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terça-feira, 5 de maio de 2015

Geoestrategia do Atlantico Sul - resenha de Herve Couteau-Begarie - Paulo Roberto de Almeida (1986)


GEOESTRATEGIA DO ATLANTICO SUL:
UMA VISAO DO SUL

Paulo Roberto de Almeida
Revista Brasileira de Política Internacional
(Rio de Janeiro: vol. XXIX, n. 115-116, 1986/2, pp. 131-138).

Sumário:

Tomando como ponto de partida analítico o conflito global entre as duas grandes potências, o pensamento geopolítico norte-atlântico tem tendência a negligenciar as dimensões propriamente regionais da segurança estratégica no Atlântico Sul e os aspectos propriamente políticos do equilibrio de forças nessa região. A superestimação da ameaça soviética no terreno militar e o espantalho de um estrangulamento econômico do Ocidente constituem os elementos mais característicos dessa geopolítica from above. Uma visão a partir do Sul tenderia a enfatizar, de sua parte, a  multipolarização dos conflitos políticos e miltares na região sul-atlantica e a privilegiar a passagem de um cenário de confrontação geopolítica a uma estratégia regional de cooperação política e econômica.

Plano do Trabalho:
1. Geopolítica do Atlântico Sul: A Visão do Norte
2. Presença Militar na Região: Ameaça à Leste
3. O Abastecimento em Matérias Primas: Temor à Oeste
4. Da Geoestrategia à Cooperação: Uma Visão do Sul

Referência de base:
Hervé Couteau-Bégarie:
Géostratégie de l'Atlantique Sud
(Paris, PUF, 1983)

1. GEOPOLITICA DO ATLANTICO SUL: A VISAO DO NORTE
A inconsistência das doutrinas baseadas na retaliação maciça produziu, ao longo dos anos setenta, um gradual retorno às estratégias convencionais de enfrentamento localizado e limitado e à reavaliação, nesse contexto, do papel reservado às forças navais. Crescia, no mesmo momento, o poder naval soviético, que passou a ser considerado, pela Aliança Atlantica, como a “principal ameaça para a segurança dos mares”. Um Grupo de Trabalho do Conselho Atlântico dedicou-se especialmente ao estudo dessa questão, elaborando, no final da década, um relatoório completo sobre o desafio naval soviético que ainda hoje permanece uma fonte indispensável de referência. 1
Sintomaticamente, pouca atenção é dada nesse trabalho ao Atlântico Sul, listado em último lugar numa série de cinco possíveis “teatros de operações” para enfrentamentos navais, ao lado do Atlântico Norte, do Mediterrâneo, do Índico e do Pacífico. Ao criticar essa negligência dos especialistas em poder marítimo, o estrategista e cientista político francês Hervé Couteau-Bégarie formula a hipótese, em seu importantíssimo estudo sobre a Géostratégie de l’Atlantique Sud, de que essa indiferença seja em primeiro lugar devida a fatores propriamente ideológicos, ou seja, a existência nos dois lados do Atlântico Sul de países marcados por ditaduras militares ou por um regime racista condenado ao ostracismo mundial. 2 Sua visão, neste particular, parece muito marcada pela voga de estudos sobre os regimes militares latino-americanos, pois o processo de redemocratização no cone sul já apresentava uma certa consistência quando seu livro foi publicado em meados de 1985, e não cessou de aprofundar-se desde então, sem que isso pudesse representar qualquer mudança significativa no status estratégico-militar do Atlântico Sul para os países ribeirinhos ou para as superpotências navais. 3
O obstáculo ideológico é assim relativamente incongruente, pelo menos deste lado do Atlântico Sul, o que nos leva aos fatores propriamente geográficos da marginalização do Atlântico Sul nos planos estratégicos dos principais poderes navais. Couteau-Bégarie não deixa de considerar a posição “excêntrica e finalmente secundária” do Atlântico Sul em relação aos demais espaços oceânicos, caráter ainda mais reforçado depois da abertura de Suez e do canal do Panama. 4
