Não se sabe bem, ou não se sabe nada, para onde está indo o governo brasileiro, ou se está indo para algum lugar, ou nenhum; não se sabe sequer se existe governo. Não quero me manifestar sobre as demais áreas, mas pelo menos na minha área, a política externa e a diplomacia, nenhuma das duas está visível até o presente momento, se alguma vez estiveram, além e acima de uma insana luta contra o monstro metafísico do globalismo e um ainda mais insano servilismo abjeto ao presidente Trump. Por isso o subtítulo de meu livro trata de reconstrução e de restauração, absolutamente necessárias depois da terra arrasada dos bolsolavistas, uma mistura nauseabunda de teorias conspiratórias com instintos primitivos dos mais néscios e ignorantes.
Prefácio ao livro: Uma certa ideia do Itamaraty: a reconstrução da política externa e a restauração da diplomacia brasileira, Brasília, 7 setembro 2020, 169 p. Blog Diplomatizzando (link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2020/09/uma-certa-ideia-do-itamaraty_7.html)
Uma certa ideia do Itamaraty
À diferença de meus dois livros anteriores nesta área – Miséria da diplomacia: a destruição da inteligência no Itamaraty (2019; livremente disponível a partir do blog Diplomatizzando) e O Itamaraty num labirinto de sombras: ensaios de política externa e de diplomacia brasileira (2020; edição Kindle) –, esta nova obra se dedica não tanto a criticar o que existe atualmente, quanto a construir o que ainda não existe: um novo Itamaraty, uma nova política externa, uma nova postura do Brasil no cenário mundial, uma nova imagem para o país no contexto internacional. O que temos hoje não nos serve, não serve ao Brasil, não serve aos brasileiros, pelo menos aos que se preocupam com a nossa imagem externa, com a maneira pela qual o Brasil atual está sendo visto lá fora, mas aqui dentro também.
Qualquer leitor bem informado, qualquer cidadão que acompanha regularmente a mídia nacional e internacional, qualquer pessoa conectada às redes de comunicação social já viu, já leu, já recebeu alguma notícia, artigo de opinião, vídeos, fotos, textos ou imagens, chamando a atenção para algo grave acontecendo no Brasil, em quaisquer áreas: número de mortos, pelo banditismo ou por excessos policiais, destruição ambiental, queimadas e desmatamento na Amazônia e no Pantanal, corrupção generalizada nas esferas públicas, enfim todo tipo de problema, acidentes e tragédias que invadem cotidianamente nossas folhas, revistas ou telas dos aparelhos conectados às emissoras de informações ou às redes de interações sociais.
Qualquer pessoa alfabetizada, medianamente informada, ou mesmo observadora superficial da realidade à sua volta pode rapidamente concluir que o Brasil atravessa atualmente uma das piores crises de sua história, e não só por causa da pandemia do Covid-19. A presente crise brasileira precede, na verdade, essa pandemia, que pode até ter agravado alguns de seus sintomas – como a absoluta falta de estratégia ou de meras linhas diretivas para a simples governança corrente –, mas esta não é sua principal causa, nem cessará caso a pandemia seja vencida (em algum momento do futuro).
A crise, de fato, é inerente ao presente governo e está inextricavelmente vinculada ao seu personagem central. Não hesito em classificá-lo como o pior governante do Brasil desde Tomé de Souza, o primeiro governador-geral da então colônia portuguesa, que aqui chegou em meados do século XVI. O cidadão que ocupa atualmente o maior cargo da República, um político medíocre durante suas três décadas de exercício parlamentar, é um notório despreparado, um inepto total em qualquer área da administração pública, um obsessivo desequilibrado, vivendo numa bolha doentia com seus filhos maiores, cercado por alguns áulicos fiéis, mas tão despreparados quanto ele próprio para as tarefas da governança, todos apenas inspirados pelos instintos primitivos que os animam.
Em resumo: toda a crise brasileira se resume no fato de o país estar sendo desgovernado — mas de forma ativa, arbitrária e atrabiliária — por um personagem afanosamente empenhado em consolidar um poder autocrático que ele se empenha em viabilizar pelos mais diversos meios. Durante algum momento se suspeitou que ele estivesse empenhado a criar as suas próprias milícias, os equivalentes de novos “camisas pardas”, que lhe seriam devotados com a ajuda de armas e pela mobilização de estratos mais baixos das forças de segurança. A força das instituições republicanas e a resistência de setores democráticos sustou, por um momento, tais projetos autoritários.
