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terça-feira, 20 de outubro de 2020

O “modernismo” brasileiro aos 100 anos - Paulo Roberto de Almeida

O “modernismo” brasileiro aos 100 anos 

 

Paulo Roberto de Almeida

(www.pralmeida.orghttp://diplomatizzando.blogspot.com)

[Objetivoreflexões preliminares para futuro trabalhofinalidaderascunho]

  

 

Ideias movem o mundo?

Certamente!

O historiador Felipe Fernandez-Armesto dedicou um livro inteiro às grandes ideias que mudaram o mundo, desde a mais remota Antiguidade até a modernidade mais recente [Idéias que mudaram o mundo, São Paulo: Editora Arx, 2004]

Modernismo foi a designação que se convencionou atribuir ao movimento de ideias que realmente “movimentou” o Brasil desde o imediato pós-Grande Guerra (que só foi chamada de Primeira retrospectivamente, depois dos desastres incomensuravelmente maiores do grande conflito de 1939-45) e que foi simbolizado, poucos anos depois, pela Semana de Arte Moderna do início de 1922, o ano em que deveríamos estar comemorando (e realmente o fizemos) o centenário da “independência” (as aspas se justificam?).

Convém não esquecer que o “modernismo” brasileiro toma certo impulso a partir do “futurismo” de Marinetti, um movimento perfeitamente de avant-garde, que começou cultuando o industrialismo, a automação da segunda revolução industrial, mas que acabou desembocando no militarismo e no fascismo de Mussolini, com todos os horrores que daí decorreram, uma espécie de bolchevismo elitista que também se refletiria, mais tarde, no nazi-fascismo, o suprassumo dos instintos mais primitivos de destruição de tudo o que não se enquadrasse nos moldes eugênicos da raça pura.

Tampouco convém esquecer que o eugenismo e a busca insana da raça pura do nazi-fascismo tomaram impulso em tendências que estavam em evidência nos Estados Unidos do final do século XIX e início do XX, consideradas perfeitamente adequadas ao conceito de superioridade ariana de Rosenberg, que por sua vez foi o influenciador de Hitler, nas suas “ reflexões de cadeia” que resultaram no Mein KampfO assunto já tinha sido abordado pelo paleontologista Stephen Jay Gould, em The Mismeasure of Man (1981), mas foi abordado de forma mais incisiva na obra de James Q. Whitman: Hitler’s American Model: The United States and the Making of the Nazi Race Law (Princeton: Princeton University Press, 2017). 

Muitas dessas ideias, por sinal, se originaram em reflexões preliminares formuladas no Brasil por Gobineau, o ministro de Napoleão III no Rio de Janeiro e o “inimigo cordial do Brasil” (segundo George Raeders), que tinha verdadeiro horror à degenerescência da raça exemplificada pelos mestiços brasileiros, que levariam o Brasil a ser um completo desastre no contexto das nações civilizadas (todas elas supostamente de loiros dolicocéfalos).

Isso acabou desembocando nas teorias do “branqueamento da raça”, que tiveram muito sucesso no Brasil, dos anos 1870 até praticamente o final da Segunda Guerra, tal como analisado por Thomas Skidmore em Preto no Branco [Black into White: race and nationality in Brazilian Thought].

Como se vê, há um grande encadeamento de ideias e de formulações “civilizatórias”, que partem de pressupostos ingênuos, aparentemente tendentes a “melhorar” a humanidade e as sociedades, mas que podem redundar em verdadeiros desastres para povos antigos e civilizações inteiras. Os liberais ingleses do século XIX, por exemplo, não acreditavam que a democracia fosse “fitted for touaregs and bedouins”, justificando-se portanto o grande empreendimento imperialista e colonizador, à la Kipling, que levou o Reino Unido da era vitoriana a adquirir toda a Índia da Companhia das Índias Orientais britânica, e a conquistar metade da África, do Cairo ao Cabo.

Pouco depois, nesse mesmo impulso, o vigoroso novo presidente americano Theodore Roosevelt, proclamando o “Corolário Roosevelt” à doutrina Monroe, recomendava que se falasse macio, mas que se carregasse um “grande porrete”, supostamente para enquadrar povos recalcitrantes que ainda não estavam à altura das maneiras civilizadas dos anglo-saxões (esses “lazy” latinos e caribenhos, por exemplo).

Cabe não esquecer que mesmo um grande conhecedor do imperialismo britânico como era o Barão do Rio Branco não demorou muito para reconhecer a “independência” do Panamá, uma “costela” arrancada da Colômbia pelos novos imperialistas americanos, para apressar a construção do novo canal interoceânico, um pouco atrasada desde o desastre fraudulento da nova aventura de Lesseps, o construtor de Suez, que por sua vez entusiasmou Verdi na produção de Aída.

Ideias, como se vê, são perfeitamente contraditórias e podem levar a resultados surpreendentes na segunda ou terceira geração.

O grande movimento romântico alemão, que desempenhou um papel importante na conformação da luta pela unificação da Vaterland, conduzida por essa entidade mítica conhecida como das Volk, acabaria redundando na “metapolítica” dos wagnerianos que, fortalecida na música patriótica do grande mestre, e nos seus sentimentos perfeitamente antissemitas, se enquadraria, por sua vez, no caudal racista e supremacista do nazismo. A história está muito bem contada por Peter Viereck neste livro: Metapolitics: from Wagner and the German Romantics to Hitler (1941; expanded edition; 2004).

Por falar nisso, essa tal de “metapolítica” lembra alguma coisa, numa campanha presidencial, por exemplo? Ou uma outra “invenção”, a do nazismo como movimento “de esquerda”? O “globalismo”, o “comunavirus”... (Alguns exemplos bizarros desse tipo de pensamento figuram neste link: https://www.metapoliticabrasil.com/). Mais, passons...

