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terça-feira, 20 de outubro de 2020

O “modernismo” brasileiro aos 100 anos - Paulo Roberto de Almeida

O “modernismo” brasileiro aos 100 anos 

 

Paulo Roberto de Almeida

(www.pralmeida.orghttp://diplomatizzando.blogspot.com)

[Objetivoreflexões preliminares para futuro trabalhofinalidaderascunho]

  

 

Ideias movem o mundo?

Certamente!

O historiador Felipe Fernandez-Armesto dedicou um livro inteiro às grandes ideias que mudaram o mundo, desde a mais remota Antiguidade até a modernidade mais recente [Idéias que mudaram o mundo, São Paulo: Editora Arx, 2004]

Modernismo foi a designação que se convencionou atribuir ao movimento de ideias que realmente “movimentou” o Brasil desde o imediato pós-Grande Guerra (que só foi chamada de Primeira retrospectivamente, depois dos desastres incomensuravelmente maiores do grande conflito de 1939-45) e que foi simbolizado, poucos anos depois, pela Semana de Arte Moderna do início de 1922, o ano em que deveríamos estar comemorando (e realmente o fizemos) o centenário da “independência” (as aspas se justificam?).

Convém não esquecer que o “modernismo” brasileiro toma certo impulso a partir do “futurismo” de Marinetti, um movimento perfeitamente de avant-garde, que começou cultuando o industrialismo, a automação da segunda revolução industrial, mas que acabou desembocando no militarismo e no fascismo de Mussolini, com todos os horrores que daí decorreram, uma espécie de bolchevismo elitista que também se refletiria, mais tarde, no nazi-fascismo, o suprassumo dos instintos mais primitivos de destruição de tudo o que não se enquadrasse nos moldes eugênicos da raça pura.

Tampouco convém esquecer que o eugenismo e a busca insana da raça pura do nazi-fascismo tomaram impulso em tendências que estavam em evidência nos Estados Unidos do final do século XIX e início do XX, consideradas perfeitamente adequadas ao conceito de superioridade ariana de Rosenberg, que por sua vez foi o influenciador de Hitler, nas suas “ reflexões de cadeia” que resultaram no Mein KampfO assunto já tinha sido abordado pelo paleontologista Stephen Jay Gould, em The Mismeasure of Man (1981), mas foi abordado de forma mais incisiva na obra de James Q. Whitman: Hitler’s American Model: The United States and the Making of the Nazi Race Law (Princeton: Princeton University Press, 2017). 

Muitas dessas ideias, por sinal, se originaram em reflexões preliminares formuladas no Brasil por Gobineau, o ministro de Napoleão III no Rio de Janeiro e o “inimigo cordial do Brasil” (segundo George Raeders), que tinha verdadeiro horror à degenerescência da raça exemplificada pelos mestiços brasileiros, que levariam o Brasil a ser um completo desastre no contexto das nações civilizadas (todas elas supostamente de loiros dolicocéfalos).

Isso acabou desembocando nas teorias do “branqueamento da raça”, que tiveram muito sucesso no Brasil, dos anos 1870 até praticamente o final da Segunda Guerra, tal como analisado por Thomas Skidmore em Preto no Branco [Black into White: race and nationality in Brazilian Thought].

Como se vê, há um grande encadeamento de ideias e de formulações “civilizatórias”, que partem de pressupostos ingênuos, aparentemente tendentes a “melhorar” a humanidade e as sociedades, mas que podem redundar em verdadeiros desastres para povos antigos e civilizações inteiras. Os liberais ingleses do século XIX, por exemplo, não acreditavam que a democracia fosse “fitted for touaregs and bedouins”, justificando-se portanto o grande empreendimento imperialista e colonizador, à la Kipling, que levou o Reino Unido da era vitoriana a adquirir toda a Índia da Companhia das Índias Orientais britânica, e a conquistar metade da África, do Cairo ao Cabo.

Pouco depois, nesse mesmo impulso, o vigoroso novo presidente americano Theodore Roosevelt, proclamando o “Corolário Roosevelt” à doutrina Monroe, recomendava que se falasse macio, mas que se carregasse um “grande porrete”, supostamente para enquadrar povos recalcitrantes que ainda não estavam à altura das maneiras civilizadas dos anglo-saxões (esses “lazy” latinos e caribenhos, por exemplo).

Cabe não esquecer que mesmo um grande conhecedor do imperialismo britânico como era o Barão do Rio Branco não demorou muito para reconhecer a “independência” do Panamá, uma “costela” arrancada da Colômbia pelos novos imperialistas americanos, para apressar a construção do novo canal interoceânico, um pouco atrasada desde o desastre fraudulento da nova aventura de Lesseps, o construtor de Suez, que por sua vez entusiasmou Verdi na produção de Aída.

