Editorial ESTADAO
Orgulho de ser pária
O Estado de S. Paulo, 26 Oct 2020
Sob as ordens de Jair Bolsonaro, e de Ernesto Araújo, guinada na política externa colocou o Brasil na inédita posição de pária.
Que o chanceler Ernesto Araújo é uma desonra para o Itamaraty não é novidade. No seu tresloucado discurso de posse no Ministério das Relações Exteriores, em 2 de janeiro de 2019, o ministro já dissera a que vinha e, desde então, tem trabalhado quase exclusivamente para transformar a Casa de Rio Branco em uma espécie de casamata da chamada ala ideológica do governo de Jair Bolsonaro. Em sua defesa, não se pode dizer que Araújo não esteja cumprindo bem a missão que lhe foi dada.
Sob as ordens do presidente Jair Bolsonaro e a diligente condução de seu chanceler, a guinada empreendida na política externa para “libertar” o País do “jugo esquerdista”, do “marxismo cultural”, do “globalismo” e, pasme o leitor, do “covidismo” colocou o Brasil na inédita posição de pária no cenário internacional. De dois anos para cá, o Brasil deixou de ser um interlocutor relevante em uma miríade de temas caros à comunidade das nações, como meio ambiente, cooperação científica, ações humanitárias e comércio.
Até aqui, Ernesto Araújo vinha, a seu modo, rebatendo as críticas à subversão da tradição diplomática brasileira e à nova e inglória condição de pária internacional do País aludindo à suposta resistência de alguns setores do Ministério das Relações Exteriores, que estariam “contrariados” com as mudanças que empreendeu na pasta, e às pressões de países não alinhados e organismos multilaterais, como a própria Organização das Nações Unidas (ONU), entre outras teorias conspirativas que servem mais ao anedotário do que à real compreensão da dimensão dos males causados à reputação do Brasil no plano internacional. De acordo com este obtuso raciocínio, o País não seria um pária, mas teria se posicionado, isso sim, no que Araújo classifica como “o lado certo da História”.
Esse discurso mudou. Ao que parece, o ministro Araújo decidiu assumir de vez que não só o País é um pária, como há razões para se orgulhar da condição.
Ao participar da cerimônia de formatura de diplomatas no Itamaraty, dia 22 passado, Ernesto Araújo afirmou que “é bom ser pária”. Colocando o Brasil como uma das únicas vozes a proclamar a liberdade no mundo, ao lado dos Estados Unidos, o chanceler afirmou que, “se isso faz de nós um pária internacional, então que sejamos esse pária, que sejamos esse Severino que sonha e essa Severina que reza”.
O chanceler aludiu a João Cabral de Melo Neto, poeta e diplomata que foi escolhido o patrono da turma de formandos. “Modestamente, eu também considero-me as duas coisas, poeta e diplomata.” Pobre João, logo em seguida atacado em sua memória pelo inacreditável chefe da diplomacia brasileira. Após dizer que João Cabral tinha “uma grande sensibilidade para o sofrimento do povo brasileiro”, Araújo afirmou que a resposta do poeta a este “gigantesco e premente problema” se dirigiu para o que chamou de “lado errado”, o “lado do marxismo e da esquerda”. Uma vez mais, a referência ao “lado certo da História” que tanto apraz aos liberticidas.
Entre referências supostamente eruditas e parvoíces como “todo ‘isentão’ é um escravo de um marxista defunto” que permearam o discurso, o ministro fez um balanço de sua gestão à frente do Itamaraty, enumerando o que, em sua visão, seriam conquistas advindas da inflexão na política externa. “Esta política externa Severina, digamos assim, tem conseguido resultados. Concluímos acordos comerciais com as maiores economias do mundo, como a União Europeia e os Estados Unidos, e restauramos as relações com países de alta tecnologia, como Israel e Japão.”
O acordo comercial entre União Europeia e Mercosul está ameaçado pelos desatinos do governo na condução da crise ambiental. Com os Estados Unidos, ainda não deixou o campo das intenções. E como se restauram relações que jamais foram rompidas permanece um mistério.
Oxalá a turma de formandos do Itamaraty inspire-se no tão atacado passado da instituição e um dia ajude a reconstruir a reputação do País.
Que os formandos do Itamaraty se inspirem no passado para reconstruir a reputação do País.
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