Vamos voltar ao nosso modernismo de 100 anos atrás.

Ele foi muito mais risonho e franco do que o furor belicista, militarista, expansionista, do pré-fascista Marinetti, a despeito das críticas de um outro modernista impulsivo como foi Monteiro Lobato, considerado por muitos, mas equivocadamente, como um “inimigo” da Semana de Arte Moderna.

Nosso modernismo não foi só antropofagia, aquela coisa de canibais querendo deglutir o infeliz bispo Sardinha, mas também os mais contemporâneos europeus. Ele também resultou na consciência do nosso atraso, agitou os jovens tenentes na luta contra a corrupção política e congregou os primeiros reformistas consequentes a se unirem em associações pela melhoria da educação de massas que, dez anos mais tarde, resultou no Manifesto dos Pioneiros da Educação, a primeira grande revolução (inacabada) do Brasil pós-Abolição.

A Semana de Arte Moderna foi uma espécie de frenesi transformador, que agitou momentaneamente os corações e mentes da nossa République des Lettres, mas que depois hibernou na mesmice de Artur Bernardes e de Washington Luís, exasperando os jovens paulistas afoitos do novo partido “democrata”. Tudo bem: acabou confluindo para a Aliança Liberal que resolveu passar às vias de fato para liquidar de vez com a política “carcomida” da Velha República, nossa esperança jacobina que se transformou rapidamente em Ancien Régime. 

Como se vê mais uma vez, ideias e movimentos são surpreendentes e contraditórios, podendo conduzir a resultados inesperados.

A Semana de Arte Moderna causou aquele “agito” temporário, coloriu telas provocadoras, inovou na composição visual e gráfica da nova literatura, mas parece ter feito “chabu” em pouco tempo mais. Tanto é assim que um dos seus patrocinadores mais exaltados, Mario de Andrade, reconhecia, alguns anos depois, no provocador poema “O Poeta Come Amendoim”, e de forma algo frustrada, que “progredir, progredimos um tiquinho, que o progresso também é uma fatalidade”.

A fatalidade acabou atingindo o Brasil vários anos depois, sob as patas dos “cavalos castilhistas” importados do Rio Grande do Sul e apeados no Obelisco do Rio de Janeiro.

O castilhismo é aquele movimento supostamente positivista do Homem que Inventou a Ditadura no Brasil, que fez com que um de seus discípulos, o timorato, mas maquiavélico Vargas, desse início a um “breve período de 15 anos”, que realmente transformou o Brasil (para o bem e para o mal). Os militares que se acomodaram no poder em 1964, para um “breve período de 21 anos”, todos eles se formaram nas academias militares da “era Vargas”, com algumas concepções “prussianas” de “ciência bélica” e várias outras concepções quase “nazistas” de “ciência econômica” (autarquia, nacionalização vertical) e até algumas pontas de “stalinismo industrial” (mas para os ricos tão somente).

O Brasil, como se vê, sempre foi fértil de ideias, e continua sendo. Temos a capacidade de importas as ideias mais generosas, e as mais malucas, misturar tudo no liquidificador da academia e da política, e depois servir para o povo, como grandes símbolos da renovação do país.

A Semana de Arte Moderna de 1922 foi assim como uma Nova República avant la lettre, um grande impulso renovador que acaba sendo absorvido pelo realismo (e esperteza) da velha política corruptora (mas travestida de moderninha). Foi assim que caímos no novo coronelismo eletrônico de um “curral eleitoral” perfeitamente retrógrado (porque populista e assistencialista), mas que está sempre sendo renovado sob rótulos pouco originais, mas atrativos (“Renda Brasil”, “Renda Cidadã”, whatever...).

Cem anos depois, o que restou da Semana de Arte Moderna, do modernismo brasileiro?

Talvez a consciência de que deveríamos estar comemorando o bicentenário da “independência” (as aspas ainda se justificam) com um pouco mais de engajamento nas grandes reformas estruturais, como jamais o fizemos, mais de 130 anos depois da Abolição?

Não tenho certeza de que esse sentimento de angustiante e prematuro “reformismo” seja unanimemente partilhado por todas as elites brasileiras, os grupos economicamente dominantes e os politicamente dirigentes.

Ele não o foi desde a supostamente verdadeira independência, quando Hipólito da Costa e José Bonifácio, nossos primeiros (dentre os pouquíssimos) estadistas, preconizavam a extinção imediata do tráfico negreiro e a eliminação gradual da escravidão africana. O reformismo foi derrotado em 1789-92, em 1817, em 1822-23, novamente em 1824, outra vez em 1842 e em diversas outras oportunidades, inclusive em 1888, 1889 e em 1922, não tanto na Semana elitista, mas na praia de Copacabana, nas revoltas de 1924 e até na “Revolução Burguesa” de 1930. 

O Brasil oferece fartos exemplos de eventos, processos e movimentos que se enquadrariam perfeitamente nesses exercícios historiográficos do tipo do What If? O que teria acontecido se...

Antonio Paim, um dos nossos grandes pensadores, que começou na vida como marxista e que acabou se convertendo a um liberalismo lúcido (e, portanto, saudavelmente cético), já tentou um exercício passavelmente similar no seu livro sobre alguns do momentos decisivos na história do Brasil [Momentos Decisivos da História do Brasil, 2000], mas não tenho certeza de que os momentos tenham sido aqueles ou de que as “escolhas” se apresentassem da maneira como ele o fez nessa obra e numa outra sobre as dificuldades de se reformar o Brasil [O relativo atraso brasileiro e sua difícil superação, 2000].