Mas, não é apenas a geografia que condena o Atlântico Sul à sua condição de “quinto teatro de operações”, mas sobretudo o próprio carater “periférico” da região, em termos de sua participação nos grandes fluxos do comércio internacional ou sua importância estratégica para o equilíbrio do poder mundial. O tráfico marítimo comercial é, nessa região, rarefeito e secundário, sendo importante sobretudo no sentido sudeste-noroeste entre o Cabo da Boa Esperança e as Ilhas de Cabo Verde, dispersando-se a partir daí em duas rotas bem frequentadas, uma em direção ao Mediterrâneo e Europa do Norte, outra em direção à costa leste dos Estados Unidos. O Atlântico Sul sempre foi, por outro lado, o menos militarizado de todos os oceanos, permanecendo ainda hoje ao largo dos conflitos entre as grandes potências navais: foi preciso que entrassem em cena fatores históricos essencialmente contingentes, derivados de conflitos militares relativamente imprevisíveis, para que frotas armadas passassem a frequentar suas duas margens, de um lado com a instalação da Fortress Falklands, de outro com o estacionamento irregular de navios soviéticos em Angola. Ainda assim, esses dois conflitos devem ser considerados numa perspectiva sobretudo regional, extraindo sua dinâmica interna de fatores propriamente locais, e não no quadro de um suposto enfrentamento global entre potências marítimas rivais, o que po de ser confirmado pela diminuta presensa nuclear ostensiva de uma ou outra das duas grandes frotas bélicas da atualidade.

Desde a publicação do livro pioneiro de Alfred T. Mahan em 1890, The Influence of Sea Power upon History, e do estudo do já conhecido pensador alemao Karl Haushofer em 1924, Die Geopolitik des Pazifischen Ozeans, o pensamento geopolítico busca integrar os espasos marítimos a sua conhecida equação “Espaço é Poder”. 5 O estudo já referido de Herve Couteau-Bégarie é – com a notável exceção do livro editado por Carlos Moneta, Geopolitica y Politica del Poder en Atlantico Sur 6 – o primeiro ensaio de conjunto sobre os problemas geopoliticos e militares, ou, como ele prefere chamar, sobre a geoestratégia dessa região marítima. O autor já tinha se notabilizado pela publicação, em 1983, de uma pequena mas consistente monografia sobre La Puissance Maritime Soviétique, 7 tendo prometido a continuação por meio de um estudo sobre as potências marítimas do Índico e do Pacífico, além de um trabalho, em colaboração, sobre as “geopolíticas latino-americanas”.
Segundo suas próprias palavras, o objetivo de Géostratégie de l’Atlantique Sud “é o de estudar o desenvolvimento dos meios militares nessa região do mundo com vistas a identificar suas implicações para a política das grandes potências. O Atlântico Sul não é portanto considerado como um sistema fechado, mas como um elemento de um conjunto planetário. Neste nível de análise, apenas dois países contam: os Estados Unidos e a União Soviética”. 8 O especialista francês, cujo excepcional poder de síntese deve ser prontamente reconhecido, partilha, neste livro, da tendência do pensamento geopolítico tradicional a pensar as problemáticas regionais sob o ângulo dos enfrentamentos globais, dominados inquestionavelmente, em nossa época, pela oposição irredutível entre os EUA e a URSS.
Ora, como justamente observou Alvaro Vasconcelos em seu artigo no número inaugural de Estratégia, “se o mundo é cada vez mais acentuadamente bipolar à dimensão da estratégia global, é tambem, paradoxalmente, cada vez mais multipolar à dimensão regional”. 9 É essa tendência a considerar os problemas da região sul-atlantica sob a ótica da “política de poder”, e num contexto essencialmente bipoIar, que caracteriza o estudo de Couteau-Bégarie. Se a ênfase nas questões de segurança e de estratégia militar, inclusive naval, constitui a pedra angular dos estudos geopolíticos, nada diz que essa pretendida “ciência” da projeção geográfica dos Estados deva ignorar o conceito historico que Wolfram Eberhard chamou de world time, 10 para congelar as relações de poder entre os Estados sob um mesmo pattern de comportamento que seria transhistórico e auto-aplicável.
