Leitores de uma certa idade ainda vão lembrar da Aliança para o Progresso, lançada em 1961 pelo presidente americano John F. Kennedy com o objetivo de fomentar o desenvolvimento econômico e social nas Américas. Bom, no dia 22 de outubro, Estados Unidos e Brasil juntamente anunciaram uma nova Aliança contra o Progresso, com elementos que fatalmente vão prejudicar os mesmos grupos sociais que finge proteger, mulheres e crianças.

Claro que o novo documento tem outro nome, inócuo e enganoso: Declaração de Consenso de Genebra. Mas foi assinado em Washington e não em Genebra — devido à ineptidão dos governos contratantes na luta contra a pandemia — e, apesar dos subterfúgios, seus propósitos reais estão claros. Sob o pretexto de “promover a saúde da mulher e fortalecer a família”, declara que “em nenhum caso o aborto deve ser promovido”. Ou seja, é uma tentativa de minar o trabalho da ONU, tanto na área dos direitos humanos como da Organização Mundial da Saúde, e limitar o direito da mulher de poder controlar sua própria saúde reprodutiva.

O enfoque deste “consenso”, que conta com o apoio de apenas 32 países, quase todos eles com governos retrógrados, está completamente errado, como mostra a própria experiência brasileira. A melhor maneira de garantir a saúde da mulher e da criança, e evitar o aborto, não é por meio de uma proibição absoluta. É por meio de um crescimento econômico mais equitativo, combinado com o planejamento familiar, fatores que a declaração menospreza.

Quando, nos anos 1970, viajei pelo Nordeste pela primeira vez, fiquei estarrecido com o tamanho das famílias, especialmente no sertão. Na época, não era incomum encontrar mulheres que tivessem dado à luz 12 ou até 16 vezes. Conversando com casais rurais pobres, as mulheres de 30 anos tinham cara de 60, o cálculo deles ficou evidente: devido à altíssima taxa de mortalidade infantil e a necessidade de muitas mãos na roça, era necessário ter muitos filhos. Encontrei o mesmo raciocínio na Amazônia e nas favelas.

Mas, com a chegada de melhores serviços médicos e mais oportunidades econômicas, abriram-se novos horizontes. Neste processo, o aborto virou um detalhe secundário. Por que recorrer às chamadas “fábricas de anjos”, sempre clandestinas, se existiam maneiras confiáveis, seguras e baratas de planejamento familiar? Agora com mais recursos, as famílias acabaram tendo menos filhos para poder investir mais neles.

Os dados do Banco Mundial comprovam o fenômeno. Em 1970, a taxa de fertilidade no Brasil era de cinco crianças por mulher — o dobro de um país desenvolvido como os Estados Unidos. Ano passado, num Brasil com duas vezes a população de 1970 e um PIB per capita quase três vezes maior, a taxa nem chegou a duas crianças por mulher. Em contraste, os países mais pobres na África continuam com taxas de fertilidade entre cinco e seis crianças.

Não pretendo dizer com isso que o problema do aborto esteja resolvido no Brasil. O país ainda enfrenta um índice de gravidez precoce muito alto. Além disso, tem casos trágicos como o da menina capixaba de 10 anos, estuprada repetidamente por um tio tarado, que em agosto, devido ao comportamento repugnante de ativistas radicais, teve de enfrentar uma via-crúcis quando tentou, como permite a lei, interromper a gravidez.

Não duvido da sinceridade da maioria dos ativistas contra o aborto. Mas a causa deles sofre de uma incoerência fundamental.

Sempre se fala do “direito à vida”, frase incluída no Consenso de Genebra, só que a preocupação dos ativistas parece terminar no momento em que o feto vira criança nascida. Quando fiz reportagens nas favelas e tugúrios da América Latina, constatei sempre a presença de ONGs laicas e padres católicos da linha da Teologia da Libertação. Ativistas do movimento contra o aborto? Nunca. Nem uma só vez e nenhum centavo de apoio ao bem-estar da criança.

E as igrejas? Com sua recente declaração a favor da união civil entre casais do mesmo sexo, o papa Francisco recebeu elogios quase universais. Tudo bem. Mas os gays são apenas minoria, enquanto as mulheres constituem a maioria da população mundial — e sobre questões como contracepção e aborto o Vaticano continua inflexível. E os evangélicos, base de apoio de Bolsonaro e principais beneficiários das novas diretrizes contra o aborto promulgadas no dia 27? Eles estão presentes nos bairros carentes, sim, mas se especializam em tirar dinheiro do pobre, não em doá-lo.

Ninguém gosta do aborto, nem as mulheres que recorrem ao procedimento como último recurso. Mas quando o “Consenso de Genebra” visa chegar ao “mais alto padrão de saúde atingível, sem incluir o aborto”, está simplesmente ignorando a vida real.

Larry Rohter, jornalista e escritor, é ex-correspondente do “New York Times” no Brasil e autor de “Rondon, uma biografia”