Resumindo: cem anos depois da Semana “fatídica” de 1922, continuamos com o mesmo sentimento que tiveram os dois grandes estadistas de um século antes, e que talvez tenhamos agora, no bicentenário, os “modernistas” que sonhamos sempre um pouco mais alto: esse sentimento talvez seja algo similar ao dos abolicionistas frustrados de 132 anos atrás, ao dos jacobinos republicanos decepcionados com a primeira década de desastres do novo regime, ao dos idealistas do Diretas Já e da Nova República, igualmente descontentes e talvez deprimidos pela voragem inflacionária e pelas revelações da gigantesca corrupção política, quem sabe os mesmos sentimentos que hoje continuam a angustiar os diversos movimentos que lutaram por impeachment e por uma “nova política”, aquela que deveria ter sido “ética” e não foi, nem antes, nem agora. 

Esse sentimento é uma mistura de déjà vu e de desesperança, quase uma desistência: o que exatamente temos a comemorar em 2022?

Em 1922 havia certa sensação de que algo poderia ser feito, a despeito das frustrações com as primeiras três décadas da República: valia a pena tentar sermos “modernos”, o que o mundo também tentava, com a Liga das Nações, apesar do terrível legado da Grande Guerra.

Em 2022, o que temos, após 37 anos da inauguração de uma “Nova República”, que já tinha envelhecido menos de dez anos depois de seu início? Existe algo a ser comemorado num bicentenário de retrocessos, ignorância e obscurantismo? De elogios a torturadores e de destruição do patrimônio natural? De subserviência a uma potência estrangeira, ou a um dirigente ainda mais ignaro e preconceituoso do que certos velhacos arrogantes do passado?

Em 2020, ainda não temos respostas a essas perguntas, a essas dúvidas.

Por enquanto só nos cabe retirar o ponto de interrogação do título de uma conferência feita pelo embaixador Rubens Ricupero na Academia Brasileira de Letras: “Um futuro pior que o passado? Reflexões na antevéspera do bicentenário da Independência” (29/08/2019; disponível em formato de vídeo no site da Academia, neste link: http://www.academia.org.br/eventos/um-futuro-pior-que-o-passado-reflexoes-na-antevespera-do-bicentenario-da-independencia).

Temos menos de dois anos para inverter essa nova marcha da insensatez.

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 3774: 20 de outubro de 2020

 

 

terça-feira, 3 de dezembro de 2019

A institucionalidade do Mercosul: um texto de 1993 - Paulo Roberto de Almeida

Durante a fase de transição do Mercosul (1991-1994), eu me preocupava com a questão da conformação futura do bloco, especulando sobre as instituições permanentes, pós-1994. 
Parece que não se avançou muito desde então.
Em todo caso, reproduzo o meu texto de 1993, no qual refleti debates mantidos pelo Itamaraty sobre o assunto.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 3/12/2019


A INSTITUCIONALIDADE FUTURA DO MERCOSUL:
Primeiras Aproximações

Paulo Roberto de Almeida
Editor do Boletim de Integração Latino-Americana
Boletim de Integração Latino-Americana
(Brasília: nº 9, Abril-Junho 1993, pp. 13-18)
Relação de Trabalhos nº 343
Relação de Publicados nº 131

À medida em que se aproxima o final do período de transição fixado pelo Tratado de Assunção, o debate sobre a futura conformação institucional do MERCOSUL começa a atrair a atenção de crescente número de estudiosos e observadores, para não falar dos próprios negociadores da integração subregional, em primeiro lugar os diplomatas e outros altos funcionários das chancelarias do países membros, que são estatutariamente as responsáveis pela coordenação política desse processo.

O Calendário Institucional do MERCOSUL

Essa preocupação com a institucionalidade futura do MERCOSUL decorre, em primeiro lugar, de razões eminentemente práticas. Com efeito, o Tratado de Assunção afirma em seu Artigo 18: “Antes do estabelecimento do Mercado Comum, a 31 de dezembro de 1994, os Estados Partes convocarão uma reunião extraordinária com o objetivo de determinar a estrutura institucional definitiva dos órgãos de administração do Mercado Comum, assim como as atribuições específicas de cada um deles e seu sistema de tomada de decisões”.
Já em previsão dessa obrigação, os países membros tinham estabelecido, desde junho de 1992, um calendário tentativo para preparar os documentos de trabalho que servirão de base a essa reunião extraordinária, presumivelmente uma conferência de plenipotenciários que deverá concluir-se pela assinatura de novos instrumentos diplomáticos regulando a administração e o funcionamento do MERCOSUL a partir de 1º de janeiro de 1995.
Assim, no capítulo institucional do cronograma de medidas que deverão ser adotadas antes de 31 de dezembro de 1994 com vistas a assegurar o pleno cumprimento dos objetivos estabelecidos no Tratado de Assunção para o período de transição, mais comumente conhecido como “Cronograma de Las Leñas”, foram estabelecidos alguns prazos tentativos para a implementação de ações correspondentes nos campos da estrutura institucional definitiva dos órgãos do MERCOSUL, de suas atribuições específicas e do mecanismo de tomada de decisões. 
Resumidamente, os prazos são os seguintes:
Junho 93: análise do desenho institucional do MERCOSUL posterior ao período de transição;
Dezembro 93: análise das atribuições específicas de seus órgãos, do mecanismo de tomada de decisões e continuação da análise do desenho institucional em matéria legislativa, executiva e judicial do MERCOSUL “definitivo”;
Março 94: determinação das instituições, definição das atribuições específicas dos órgãos e do mecanismo de tomada de decisões posteriores ao período de transição;
Maio 94: encaminhamento ao Grupo Mercado Comum das três séries de definições para “avaliação e instrumentação”.
Por sua vez, segundo o Cronograma de Las Leñas, o início da preparação da reunião extraordinária está fixado para dezembro de 1993, devendo a reunião realizar-se previsivelmente no segundo semestre de 1994. Para preparar adequadamente essa reunião diplomática, sobretudo do ponto de vista substantivo, isto é, a elaboração dos documentos negociadores que serão finalizados pelas mais altas autoridades políticas dos países membros, o Grupo Mercado Comum decidiu criar, em sua IXª reunião (Assunção, abril de 1993), um Grupo ad hoc encarregado de tratar dos temas institucionais, reportando-se diretamente ao GMC.