Esse congelamento da História – em contradição talvez com uma geopolítica mais “esclarecida” – está por exemplo presente na seguinte passagem retro-prospectiva de Géostratégie: “as antigas potências coloniais praticamente desertaram [do Atlântico Sul] sem que tenha aparecido um verdadeiro ‘grande’ regional: mesmo o Brasil é apenas um grande potência em perspectiva [en devenir]. Ele reivindica [sic] uma hegemonia regional, mas ele ainda não a exerce” (p. 15). Além do “pecado venial” de praticar uma geopolítica historicamente “congelada”, Couteau-Bégarie parece operar aqui uma transposição da doutrina do “destino manifesto” no quadro de uma “política de poder” que deveria ser inexoravelmente assumida pelo Estado brasileiro, em sua atual e futura política externa regional. A geopolítica não consegue conviver com “vazios de poder”, reais ou supostos: ela estará sempre à procura de “potências em perspectiva” para preencher seus próprios “vácuos” teóricos.
Na concepção geoestratégica dos especialistas norte-atlânticos, haveria um “vácuo de poder” no Atlântico Sul, cujo preenchimento deveria ser assegurado por um arranjo multilateral calcado no modelo da OTAN ou por garantias estratégicas assumidas bilateralmente, no quadro de um “relacionamento especial” unindo a principal potência ocidental e um “grande regional”. A importância do Atlântico Sul é definida de maneira unilateral na visão estratégica ocidental, de que e exemplo a seguinte passagem do livro de Couteau-Bégarie: “o Atlântico Sul voltou a ser [depois da crise de Suez] uma artéria vital de comunicações; ele é cercado de países importantes para o Ocidente; enfim, ele poderia adquirir um lugar na [estratégia de] dissuasão, com o aparecimento de submarinos lança-mísseis em suas águas” (p. 57; nós sublinhamos). Não parece ocorrer aos propugnadores dessa visão a possibilidade dos países sul-atlânticos defenderem uma visão própria de seus interesses nacionais nessa região, garantindo a segurança e a liberdade de navegação através dos instrumentos do Direito Internacional e não por meios de pactos militares, que aliás soem constituir a exceção e não a regra na maior parte dos oceanos.
O pensamento geoestratégico identifica no Atlântico Sul todos os elementos da tetralogia das missões atribuidas às grandes frotas navais: domínio dos mares, projeção de potência, presença naval e dissuasão estratégica, este último apenas em esboço. “Mesmo se sua importância não alcança a do Oceano Índico ou a do Pacífico, o Atlântico Sul ocupa um espaço próprio na estratégia marítima. Mas, até uma data recente, apenas os soviéticos parecem ter se conscientizado plenamente disso” (p. 71). Coutau-Bégarie partilha aqui da visão norte-americana do problema, que parece caracterizar-se por um pessimismo exagerado na construção de cenários de ameaças à segurança marítima e ao aprovisionamento em matérias-primas para melhor justificar um military building acrescido. Uma consideração adequada de cada um dos elementos importantes em jogo, de um ponto de vista sul-atlântico, poderá eventualmente introduzir um pouco mais de equilibrio nessa visão geoestratégica do Atlântico Sul.