Tratava-se de um projeto precário de construção de um poder autocrático que não teria muita chance de prosperar, mas que ainda assim arrastou o país, durante várias semanas, para um ambiente de confrontação constante, mas que se prolonga por outros meios, e que impede uma gestão normal dos negócios públicos nas demais esferas da administração do Estado. O Brasil está sendo literalmente asfixiado por crises e mais crises, constantemente deslanchadas por esse personagem nefasto, que tem a seu serviço alguns dos piores auxiliares que já assumiram cargos em diversos ministérios setoriais.
A nação está mais dividida do que jamais esteve em toda a sua história, e assim permanecerá enquanto esse personagem continuar ocupando o centro do poder. Líderes políticos e detentores de altos cargos nos principais escalões do Estado minimamente conscientes da realidade aqui descrita podem — ou pelo menos deveriam — chegar inevitavelmente à conclusão de que o país caminha para uma crise falimentar se tal situação perdurar: o país se apaga, para a nação e para o mundo, e seus filhos podem ser levados, como na canção famosa, a “errarem cegos pelo continente”. Eu não gostaria, de verdade, de ter de escrever um epitáfio para um país evanescente. Essa possibilidade está apenas sugerida, como possível próxima etapa do declínio da nação.
O governo atual, a partir das suas muitas promessas da campanha eleitoral, é certamente excepcional, mas não apenas pelo que deixou de fazer, e sim, sobretudo, pelo que ativamente desfez, pelo que destruiu, sem colocar absolutamente nada no lugar. Uma confrontação entre o que foi prometido, na campanha eleitoral, e o que ocorreu depois, verdadeiramente, uma vez instalado o governo, surpreende pela amplitude, pela extensão do desmantelamento institucional. Na área econômica, as promessas foram grandiosas: privatização no valor de um trilhão de reais; fechamento de estatais inúteis; eliminação do déficit público; reformas da Previdência, tributária, laboral, educacional; diplomacia sem ideologia, comércio exterior idem; redução do Estado; diminuição do número de ministérios; mais Brasil e menos Brasília; defesa intransigente da soberania; nacionalismo; fim da velha política; bandido na cadeia e segurança nas ruas; luta contra a corrupção; retomada do crescimento; fim do desemprego; atração de investimentos; reconstrução do Mercosul; abertura econômica e liberalização comercial.
Qualquer atento observador do cenário nacional pode constatar o que de fato foi realizado, e o que foi abandonado ou simplesmente revertido. Na área do meio ambiente, por exemplo, o quadro é devastador: destruição, pura e simples, um ativismo absolutamente excepcional e arrasador em todas as formas e estilos: nunca antes em nossa história se desmatou, se queimou, se depredou com tanta volúpia e satisfação, mata virgem e reservas indígenas, sem discriminação; a ordem é, literalmente, “passar a boiada”, ou seja, derrogar leis e normas em prol de uma insana destruição.
Mas isso não foi tudo. Em nenhuma outra área como na política externa e na da diplomacia, a destruição se exerceu contra a própria política, contra a própria instituição, com um requinte excepcional. Praticamente, todas as linhas mestras pelas quais se guiavam todas as políticas externas anteriores — e elas era múltiplas e diferentes —, todas as tradições da antiga diplomacia foram sistemática e deliberadamente postas de lado e substituídas por uma assemblagem insossa e bizarra de ideias exóticas, sem qualquer correspondência com o mundo real ou com os interesses nacionais brasileiros.
Política externa sem ideologia? Acho que alguém se enganou de slogan. As únicas viagens e visitas foram com líderes de direita ou de extrema-direita. Não houve nenhuma defesa da independência nacional; ao contrário, o que se ouviu foi um sonoro “I love you Trump”. Soberania nacional? Mas por que o chanceler acidental viajou aos EUA para combinar com o Departamento de Estado os pontos do discurso do presidente na abertura dos debates na Assembleia Geral da ONU de 2019? Não intervenção nos assuntos internos de outros países? E a Venezuela? E as eleições argentinas? E o antiglobalismo ridículo? O anticlimatismo canhestro? A oposição vergonhosa a qualquer direito da mulher e das minorias nos foros pertinentes da ONU?
