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segunda-feira, 26 de outubro de 2020

Mini-reflexão sobre o estado (pouco) civilizatório do Brasil - Paulo Roberto de Almeida

 Mini-reflexão sobre o estado (pouco) civilizatório do Brasil

Paulo Roberto de Almeida


Existe uma profunda incompreensão, nos meios políticos e da mídia, quanto ao que representa Bolsonaro em termos de Weltanschauung, ou seja, de concepção do mundo, inclusive para ele próprio, que não é suficientemente inteligente para perceber o que ele mesmo representa, não para a superfície das coisas, essa superestrutura da vida política que aparentemente divide certas lideranças representativas, mas sim o próprio tecido social, a organização da sociedade.

Vamos sair da epiderme das coisas que mobilizam a atenção dos comentaristas conjunturais da atualidade política.

Não se trata apenas de Salles, que ganha mais uma sobrevida no governo e que não tem nada a ver com uma suposta “ala ideológica” do governo: se trata de tudo aquilo que toca no âmago da concepção do mundo de Bolsonaro, e isso concerne saúde, educação, DH, relações exteriores, entre outros componentes da sociedade real, ou seja, vai muito além do mundinho da política ordinária. 

Os militares, não só as FFAA, mas as forças de segurança como um todo, embarcaram na sustentação de um homem que não está destruindo, sem ter consciência do processo, apenas as instituições superficiais da política, mas a própria sociedade. Ele sequer percebe a dimensão de sua ação, pois não possui, nunca possuiu, nenhum “plano de voo” sobre o que pretende para si ou para a sociedade.

O homem não é apenas um poço de contradições, um conjunto de instintos primitivos, que sequer lhe afloram à consciência e não encontram tradução exata no nosso campo analítico, que busca organizar as ações dos homens de maneira racional. Bolsonaro pertence a um outro universo, para o qual não existe cartografia possível ou identificável.

Não existe apenas uma simples “crise da democracia” brasileira ou meramente “das instituições republicanas”, numa concepção superficial do que seja o Brasil, esse mundinho conectado, de um pequeno grupo de privilegiados que somos todos aqueles, nós, privilegiados, que participamos deste tipo de debate político.

O Brasil se aproxima (talvez já esteja) de um estado de anomia social, ou societal (mas que é sobretudo mental), que pode obstar, ou inviabilizar, um processo de desenvolvimento abrangente da sociedade, pois que dificulta o diagnóstico correto dos principais problemas, e consequentemente o estabelecimento de prescrições adequadas para os seus principais problemas, que não são apenas os da organização política da sociedade, e sim o próprio substrato civilizatório.

Alguns “humoristas filosóficos” brincavam com essa característica brasileira, que era a de passar do atraso do passado (escravocrata, desigual) para a decadência do presente, sem nunca ter alcançado a modernidade. Talvez eles tenham razão, mesmo se estamos falando apenas de conceitos basicamente subjetivos como esses de atraso e modernidade. 

A vida real das pessoas, dos milhões de “cidadãos” (o termo pouco se aplica) concretos do Brasil, além e abaixo do mundinho de privilegiados que somos nós, não é tocada pelo frenesi de notícias, de brigas e composições superficiais da política rastaquera que é essa que seguimos, não se move no presente estado de anomia da sociedade brasileira. 

Reproduzindo um poeta-compositor não muito apreciado pelos atuais “donos do poder”, nós brasileiros, “caminhamos cegos pelo continente”, sem perceber que somos subtraídos em “tenebrosas transações”.

Nem o próprio ator principal desse processo tem visão clara ou a consciência do que ele próprio representa, ou do que se passa no Brasil, na região e no mundo. Não é nem um um ator, um boneco, ou um robô manipulado por poderosas forças conspiratórias como querem acreditar alguns idiotas da própria mistificação construída para viver à custa dos demais (como aliás fazem elites dominantes e estratos dirigentes).

O fato é que embarcamos numa “jangada de pedra”, que anda à deriva, sem GPS, sem portulanos, sem sequer saber o que desejamos para o país ou o que queremos para nós próprios. Mas nossos desejos, os desta camada de privilegiados que somos, não têm muito a ver com as necessidades da imensa maioria do povo brasileiro, que só busca sobreviver, e dar uma vida melhor para os filhos. 

Nossa crise civilizatória não terá desfecho rápido, nem soluções fáceis: estas passam por certo grau de avanços de educação e de conhecimento na maioria da população, de certos progressos cívicos que, infelizmente, não fomos capazes de criar, ou prover para a maioria, nos últimos 200 anos de nação independente e de Estado mais ou menos constituído. 

Sorry, mas não será para esta, ou sequer para a próxima geração; vai demorar um pouco mais. Os obstáculos não são técnicos, pois os meios estão à nossa disposição. Eles são sobretudo mentais, de compreensão da realidade, e estes são mais difíceis de superar.

Paulo Roberto de Almeida 

Brasília, 26/10/2020

PS: Não creio que tudo isso o que escrevi acima seja apenas o pessimismo de um sociólogo aprendiz; creio que representa o realismo de um dedicado, e longevo, observador da realidade, do Brasil e do mundo. Reflitam vocês também...

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