Mesa redonda no Itamaraty

Para ajudar a preparar a posição brasileira a ser discutida nessa instância técnica de trabalho e, ulteriormente, nas reuniões diplomáticas que se seguirão, o Itamaraty, como coordenador brasileiro do processo de integração convidou, em meados de maio último, uma dezena de estudiosos e especialistas que, a título individual, puderam debater amplamente a estrutura institucional atual e futura do MERCOSUL. 1 Sob a direção do Secretário-Geral do Itamaraty, Embaixador Luiz Felipe Lampréia, e do Embaixador Rubens Antonio Barbosa, Subsecretário-Geral de Assuntos de Integração, Econômicos e de Comércio Exterior e Coordenador da Seção brasileira do GMC, os participantes da mesa redonda dedicaram-se a um intenso intercâmbio de opiniões e de argumentos fundamentados sobre os diferentes aspectos institucionais dos processos de integração, em sua dimensão comparada, e sobre a estrutura ideal ou possível que poderia adotar o MERCOSUL.
O debate frutífero que então se travou foi balizado, mas não limitado, por algumas questões básicas que necessitam ser respondidas previamente à formulação de sugestões formais sobre a estrutura institucional definitiva dos órgãos de administração do MERCOSUL e seu processo decisório. Essas perguntas, entre outras subjacentes, foram nomeadamente as seguintes:
1) Interessa ou não ao Brasil a existência, a partir de 1995, de instituições definitivas supranacionais ?;
2) Em caso positivo, quais seriam essas instituições e qual o seu grau de supranacionalidade ? Sua competência seria decisória, propositiva, ou apenas consultiva ?;
3) Em caso negativo, é do interesse do Brasil que todos os órgãos do MERCOSUL sejam de caráter intergovernamental ou alguns deles deveriam dispor de relativa independência em relações aos Estado membros ?;
4) Deverá necessariamente o Tratado de Assunção ser substituído por um novo Tratado ou poderá ele ser modificado por instrumentos jurídicos negociados pelos quatro governos e aprovados pelos respectivos Parlamentos nacionais ?, e
5) Quais os tipos de processo decisório interessam ao Brasil no âmbito do MERCOSUL ? Quais suas modalidades rationae materiae: unanimidade (veto); maioria simples; maioria qualificada ? Neste último caso, que tipo de maioria qualificada ?
Muitas outras questões afloraram no decorrer dos debates, não apenas derivadas das acima citadas, mas em especial preocupações vinculadas ao processo de revisão da Constituição brasileira — a ser conduzido depois de 5 de outubro de 1993, de conformidade com o Artigo 3º das Disposições Transitórias — e que oferece uma chance à sociedade brasileira de adequar o Estado e as normas regulatórias da atividade econômica aos novos requisitos do processo de integração subregional e da inserção internacional. As notas que se seguem não têm a intenção de coligir todas as opiniões emitidas por cada um dos participantes, mas tão somente oferecer um apanhado de argumentos e de proposições que, sem representar a opinião do Ministério das Relações Exteriores ou do Governo brasileiro sobre a questão, podem contribuir para a intensificação do debate nacional sobre a institucionalização futura do MERCOSUL e aportar assim elementos de juizo para a formulação preliminar de uma posição negociadora sobre o desenvolvimento institucional do processo de integração subregional.

A Institucionalidade do MERCOSUL

Em que pese a complexidade das tarefas que ainda restam a ser cumpridas para a consecução dos objetivos fixados no Tratado de Assunção, os participantes reconheceram a utilidade e a conveniência de se assegurar uma conformação institucional que sirva para consolidar e fazer avançar os compromissos assumidos pelos Estados Partes em março de 1991, nomeadamente os de uma zona de livre comércio e de uma união aduaneira, pressupostos necessários e irrecusáveis do Mercado Comum do Sul. A continuidade do desenvolvimento institucional do MERCOSUL oferece, assim, um dos elementos de garantia de que aqueles objetivos não sofrerão retrocesso. Aliás, a própria implementação prática do Mercado Comum — hoje fortemente sustentada pela vontade política das máximas autoridades de cada um dos países membros — se encontrará singularmente reforçada se, ao lado da coordenação intergovernamental já assegurada, se puder avançar na concreção de um mínimo de supranacionalidade nesse processo.
Para caminhar nessa direção foi indicada, antes de mais nada, a necessidade de se cumprir com o estipulado no Artigo 18 do Tratado de Assunção, que objetiva à conformação da “estrutura institucional definitiva dos órgãos de administração do Mercado Comum”. O próprio avanço do processo de integração contribui para uma racionalidade superior e um disciplinamento das políticas macroeconômicas nacionais, dando-lhes um marco de gestão tendencialmente estável e funcionalmente harmônico. O MERCOSUL passou a propiciar, às empresas privadas nacionais e multinacionais, um horizonte de planejamento e de investimento produtivo de razoáveis dimensões econômicas, num momento em que a formação de blocos regionais apresenta-se como uma estratégia política de peso no atual processo de reorganização do sistema multilateral de comércio.
Inversamente, uma eventual opção pelo “congelamento” institucional da nova área de integração poderia resultar na perda da credibilidade internacional já alcançada pelo MERCOSUL — não só junto a entidades congêneres existentes e em formação (CEE, Grupo Andino, NAFTA), mas também junto a outros importantes parceiros internacionais (Estados Unidos, Japão) e organismos e foros especializados de tipo econômico (BID, GATT etc.) — com a consequente diminuição da capacidade de barganha política adquirida pelo MERCOSUL nessas instâncias. O processo de integração também passou a representar, e não só para o Brasil, um elemento estimulador de algumas formas de planejamento macroeconômico e da liberalização econômica, com a dinamização consequente de movimentos que poderão no futuro vir a contribuir para o aperfeiçoamento da competitividade tecnológica e da modernização industrial.