A nova agenda da Fundação Alexandre de Gusmão, o braço teoricamente intelectual do Itamaraty, limitou-se a convites aos representantes medíocres do olavismo extremado para falar sem qualquer competência sobre assuntos que ignoram, o que certamente deve angustiar os preparadíssimos estudantes do Instituto Rio Branco. A cessação de qualquer contato mais amplo com pesquisadores acadêmicos das área de relações internacionais, de história ou de ciência política revela uma introversão ressentida e um enclausuramento autocentrado jamais visto na história da Fundação.
A eliminação dos dois boletins diários de notícias — clippings da mídia nacional e da internacionais — sobre os temas mais cruciais de trabalho dos diplomatas representa um censura criminosa em detrimento da disponibilidade e da qualidade da informação, o alimento diário de todos os servidores do Serviço Exterior. Aliás, o Itamaraty não tem mais porta-voz – nem a Presidência, por sinal –, não mantém diálogo regular com jornalistas, com correspondentes estrangeiros, não se abre a um debate não controlado com interlocutores dos mais diversos meios políticos e intelectuais. As ONGs são entidades mal encaradas, senão maléficas, do ponto de vista dos novos donos de poder. A censura se exerce sobre a informação, sobre os meios de informação, sobre as comunicações no sentido amplo.
A intimidação exercida contra todos aqueles que ousam dissentir das orientações esdrúxulas, a maior parte delas ridículas, quando não vergonhosas, constitui o elemento mais grave do atual processo de destruição do Itamaraty, cujas principais diretrizes de políticas são feitas fora da Casa, por amadores ineptos. O chanceler acidental é um elo secundário, provavelmente terceiro ou quarto, na cadeia decisória, e o menos importante de todos. Existem sobejas provas a esse respeito, a começar por certas notas formalmente emitidas pelo Itamaraty, mas que pelo Português estropiado, por certos conceitos bizarros e por lacunas inacreditáveis em sua substância – falta de referência a normas consagradas do direito internacional, por exemplo –, não podem ter sido elaboradas por diplomatas experientes, ou que, então, foram deformadas e estropiadas por amadores ignorantes.
Esse último aspecto é suficientemente grave para que ele mereça uma ênfase adicional nesta avaliação crítica do que se refere, ainda, à mera processualística da cadeia decisória: várias tomadas de posição da diplomacia bolsolavista em assuntos relevantes do multilateralismo político — voto sobre sanções unilaterais na ONU, “plano de paz” de Trump para a Palestina, eliminação de um general iraniano no Iraque, mudança da embaixada para Jerusalém, entre vários outros — não exibem menção a elementos de direito internacional ou a resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas que são implícitos a esses assuntos, objetos de relevante atenção da diplomacia brasileira em mais de meio século de uma cuidadosa construção das posturas brasileiras nos foros mais importantes abertos ao engenho e arte de nossos diplomatas profissionais, assim como ao escrutínio preliminar dos Consultores Jurídicos da Casa, e também por meio de um diálogo ponderado com outros governos, antes de qualquer tomada de posição sobre cada um deles. Como indicado acima, o fato de que algumas dessas tomadas de posição tenham sido apoiadas em mal traçadas “notas”, redigidas num Português tão canhestro e tão singularmente desprovido de conceitos próprios à diplomacia profissional, permite supor que elas foram mesmo fabricadas fora da Casa, pelos mesmos ineptos que estão destruindo uma diplomacia tida outrora como de excelente qualidade. Mas este é apenas o lado dos procedimentos próprios aos métodos de trabalho dos diplomatas brasileiros.
No terreno propriamente substantivo – no que concerne o comércio exterior, as relações políticas, diplomáticas e econômicas com os grandes parceiros do Brasil, a postura em relação a acordos já concluídos (no meio ambiente, por exemplo) ou em curso de tramitação, algumas decisões de grande impacto para o futuro tecnológico do país, as escolhas que vão determinar o perfil geográfico ou político da interface externa da nação –, algo semelhante pode estar acontecendo, com impacto potencial sobre milhões de dólares de intercâmbios externos, em dezenas de milhares de empregos, e não só no agronegócio, mas também no campo das associações tecnológicas e produtivas.