2. PRESENÇA MILITAR NA REGIAO: AMEAÇA À LESTE
O controle das principais artérias de comunicação constitui a mais importante e inadiável tarefa das frotas ocidentais. A presença de navios soviéticos na região sul-atlântica representa, para Couteau-Bégarie, “uma séria ameaça em caso de conflito”; ora, como esses navios “sont déjá sur place” (p. l9), é preciso pensar no pior: “Deve-se esperar ataques simultâneos em diversos pontos. A luta pelo domínio dos mares vai ocupar toda a situação estratégica no Atlântico Sul. Esta é a primeira missão das marinhas da OTAN, a mais importante, a mais constante, em face da ameaça permanente” (p.64). Dada a “insuficiência das frotas da OTAN”, deve-se pensar nas possibilidades de uma “defesa ocidental” através da “cooperação com os países ribeirinhos”, cuja missão, na visão norte-atlântica, deveria ser a de integrar seus próprios planos estratégicos nos esquemas defensivos concebidos pela primeira potência ocidental.
É preciso, em primeiro lugar, observar que a presença naval soviética no Atlântico Sul, embora tenha crescido no período recente, está longe de justificar a inquietação despertada pelos estrategistas ocidentais. A região é, de todas, a mais distante dos pontos de apoio da frota soviética e a que apresenta o maior número de dificuldades logísticas e estratégicas, o que tornaria altamente custoso qualquer esforço da URSS se decidisse interromper ali as rotas de suprimento dos países da OTAN. O próprio Comite de Defesa da União da Europa Ocidetal reconheceu o fato de ser “o Atlântico Sul a área mais improvável para uma ameaça naval [soviética] à navegação aliada”. 11 Deve-se igualmente lembrar que, em caso de necessidade, a aliança ocidental conseguiria reunir na região, num espaço reduzido de tempo, um número razoável de navios e submarinos, com o correspondente apoio aéreo e logístico. Não se conhece, por fim, qualquer tentativa soviética no sentido de interromper o fluxo normal das rotas marítimas ocidentais, no Atlântico Sul ou alhures, e é razoavel supor que uma tal iniciativa só seja concebível no quadro de uma séria deterioração no padrão global do relacionamento bipolar.
Hervé Couteau-Bégarie reconhece que os riscos de um ataque soviético contra as linhas de comunicação ocidentais nessa região são extremamente reduzidos, “mas, no caso em que a dissuasão fracassasse, o cenário de ataque ao tráfico ocidental é um dos que comporta o menor risco de escalada, pois uma batalha no mar não provoca perdas colaterais” (p. 98). Na verdade, um eventual fracasso da dissuasão comportaria um cenário muito mais complexo que o imaginado pelo especialista francês, mas, mesmo admitindo-se a hipótese de uma resposta marítima soviética, o Atlântico Sul é a região que menos se presta a um ataque diversionista da frota soviética. De toda forma, a Marinha norte-americana, e por extensão a aliada, parece dispor de todas as condições para deter, mesmo preventivamente, qualquer ação soviética nessa ou em outra região, mantendo acompanhamento permanente da localização de navios e submarinos soviéticos em diversos oceanos.

3. O ABASTECIMENTO EM MATÉRIAS-PRIMAS: TEMOR À OESTE
A ameaça suposta ou real contra as linhas de comunicação marítimas do Ocidente não é tudo porém, pois “a estratégia [da URSS] comporta um segundo painel, muito mais ambicioso e cujá eficácia poderia se revelar bem mais temível: a busca do controle das matérias-primas” (p. 99). A crer no especialista frances, que retoma um dos temas mais conhecidos na literatura sobre o assunto, “Moscou busca atualmente incorporar à sua órbita os principais países produtores de matérias-primas” (p. 99).