Supranacional ou intergovernamental ?

No que se refere ao caráter das instituições definitivas, se intergovernamental ou supranacional, foi lembrado o importante papel histórico e mesmo a funcionalidade estrutural que instituições desse último tipo tiveram em outros processos de integração, em especial o europeu, no sentido de se assegurar o funcionamento adequado das diversas disposições que regem um mercado comum (defesa da concorrência, coordenação das políticas macroeconômicas, setoriais e de comércio exterior, interpretação comum das normas comunitárias etc.). Nossos parceiros mais importantes no processo de integração parecem igualmente encarar como natural e necessária essa transição para a supranacionalidade. O atual Embaixador da Argentina no Brasil, Alieto Guadagni, quando ainda ocupava o cargo de Secretário de Relações Econômicas Internacionais na Chancelaria argentina escreveu que “con toda seguridad [las] instituciones definitivas habrán de ser más fuertes que las actuales, incorporando asimismo algun ingrediente de supranacionalidad. Parece muy dificil imaginar que las instituciones actuales puedan sobrevivir más allá del periodo de transición pues las mismas carecen de la entidad suficiente para llevar a sus últimas consecuencias un proyecto de Mercado Común”. 2
Quanto ao seu grau de supranacionalidade, exprimiu-se o argumento de que essa supranacionalidade está implícita na lógica do processo de integração e já se encontra presente, por exemplo, no sistema provisório de solução de controvérsias, que prevê a aceitação pelos Estados Partes do Protocolo de Brasília de laudos arbitrais formulados por juízes independentes. Ainda assim, esse grau de “cessão de soberania” não pode eludir as condições efetivas em que se realiza o processo de integração no Cone Sul, marcado por avanços reais no programa de liberação comercial, algumas dificuldades para o estabelecimento da tarifa externa comum e uma baixa propensão à coordenação das políticas macroeconômicas e setoriais.
A esse respeito, o Ministro Sérgio Florêncio, Chefe do Departamento de Integração do MRE e coordenador alterno da Seção brasileira do GMC, formulou uma série de perguntas que apresentam alto grau de pertinência para um adequado encaminhamento do debate. Aqueles que equacionam os avanços no processo de integração à construção da supranacionalidade não deixam de ter sua dose de razão, em função dos resultados aparentemente bem sucedidos do exemplo europeu. Mas, a supranacionalidade, na integração de países dotados de pesos econômicos tão díspares e de estruturas socioeconômicas diferenciadas, tampouco deixa de colocar problemas à boa marcha do processo. A alternativa à supranacionalidade é a continuidade do esquema interestatal atual, no qual o Brasil parece deter maior margem de manobra. Por outro lado, há que se questionar o timing da institucionalização supranacional, em função das assimetrias remanescentes e das políticas divergentes entre os países membros. Nesse sentido, acelerar o processo não significaria eventualmente contribuir para o seu insucesso ?

De que tipo de instituições necessita o MERCOSUL ?