Ideias, como se vê, são perfeitamente contraditórias e podem levar a resultados surpreendentes na segunda ou terceira geração.

O grande movimento romântico alemão, que desempenhou um papel importante na conformação da luta pela unificação da Vaterland, conduzida por essa entidade mítica conhecida como das Volk, acabaria redundando na “metapolítica” dos wagnerianos que, fortalecida na música patriótica do grande mestre, e nos seus sentimentos perfeitamente antissemitas, se enquadraria, por sua vez, no caudal racista e supremacista do nazismo. A história está muito bem contada por Peter Viereck neste livro: Metapolitics: from Wagner and the German Romantics to Hitler (1941; expanded edition; 2004).

Por falar nisso, essa tal de “metapolítica” lembra alguma coisa, numa campanha presidencial, por exemplo? Ou uma outra “invenção”, a do nazismo como movimento “de esquerda”? O “globalismo”, o “comunavirus”... (Alguns exemplos bizarros desse tipo de pensamento figuram neste link: https://www.metapoliticabrasil.com/). Mais, passons...

Vamos voltar ao nosso modernismo de 100 anos atrás.

Ele foi muito mais risonho e franco do que o furor belicista, militarista, expansionista, do pré-fascista Marinetti, a despeito das críticas de um outro modernista impulsivo como foi Monteiro Lobato, considerado por muitos, mas equivocadamente, como um “inimigo” da Semana de Arte Moderna.

Nosso modernismo não foi só antropofagia, aquela coisa de canibais querendo deglutir o infeliz bispo Sardinha, mas também os mais contemporâneos europeus. Ele também resultou na consciência do nosso atraso, agitou os jovens tenentes na luta contra a corrupção política e congregou os primeiros reformistas consequentes a se unirem em associações pela melhoria da educação de massas que, dez anos mais tarde, resultou no Manifesto dos Pioneiros da Educação, a primeira grande revolução (inacabada) do Brasil pós-Abolição.

A Semana de Arte Moderna foi uma espécie de frenesi transformador, que agitou momentaneamente os corações e mentes da nossa République des Lettres, mas que depois hibernou na mesmice de Artur Bernardes e de Washington Luís, exasperando os jovens paulistas afoitos do novo partido “democrata”. Tudo bem: acabou confluindo para a Aliança Liberal que resolveu passar às vias de fato para liquidar de vez com a política “carcomida” da Velha República, nossa esperança jacobina que se transformou rapidamente em Ancien Régime. 

Como se vê mais uma vez, ideias e movimentos são surpreendentes e contraditórios, podendo conduzir a resultados inesperados.

A Semana de Arte Moderna causou aquele “agito” temporário, coloriu telas provocadoras, inovou na composição visual e gráfica da nova literatura, mas parece ter feito “chabu” em pouco tempo mais. Tanto é assim que um dos seus patrocinadores mais exaltados, Mario de Andrade, reconhecia, alguns anos depois, no provocador poema “O Poeta Come Amendoim”, e de forma algo frustrada, que “progredir, progredimos um tiquinho, que o progresso também é uma fatalidade”.

A fatalidade acabou atingindo o Brasil vários anos depois, sob as patas dos “cavalos castilhistas” importados do Rio Grande do Sul e apeados no Obelisco do Rio de Janeiro.

O castilhismo é aquele movimento supostamente positivista do Homem que Inventou a Ditadura no Brasil, que fez com que um de seus discípulos, o timorato, mas maquiavélico Vargas, desse início a um “breve período de 15 anos”, que realmente transformou o Brasil (para o bem e para o mal). Os militares que se acomodaram no poder em 1964, para um “breve período de 21 anos”, todos eles se formaram nas academias militares da “era Vargas”, com algumas concepções “prussianas” de “ciência bélica” e várias outras concepções quase “nazistas” de “ciência econômica” (autarquia, nacionalização vertical) e até algumas pontas de “stalinismo industrial” (mas para os ricos tão somente).

O Brasil, como se vê, sempre foi fértil de ideias, e continua sendo. Temos a capacidade de importas as ideias mais generosas, e as mais malucas, misturar tudo no liquidificador da academia e da política, e depois servir para o povo, como grandes símbolos da renovação do país.