O temor ocidental é tanto maior que a história e a geografia já pareciam ter assegurado ao Atlântico Norte um seguro monopólio sobre os recursos do Sul. “O geopolítico Haushofer foi sem dúvida o que melhor observou a verticalidade do sistema internacional. Ele não deixou de sublinhar a continuidade entre a Europa e a África (a ‘Eurafrica’) e entre as duas partes do continente americano (a ‘PanAmerica’). Isto é ainda mais verdadeiro na atualidade. A zona sul-atlântica é, antes de mais nada, um fantástico reservatório de matérias-primas” (p. 64; nós sublinhamos). Mas, o Atlântico Sul não serve apenas ao simples aprovisionamento em materiais estratégicos para as economias ocidentais: “Os países do Atlântico Norte não poderiam viver sem sua periferia latino-americana ou africana” (p. 66). “Os países do hemisfério sul não são apenas produtores de matérias-primas, eles são também uma área de expansão econômica e cultural sem a qual o mundo norte-atlântico seria asfixiado. (...) Ora, a conservação da África e da América Latina passa antes de mais nada pelo controle das águas adjacentes, e em primeiro lugar, do Atlântico Sul” (p. 67; nós sublinhamos). Não parece vir à mente dos geoestrategistas norte-atlânticos que os países do Sul possam pretender controlar eles mesmos seus próprios recursos minerais, colocando suas matérias-primas a serviço de seu próprio desenvolvimento nacional, ou que eles não têm exatamente como um de seus objetivos estratégicos o de servir de “área de expansão” para os países ocidentais. Ao ler Couteau-Bégarie fica-se na dúvida sobre se o famoso lebensraum representou apenas e tão somente uma passageira deformação nazista da geopolítica ou se ele é um componente indispensável de suas formulações ideológicas.
A visão alarmista ocidental sobre a dependência do Atlântico Norte em relação às matérias-primas estratégicas provenientes do Sul originou-se da crise política e econômica criada com o embargo petrolífero de 1973 e ampliou-se com a intervenção soviética por ocasião da independência angolana em 1975. Acredita-se, por um lado, que os assim chamados “minerais estratégicos” da África austral representarão, nos anos 80 e 90, o que o petróleo representou nos anos 70. Hervé Coutau-Bégarie considera, por outro lado, que a guerra de Angola marca o tournant decisivo no desenvolvimento da penetração soviética nessa área africana: “No total, o assunto angolano se apresenta como um deslumbrante sucesso para a União Soviética” (p. 85). Nenhuma dessas crenças parece encontrar fundamento na realidade.
O cientista político Bruce Russett, após rigorosa análise quantitativa, conclui, por exemplo, que a visão alarmista sobre a dependência mineral do Ocidente, ademais de ser baseada em fundações conceituais muito primitivas, não encontra justificativa real nos dados disponíveis sobre o aprovisionamento estratégico dos principais países desenvolvidos capitalistas. O risco da dependência de fontes externas para a maior parte das matérias-primas foi simplesmente exagerado, pelo menos para os Estados Unidos. 12 Outro especialista norte-americano considera que “a dependência de importações da África austral e o problema do acesso ininterrupto aos suprimentos minerais não representam ameaças críticas ou estratégicas imediatas para os Estados Unidos e seus aliados. E a ameasa principal não vem da União Sovietica”. 13 Para esse autor, uma eventual ameaça nessa área, traduzindo-se por interrupções caóticas e imprevisíveis na produção ou fornecimento de minerais estratégicos, poderia ocorrer não em conexão com uma intervenção soviética, mas devido a problemas internos nos países produtores: a instabilidade doméstica, e não a ameaça soviética, representa assim o perigo maior. 14 De toda forma, “os Estados Unidos poderiam perder uma parte substancial de suas importações de minerais estratégicos sem que isso significasse qualquer ameaça a sua segurança nacional”. 15 Para o mesmo analista, a medida mais importante para garantir e aumentar a segurança mineral do Ocidente está no terreno da política externa e não no da segurança estratégica: “Os Estados Unidos deveriam usar a diplomacia para tentar prevenir conflitos inter-estatais nas regiões produtoras de minerais”. 16 Outras medidas incluiriam a estabilização dos preços, a assistência econômica e ajuda bilateral aos fornecedores doTerceiro Mundo.