Muito embora se tenha sublinhado a necessidade de inovar institucionalmente, e mesmo de se procurar definir órgãos de administração mais conformes às reais necessidades do processo de integração no Cone Sul, também se reconheceu que, nesse terreno, parece difícil fugir ao “modelo europeu” de institucionalidade. Ainda que a arquitetura interna no MERCOSUL possa ser bastante diferente da complexa edificação institucional da CEE, basicamente não se pode escapar às funções essenciais a todo processo integracionista: a) comando político intergovernamental; b) execução técnica de tipo comunitário; c) controle, fiscalização e apelo de tipo arbitral ou judicial e d) representação e participação societária de tipo parlamentar ou por delegação setorial.
Em outros termos, a institucionalidade mínima requerida em processos desse tipo comanda a definição e o estabelecimento dos seguintes tipos de instituições comuns:
1) um órgão superior de caráter intergovernamental, detendo o essencial do processo decisório, em forma ponderada;
2) um outro órgão, de tipo executivo, caracterizado por uma supranacionalidade estritamente necessária a seus fins de proposição de decisões e de controle da implementação de medidas;
3) uma instância de vigilância e apelo, tipo Corte Arbitral, e
4) um foro consultivo com ampla participação da sociedade.
Esse modelo quadripartite, involuntariamente calcado no exemplo europeu — que não foi, todavia, o adotado no caso do Grupo Andino — poderia portanto ser desdobrado, em sua máxima extensão, numa estrutura institucional compreendendo os seguintes órgãos e funções:
a) um Conselho, de natureza política, com representação paritária dos países membros, mas provido de um sistema de tomada de decisões refletindo o peso específico de cada um deles no esquema integracionista;
b) uma Comissão, de caráter supranacional, ou seja, um órgão executivo dotado de poderes e atribuições propriamente comunitárias, e não mais simplesmente intergovernamentais;
c) um Tribunal de Justiça ou Corte de Arbitragem, que funcionaria não só como instância de solução de controvérsias entre os países membros e seus agentes econômicos, mas também como foro constitucional e instância de controle e de apelo e cujos laudos teriam aplicabilidade direta nos Estados Partes; e
d) um Parlamento comunitário, com poderes consultivos e de representação (mas não legislativos) e provavelmente constituído, numa primeira fase, por via indireta, isto é, a partir dos legislativos nacionais, e, numa fase ulterior, por via eletiva direta;
e) um Comitê Consultivo, de natureza econômica e social.
Ainda assim, esse “modelo básico”, de tipo europeu, talvez vá muito além do que os requerimentos do MERCOSUL, em sua fase atual e mesmo futura, parecem exigir e, por isso, se poderia pensar numa estrutura menos elaborada, na qual, ao lado de um Conselho (e, eventualmente, de um Grupo intergovernamental, que atuaria como foro de representantes permanentes), se teria uma Autoridade comunitária reduzida à sua expressão mais simples (um Comissário ou uma pequena Comissão de 3 ou 5 membros), com poderes propositivos, e uma Corte Arbitral dotada de funções de apelo e de controle. A Comissão Parlamentar continuaria existindo, durante certo tempo, no seu formato e responsabilidade atuais.
Em todo caso, é possível que, realisticamente, se tenha de continuar operando, durante algum tempo após o período definido como de transição no Tratado, com base no atual formato intergovernamental, que poderíamos chamar de “modelo BENELUX”. A passagem para o “modelo da CEE” — não a do Ato Único e muito menos a dos acordos de Maastricht, mas tão simplesmente a do Tratado de Roma de 1957 — se daria numa fase ulterior, quando se tivessem cumprido plenamente as metas econômicas e os objetivos políticos da união aduaneira.
Como bem lembrou o Professor Vicente Marotta Rangel, titular de Direito Internacional Público da FDUSP e ex-Consultor Jurídico do Itamaraty, a formulação do Artigo 18 do Tratado de Assunção deixa certa margem à interpretação criativa: “estrutura institucional definitiva” não quer necessariamente dizer que os novos “órgãos de administração do Mercado Comum” tenham de ser implantados de forma imediata e começar a funcionar desde 1º de janeiro de 1995. O futuro Tratado, ou um Protocolo ao atual, poderia prever a implementação calendarizada — ou cumpridos determinados condicionantes a um salto de etapa — das instituições permanentes do Mercado Comum.
Essa trouvaille do Prof. Rangel não deixaria, por certo, de receber o aplauso dos que estão hoje legitimamente preocupados com as fortes limitações de caráter político-institucional e as ainda maiores incertezas de tipo econômico do atual processo de integração. Essa implementação escalonada e gradual do capítulo institucional do Mercado Comum do Sul reverteria, assim, em dispor de um MERCOSUL comunitário “virtual” — no sentido informático da palavra — embutido no MERCOSUL “real” do modelo BENELUX. Em todo caso, não há porque adotar-se um modelo prêt-à-porter ou então procurar o “produto adequado” no supermercado da integração latino-americana, mas sim modelar a vestimenta institucional do MERCOSUL em função de suas reais dimensões e das necessidades do processo empírico.
Como também não deixou de sublinhar o Professor Luiz Olavo Baptista, da mesma Faculdade, o Tratado fala de “órgãos de administração”, o que lhes daria um estrito caráter de gestão do processo de integração e não obrigatoriamente o papel de liderança política que instituições supranacionais, ou pelo menos comuns, têm em outras áreas. Luiz Olavo lembrou ainda o caráter ibérico de nossas formações sociais e estatais, o que dificultaria sobremaneira qualquer pretensão a ter um processo de tipo europeu, com total independência da burocracia “comunitária”. Mas, não se pode pretender tampouco eludir algum tipo de controle parlamentar desse processo.
Resumindo essa parte do debate, o Ministro Sérgio Florêncio apontou as qualificações do Artigo 18: a reunião extraordinária ali prevista destina-se a determinar os órgãos definitivos do Mercado Comum, mas não sua implantação imediata; esses órgãos são de administração e não necessariamente de direção política e, ao se falar em “órgãos de administração”, pensou-se mais na gestão dos assuntos correntes típicos de uma zona de livre-comércio, que era o horizonte de trabalho dos “constituintes” do Tratado de Assunção, do que na complexa direção de uma estrutura comunitária acabada.
Caso não se implemente, de imediato, a supranacionalidade explícita no “modelo da CEE”, poder-se-ia, ainda assim, constituir órgãos subordinados dotados de relativa independência em relação aos Estados membros. Em todo caso, pode-se pensar num Secretariado Executivo, dotado de atribuições precisas no que concerne a implementação dos objetivos de completa liberalização de comércio, bem como num Conselho Superior das Aduanas, no estilo BENELUX, de caráter intergovernamental, mas dotado de capacidade de iniciativa, com vistas a cumprir os requisitos necessários ao funcionamento de uma união aduaneira.
Por outro lado, como enfatizou o Professor Werter Faria, Presidente da Associação Brasileira de Estudos da Integração (Porto Alegre, RS), se se quer avançar na direção de um mercado comum, seria importante ir criando jurisprudência comunitária em matéria de liberalização de mercados e defesa da concorrência, para o que se afigura como absolutamente indispensável um Tribunal Arbitral dotado de um mínimo de supranacionalidade e, de preferência, um Tribunal de Justiça com poderes de controle e de fiscalização sobre as ações dos Estados membros. No exemplo europeu, lembrou o Prof. Werter, a construção do mercado comum foi praticamente a obra — não solitária, mas pelo menos substancial — da Corte de Luxemburgo, com suas incontáveis ações de controle da legalidade dos atos dos países membros da CEE e seu papel fundamental na eliminação das barreiras não-tarifárias (normas técnicas, medidas sanitárias etc.) que os Estados passaram a erigir no lugar dos recém derrubados direitos aduaneiros.

