. Será como se abastecer num grande shopping center, em lugar de percorrer sucessivas quitandas ou empórios “financeiros”. A concorrência da oferta atuará também para reduzir taxas de juros e eventualmente até os prêmios de risco. As autoridades brasileiras fizeram bem, aliás, em lançar desde já bonus governamentais denominados em euro: é a moeda do futuro.

O Brasil também encontrará vantagens financeiras e de simples contabilidade em converter, desde o início, uma parte de suas reservas — digamos de 25 a 30% — em euro, uma moeda mais estável que o dólar e supostamente menos suscetível de sofrer ataques especulativos, pois que sustentada por um banco central autônomo e independente, comprometido unicamente com sua estabilidade e seu poder de compra, sem a obrigação de responder a autoridades monetárias nacionais, mais sensíveis às questões sociais ou dotadas de maior permissividade orçamentária. A contrapartida é a menor rentabilidade ou a própria heterogeneidade contábil — algo como sair do padrão-ouro da belle époque para o bimetalismo pré-1871 —, mas esse tipo de desconforto é menos nocivo do que a instabilidade cambial. A chancelaria brasileira trabalhou em libras de 1822 a 1931, adotando então o dólar; talvez ela passe a trabalhar em euro a partir de 2010, o mais tardar.

Finalmente, e aqui entra um elemento de diplomacia financeira, o euro será talvez a grande chance de realizar, no século XXI, a grande reforma do sistema financeiro internacional que se requer desde o desmantelamento dos esquemas de Bretton Woods em 1971. Com efeito, não apenas se terá de rever a composição do SDR/DES — hoje baseado num coquetel das cinco principais moedas, das quais duas, e talvez três, desaparecerão —, como as novas paridades implicarão igualmente numa redefinição política do poder intrínseco a elas associado no board das “sisters in the woods”, em especial no FMI. A Itália tem uma certa razão ao pedir uma “representação européia” no CSNU, mas o que não se prevê é que essa unificação do poder político — e liberação de “vagas” adicionais para “emergentes” — talvez se dê antes no terreno econômico, com a assunção, pelo IME/BCE, de um mandato amplo de representação européia nas IFIs. É um admirável mundo novo!

 

[Brasília, PRA/606: 04/03/1998]

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