A outra vertente da “guerra de recursos” seria dada pela “modificação radical” da estratégia soviética a partir de 1975: apoiando-se na intervenção angolana, a URSS teria passado a buscar integrar suas novas “aquisições” num novo “Terceiro Mundo”, seguindo uma política em dois eixos: a) o país protegido deve operar uma “restruturação idêntica” segundo o modelo socialista; b) o país protegido deve custar o menos possível e render o maximo possível. 17
Não é contudo o que parece indicar a política “terceiro-mundista” da URSS nos últimos cinco ou seis anos, e particularmente desde a morte de Brejnev em novembro de 1982. Como demonstra Francis Fukuyama, em artigo na Foreign Affairs, passou a época das generosas ofertas de ajuda econômica e militar aos “países liberados”: o programa do 27° Congresso do PCUS, encerrado em outubro de 1985, consigna apenas a “profunda simpatia” com as aspirações dos povos que estão se libertando do jugo colonial, uma frase tépida para indicar os limites da assistência soviética a seus clientes do Terceiro Mundo. 18 Os Estados “orientados para o socialismo” devem, segundo o programa do partido, desenvolver suas economias “por meio de seus próprios esforços”, sendo-lhes implicitamente recomendado “aprofundar a cooperação com os países que percorrem a via capitalista”. 19 A desilusão com os resultados obtidos no Terceiro Mundo e a consequente proposta de “desengajamento” são expressamente reconhecidos no recentemente divulgado manifesto da “oposição clandestina” ao PCUS, que reproduz na verdade o pensamento oficioso sobre a matéria: “A política externa soviética tem experimentado sérios reveses em países que foram colonias do Ocidente. Apesar dos vastos recursos investidos na Indonésia, no Egito, na Argélia e no Iraque, a URSS não obteve nenhum dividendo político ou econômico”. 20
É altamente improvável, portanto, que Moscou disponha de meios para, ou tenha a intenção efetiva de, conduzir uma “guerra de recursos” contra o Ocidente com base na intervenção direta em países da África austral: ao contrário de pensar na asfixia econômica do Ocidente, a URSS procura desesperadamente intensificar suas relações econômicas e os vínculos de cooperação com a zona capitalista. Uma “guerra de recursos”, aliás, não apenas iria contra os próprios interesses da URSS, como afetaria igualmente interesses substanciais de seus aliados socialistas e parceiros “não-alinhados”, além de, mais uma vez, só ser concebível no contexto de um enfrentamento global entre os dois campos.
Contrariamente, portanto, ao que sugeriu Peter Wiles em sua tese sobre o novo “Terceiro Mundo” soviético, as tendências indicam que a postura da URSS em relação aos países em desenvolvimento caminha no sentido de relativizar o impeto da mudança revolucionária em direção ao “socialismo” e de reconhecer o próprio potencial transformador da “via capitalista”. As evidências são tanto de carater teórico, como o demonstra uma recente resenha da literatura soviética a esse respeito, 21 quanto de natureza prática, de que são exemplos diversos discursos e pronunciamentos oficiais soviéticos do período recente, a começar pelo próprio Gorbachev. Isto não quer dizer que a URSS deixará de aproveitar as oportunidades locais que se abram à sua ação no Terceiro Mundo, e na África austral em particular, mas suas prioridades atuais são bem diferentes de uma política de “guerra total” contra o Ocidente.

4. DA GEOESTRATEGIA À COOPERAÇÃO: UMA VISAO DO SUL
A segurança, na visão geopolítica, tende a ser alcançada não por meios políticos e diplomáticos, mas através da dissuasão estratégica. O argumento não deixa de ter sua legitimidade, tanto teórica quanto prática, e parece justificado em face do conhecido quadro de enfrentamento bipolar à dimensão global. O problema começa quando, num quadro regional caracterizado por baixo coeficiente de polarizações dicotômicas e, portanto, com tendências à multipolarização, se pretende introduzir à força o cenário da dissuasão estratégica. O Atlântico Sul corre hoje esse risco, menos provavelmente pelo desenvolvimento de uma dinâmica própria de conflitos inter-estatais do que pela vontade dos ideólogos da geoestratégia.