Novo Tratado ou modificação do atual ?

A maioria dos participantes da mesa redonda, com a solitária exceção deste articulista, manifestou-se em favor da continuidade do atual instrumento básico do MERCOSUL, com a introdução das modificações que se fizerem necessárias para cumprir o articulado do Artigo 18 e as demais exigências de uma plena união aduaneira, com a possível definição de novas normas contratuais no terreno das políticas setoriais (industrial, agrícola etc.) ou macroeconômicas (fiscal, tributária, defesa da concorrência etc.).
O Tratado de Assunção, como uma espécie de “Carta constitucional” da nova área de integração, é suficientemente flexível para abrigar as necessidades atuais e futuras dos países membros na construção do espaço econômico comum. Assim, ele deveria ser escoimado de seus elementos provisórios, modificado em todas aquelas seções que já não mais corresponderem aos novos requisitos da integração em sua fase de consolidação comunitária e continuar a apresentar esse caráter maleável que o qualifica como instrumento adequado da integração sub-regional.
Para argumentar contrariamente à necessidade de um novo Tratado de integração no Cone Sul, o Ministro Sérgio Florêncio fez uma série de ponderações que merecem registro. Em primeiro lugar, um segundo instrumento geraria inevitavelmente um efeito comparativo com o primeiro e todas as comparações costumam ter o seu lado negativo. A complementação do atual Tratado, e não sua substituição integral, permitiria pontualizar o foco das discussões mais importantes para a continuidade do processo negociador e evitar, em consequência, o inferno jurídico que uma abertura de todos os pontos poderia suscitar. Em termos contratuais práticos, o Tratado de Assunção deriva basicamente do programa estabelecido pela Ata de Buenos Aires e pelo ACE-14 e, portanto, não deveria desviar-se de seu eixo original. Por fim, o próprio exemplo europeu ilustra a continuidade básica institucional ali seguida: todos os instrumentos que complementaram e aperfeiçoaram o mercado comum tiveram o formato de emendas, modificações ou adições aos Tratados da CECA de 1951 ou aos de Roma de 1957 (CEE e Euratom), notadamente o Ato Único de 1986 e o Tratado da União Europeia aprovado em Maastricht.
Note-se que a sugestão de se proceder à substituição do atual Tratado prendia-se à percepção de que a modificação de seus termos, em especial no que concerne à estrutura do processo decisório, poderia gerar alguma resistência por parte de certos setores em determinados países, particularmente nos meios parlamentares, mas tal preocupação não foi julgada relevante para justificar todo o trabalho de se empreender uma negociação de um novo instrumento diplomático. Como observado pelo Ministro Renato Marques, Secretário de Comércio Exterior do MICT, a opção pela regra do consenso, constante do atual Tratado, era lógica e necessária, uma vez que se dava início a um processo, necessariamente intergovernamental, de construção embrionária de um espaço econômico comum. Na fase seguinte, de consolidação comunitária, quando se afirmam os critérios da supranacionalidade, é natural que sejam mudadas as regras de funcionamento institucional da área de integração.

O processo decisório no MERCOSUL

Trata-se de um dos elementos mais importantes no debate político intra-MERCOSUL, com repercussões sobre a formulação e implementação de políticas e decisões comuns nos mais diversos campos, notadamente nos campos da defesa da concorrência e de restrição às práticas desleais de comércio.
Sem cair no jogo de palavras, houve consenso, entre os participantes, de que a atual regra do consenso deve ser substituída através da adoção de um processo qualificado de tomada de decisões, provavelmente sob a forma de um “decision-making mix”, ou seja, operar uma combinação de mecanismos decisionais na qual:
a) determinadas decisões requeiram a unanimidade, como as de tipo constitucional, por exemplo: mudança do Tratado, interesse nacional relevante etc.;
b) outras uma maioria simples, como aquelas decorrentes de medidas rotineiras: convocatória de órgãos e reuniões;
c) outras ainda uma maioria qualificada, ou seja aquelas que visam propriamente a uma tomada de ação nos campos político e econômico.
A experiência das Comunidades Europeias, com a adoção evolutiva de diversas instâncias e sistemas decisionais, oferece, nesse terreno, um modelo e um laboratório avançado sobre o funcionamento dos diversos mecanismos possíveis de tomada de decisão. No MERCOSUL, igualmente, se terá de operar com base num sistema de votação ponderada, que deverá atribuir um número diferenciado de pontos aos países membros, segundo os princípios da equidade e da justiça, mas também da importância relativa do aporte efetivo de cada um deles ao espaço econômico comum.