A postura do chefe de Estado no campo do meio ambiente, secundada aliás pelo seu ministro da área e pelo próprio chanceler, pode estar criando as condições para um imenso boicote a produtos brasileiros no exterior, o que trará enormes prejuízos materiais a diversos setores da economia brasileira. Mas não só em relação ao meio ambiente: a insistência numa relação subordinada com o país que ainda representa uma das mais importantes interfaces externas do relacionamento nacional – mas que já perdeu há mais de dez anos o principal posto nas relações comerciais – pode redundar em mais perdas sensíveis para outras esferas da atividade econômica nacional.
Tal aspecto tem causado preocupação entre esses setores, e talvez explique certa marginalização da diplomacia no tratamento de alguns itens da agenda externa, o que já ocorreu, por exemplo, no campo do meio ambiente. O Itamaraty como principal centro de formulação e implementação de políticas para o relacionamento externo do país pode estar deixando de ser operacional, pelo menos virtualmente. Na área dos acordos comerciais e de vários outros assuntos econômicos externos esse rebaixamento já é uma realidade, aliás praticamente desde o início da presente administração. Os diplomatas nunca tiveram o monopólio exclusivo das decisões no campo das relações comerciais bilaterais ou multilaterais – uma vez que vários aspectos, como tarifas, medidas de defesa ou normas setoriais estão afetos a outros ministérios –, mas eles detinham, pelo menos, um comando visível no campo do sistema multilateral de comércio, outra das vítimas da postura absurdamente “antiglobalista” da atual administração. Nesse, como em outras frentes de debate em temas da agenda multilateral, a excessiva aderência da diplomacia bolsolavista às posições dos Estados Unidos – antes, às do governo Trump – pode acarretar uma perda ainda maior de prestígio para nossa diplomacia profissional no plano externo, adicionalmente à imagem já desgastada em diversas outras áreas.
Todos esses tristes aspectos da atual política externa e de sua antidiplomacia confirmam que o trabalho de reconstrução do anterior edifício diplomático, dotado de real prestígio, será duro e longo, haja vista a total perda de credibilidade da imagem do Brasil no exterior. Isso já vinha ocorrendo bem antes e independentemente da postura lamentável assumida pelo país — na verdade pelo chefe de Estado — na luta contra a pandemia, que se faz à margem de, e até contrariamente a, qualquer esforço de coordenação multilateral, um anátema para os novos bárbaros que comandam o atual processo de destruição do Itamaraty e dos seus padrões consagrados de trabalho.
Esse trabalho de reflexão, em prol da reconstrução futura, já começou, inclusive com o envolvimento e participação de diplomatas da ativa, embora ele não possa ainda ser revelado em seus objetivos e extensão. No momento oportuno, os ineptos que infelicitam a diplomacia profissional e rebaixam a credibilidade do Brasil no exterior serão afastados, e o trabalho de reconstrução da política externa será conduzido de maneira mais afirmada. As bases desse trabalho são conhecidas de todos, no Brasil e no mundo. Elas emergirão mais cedo do que se pensa.
Este novo livro pretende oferecer alguns modestos tijolos em prol deste empreendimento de reconstrução. Ele corresponde a uma certa ideia do Itamaraty, que não é exclusivamente minha, mas que é partilhada por uma grande maioria de meus colegas de carreira. As boas ideias, ou as simplesmente sensatas, acabam prevalecendo, mesmo depois de tortuosos e turbulentos caminhos equivocados: a sociedade brasileira já é suficientemente complexa e sofisticada para não deixar que amadores mal informados e despreparados sufoquem completamente uma das principais políticas públicas nacionais. Construiremos um novo Itamaraty.
Paulo Roberto de Almeida
7 de setembro de 2020
Uma certa ideia do Itamaraty: a reconstrução da política externa e a restauração da diplomacia brasileira, Brasília, 7 setembro 2020, 169 p. Livro sobre a diplomacia bolsolavista e bases para uma nova. Anunciado no blog Diplomatizzando (link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2020/09/uma-certa-ideia-do-itamaraty_7.html). Academia.edu (link: https://www.academia.edu/44037693/Uma_certa_ideia_do_Itamaraty_A_reconstrucao_da_politica_externa_e_a_restauracao_da_diplomacia_brasileira_2020_); Research Gate (link: https://www.researchgate.net/publication/344158917_Uma_certa_ideia_do_Itamaraty_A_reconstrucao_da_politica_externa_e_a_restauracao_da_diplomacia_brasileira_Brasilia_Diplomatizzando_2020_169_p). Relação de Publicados n. 1465.
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