A Semana de Arte Moderna de 1922 foi assim como uma Nova República avant la lettre, um grande impulso renovador que acaba sendo absorvido pelo realismo (e esperteza) da velha política corruptora (mas travestida de moderninha). Foi assim que caímos no novo coronelismo eletrônico de um “curral eleitoral” perfeitamente retrógrado (porque populista e assistencialista), mas que está sempre sendo renovado sob rótulos pouco originais, mas atrativos (“Renda Brasil”, “Renda Cidadã”, whatever...).

Cem anos depois, o que restou da Semana de Arte Moderna, do modernismo brasileiro?

Talvez a consciência de que deveríamos estar comemorando o bicentenário da “independência” (as aspas ainda se justificam) com um pouco mais de engajamento nas grandes reformas estruturais, como jamais o fizemos, mais de 130 anos depois da Abolição?

Não tenho certeza de que esse sentimento de angustiante e prematuro “reformismo” seja unanimemente partilhado por todas as elites brasileiras, os grupos economicamente dominantes e os politicamente dirigentes.

Ele não o foi desde a supostamente verdadeira independência, quando Hipólito da Costa e José Bonifácio, nossos primeiros (dentre os pouquíssimos) estadistas, preconizavam a extinção imediata do tráfico negreiro e a eliminação gradual da escravidão africana. O reformismo foi derrotado em 1789-92, em 1817, em 1822-23, novamente em 1824, outra vez em 1842 e em diversas outras oportunidades, inclusive em 1888, 1889 e em 1922, não tanto na Semana elitista, mas na praia de Copacabana, nas revoltas de 1924 e até na “Revolução Burguesa” de 1930. 

O Brasil oferece fartos exemplos de eventos, processos e movimentos que se enquadrariam perfeitamente nesses exercícios historiográficos do tipo do What If? O que teria acontecido se...

Antonio Paim, um dos nossos grandes pensadores, que começou na vida como marxista e que acabou se convertendo a um liberalismo lúcido (e, portanto, saudavelmente cético), já tentou um exercício passavelmente similar no seu livro sobre alguns do momentos decisivos na história do Brasil [Momentos Decisivos da História do Brasil, 2000], mas não tenho certeza de que os momentos tenham sido aqueles ou de que as “escolhas” se apresentassem da maneira como ele o fez nessa obra e numa outra sobre as dificuldades de se reformar o Brasil [O relativo atraso brasileiro e sua difícil superação, 2000].

Resumindo: cem anos depois da Semana “fatídica” de 1922, continuamos com o mesmo sentimento que tiveram os dois grandes estadistas de um século antes, e que talvez tenhamos agora, no bicentenário, os “modernistas” que sonhamos sempre um pouco mais alto: esse sentimento talvez seja algo similar ao dos abolicionistas frustrados de 132 anos atrás, ao dos jacobinos republicanos decepcionados com a primeira década de desastres do novo regime, ao dos idealistas do Diretas Já e da Nova República, igualmente descontentes e talvez deprimidos pela voragem inflacionária e pelas revelações da gigantesca corrupção política, quem sabe os mesmos sentimentos que hoje continuam a angustiar os diversos movimentos que lutaram por impeachment e por uma “nova política”, aquela que deveria ter sido “ética” e não foi, nem antes, nem agora. 

Esse sentimento é uma mistura de déjà vu e de desesperança, quase uma desistência: o que exatamente temos a comemorar em 2022?

Em 1922 havia certa sensação de que algo poderia ser feito, a despeito das frustrações com as primeiras três décadas da República: valia a pena tentar sermos “modernos”, o que o mundo também tentava, com a Liga das Nações, apesar do terrível legado da Grande Guerra.

Em 2022, o que temos, após 37 anos da inauguração de uma “Nova República”, que já tinha envelhecido menos de dez anos depois de seu início? Existe algo a ser comemorado num bicentenário de retrocessos, ignorância e obscurantismo? De elogios a torturadores e de destruição do patrimônio natural? De subserviência a uma potência estrangeira, ou a um dirigente ainda mais ignaro e preconceituoso do que certos velhacos arrogantes do passado?

Em 2020, ainda não temos respostas a essas perguntas, a essas dúvidas.

Por enquanto só nos cabe retirar o ponto de interrogação do título de uma conferência feita pelo embaixador Rubens Ricupero na Academia Brasileira de Letras: “Um futuro pior que o passado? Reflexões na antevéspera do bicentenário da Independência” (29/08/2019; disponível em formato de vídeo no site da Academia, neste link: http://www.academia.org.br/eventos/um-futuro-pior-que-o-passado-reflexoes-na-antevespera-do-bicentenario-da-independencia).

Temos menos de dois anos para inverter essa nova marcha da insensatez.

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 3774: 20 de outubro de 2020

 

 

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