A integração e a revisão constitucional brasileira

A mesa redonda não se ocupou especificamente dessa questão, mas caberia talvez lembrar, a título meramente informativo, a oportunidade que se abre para o Brasil no segundo semestre de 1993. A Carta Constitucional brasileira de 5 de outubro de 1988, ao trazer inscrita em suas disposições transitórias a perspectiva de sua revisão, oferece a possibilidade de uma adaptação de diversos dispositivos constitucionais aos requerimentos políticos da integração regional e a de uma oportuna readequação dos instrumentos de intervenção do Estado às exigências dos processos de inserção econômica internacional e de liberalização comunitária. É sobretudo no campo econômico — Títulos sobre a organização do Estado e a Ordem Econômica — que a Constituição pode revelar-se como relativamente disfuncional para o pleno cumprimento dos objetivos listados no Artigo 1 do Tratado de Assunção, particularmente a livre circulação de bens, serviços e fatores produtivos no território econômico comum aos quatro países membros. O capítulo econômico da Constituição, por exemplo, naquelas seções que consagram monopólios constitucionais ou tratamentos favorecidos para empresas brasileiras de capital nacional, poderia ser repensado com vistas a possibilitar, plena e concretamente, a implementação de uma interdependência ativa entre as economias do quatro países membros, que é disso que trata um mercado comum. Em não sendo isso possível, caberia revisar o parágrafo integracionista (Artigo 4, par. único), de forma a dar-lhe preeminência sobre as demais disposições de caráter particular e afirmar claramente o objetivo integracionista regional, além de seu mero efeito declaratório.
Se bem que, como alertou o Deputado Nelson Jobim, não se pode esperar uma revisão radical de toda a Constituição, alguns dispositivos poderiam ser modificados de forma a facilitar o estabelecimento da interdependência acima referida. De um modo geral, pode-se pensar na introdução de um artigo tratando da aplicabilidade direta no direito interno de normas e tratados internacionais, bem como de dispositivos que resultem na aceitação inconteste de decisões, resoluções e laudos de órgãos supranacionais, de caráter político (Conselho e Comissão) ou jurídico (Tribunal do MERCOSUL).
A questão da discriminação dos atos internacionais que necessitam de apreciação parlamentar também poderia ser considerada durante a revisão constitucional. Grosso modo, quais decisões ou resoluções dos órgãos do MERCOSUL dependeriam de aprovação legislativa, mantida a processualística atual dos atos internacionais ? Segundo a própria Constituição, todos os “tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional” (Artigo 49, I), mas, adicionalmente aos “tratados” estrito senso, todas aquelas decisões dos órgãos comunitários do MERCOSUL que, não só acarretem compromissos gravosos, mas que também impliquem na mudança eventual de dispositivos constitucionais ou de leis aprovadas pelo Parlamento brasileiro.
No quadro de uma mudança eventual da Constituição, o Congresso poderia perder o papel meramente referendador de atos internacionais negociados e firmados pelo Executivo, que ele tem hoje, para assumir uma postura mais participativa. Em todo caso, como observou o Deputado Jobim, que tipo de vincularidade teriam decisões emanadas do Conselho de Ministros do MERCOSUL e qual seria seu caráter obrigatório para o Brasil na ausência de explícita aprovação parlamentar ?

As próximas etapas do debate
Sem pretender chegar a conclusões ou orientações definitivas para a marcha ulterior do debate, os participantes da mesa redonda, pela voz do Emb. Rubens Barbosa, exprimiram o desejo que o rico intercâmbio de ideias travado no Itamaraty pudesse continuar em etapas futuras do trabalho de elaboração institucional do MERCOSUL. Recomendou-se a propósito que se procurasse estreitar a colaboração com o Instituto Latino-Americano de São Paulo que, sob a direção do ex-Governador Franco Montoro, vem impulsionando suas atividades em diversos campos de interesse relevante para o processo do MERCOSUL, em especial no estudo das dimensões jurídicas da integração.
Alguns dos participantes prontificaram-se a encaminhar contribuições tópicas sobre alguns dos pontos em debate, como é o caso, por exemplo, das instituições de caráter judicial, procedendo-se, mais tarde, à coordenação dos diversos “papers” na própria Subsecretaria-Geral de Assuntos de Integração do Itamaraty. Acordou-se igualmente solicitar a algumas entidades patronais (FIESP/CNI) estudos específicos sobre temas econômico-comerciais, como seria o do funcionamento das regras de origem para a fase ulterior ao período de transição, ou a órgãos como o CADE algum trabalho sobre a defesa da concorrência no âmbito comunitário.
De uma forma geral, as intervenções foram marcadas pelo caráter realista dos argumentos desenvolvidos pelos participantes, todos preocupados em fazer avançar a integração no MERCOSUL atendendo-se, contudo, ao necessário gradualismo institucional e à flexibilidade política desse processo. Seguindo o tradicional aforismo popular, poder-se-ia dizer que, no caso do MERCOSUL também, cautela e caldo de galinha não fazem mal a ninguém.
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1. Participaram desse encontro o Secretário-Geral das Relações Exteriores, Embaixador Luiz Felipe Lampréia, que presidiu a primeira parte da reunião, o Subsecretário-Geral de Assuntos de Integração, Econômicos e de Comércio Exterior, Emb. Rubens Antonio Barbosa, que coordenou os trabalhos, e as seguintes personalidades e especialistas independentes, ademais de funcionários do Itamaraty: Deputado Nelson Jobim, Emb. Luiz Augusto Souto Maior, (....).
2. Cf. Alieto Guadagni, “MERCOSUR: una herramienta de desarrollo”, in El Mercado Comun del Sur (Buenos Aires, Centro de Economia Internacional, Secretaria de Relaciones Económicas Internacionales, MREC, 1992), pp. 27-28.
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[Brasília, 2ª: 21.05.93]
[Relação de Trabalhos nº 343]
Publicado no Boletim de Integração Latino-Americana (Brasília: nº 9, Abril-Junho 1993, pp. 13-18). Relação de Publicados nº 131.

343. “A Institucionalidade Futura do Mercosul: Primeiras Aproximações”, Brasília: 21 maio 1993, 14 pp. Artigo consolidando os debates da mesa redonda realizada em 17.05.93 no Itamaraty. Publicado no Boletim de Integração Latino-Americana (Brasília: nº 9, Abril-Junho 1993, pp. 13-18). Relação de Publicados nº 131.