Hervé Couteau-Bégarie reconhece implicitamente a realidade da multipolarização no Atlântico Sul, quando afirma que “o desenvolvimento das forças navais latino-americanas não pode ser considerado como uma resposta ao aparecimento de navios soviéticos na região. Ele decorre mais exatamente de fatores locais que de modificações no equilibrio planetário de forças” e, dentre esses fatores, o autor alinha a busca de “prestígio”, a defesa da soberania, o “efeito induzido” de outras frotas vizinhas ou mesmo “ambições hegemônicas, bastante nítidas na América Latina, onde se digladiam antagonismos irredutíveis” (pp. 17-18). Mas, o cenário global, segundo ele, é dominado pelo surgimento dos submarinos dotados de mísseis estratégicos – “o elemento mais estável dos arsenais” – acarretando a militarização ampliada dos oceanos. Nesse contexto, o Atlântico Sul é inevitavelmente elevado “à categoria de zona de patrulha para os submarinos estratégicos” (p. 68).
Assim, a despeito da reconhecida multipolarização dos cenários regionais – evidente, entre outros motivos, pela multiplicação de conflitos locais no Sul – a estratégia da dissuasão global é transposta para o Atlântico Sul, observando-se mesmo uma tentativa de reverticalização nos espaços geográficos considerados fundamentais pela superpotência americana. A visão americana da problemática do Atlântico Sul, assumida inteiramente por Couteau-Bégarie, caracteriza-se tanto pela exacerbação do potencial de conflitos globais nessa área, como pelo total desconhecimento das aspirações e preocupações específicas dos países ribeirinhos, considerados como meros instrumentos da defesa dos interesses ocidentais na região. Condizente com essa visão, cogitou-se no passado – e talvez alguns ainda mantenham a ilusão – não apenas da constituição de uma OTAS alinhada com sua irmã do Norte, mas também de um delírio geopolítico popularizado sob o nome de “Aliança de todos os Oceanos”, nova versão da Liga Ateniense, que pretenderia ser uma transposição da OTAN em escala mundial. 22 O alinhamento com os EUA, nesse contexto, é considerado como algo natural, ou mesmo como uma obrigação dos países do hemisfério sul, assim como a garantia de acesso ocidental às fontes de recursos estratégicos, em primeiro lugar as matérias-primas minerais. A estabilidade política dos países da região sul-atlântica é considerada, nessa visão, como meramente funcional para os objetivos da segurança estratégica do Ocidente, não possuindo valor próprio em termos de requisito adequado para as metas de desenvolvimento econômico, bem-estar social e democracia política nos países contemplados.
A segurança econômica e política dos países ribeirinhos do Atlântico Sul não pode, é certo, dispensar um nível adequado de segurança militar, mas esta, por sua vez, nunca será completa se persistirem focos de tensão e de agitação decorrentes não de uma ameaça externa mas das próprias condições de subdesenvolvimento e atraso econômico-social. Concretamente: a penetração soviética no Atlântico Sul é contraria aos interesses de todos os países da região, mas enquanto para as duas superpotências a zona sul-atlântico é apenas um cenário a mais, e necessariamente secundário, no quadro da confrontação global, para as nações ribeirinhas ela é uma area essencial e prioritária para seus próprios objetivos nacionais de paz e desenvolvimento.
Aos países do Atlântico Sul interessa a segurança da região não em termos de sua integração à dissuasão estratégica, mas em termos de mantê-la à margem das tensões externas, de modo a promover as condições favoráveis ao desenvolvimento da cooperação horizontal entre os países que a margeiam. Do ponto de vista da segurança, tanto a Carta da OEA, quanto o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca, no âmbito da América Latina, contêm disposições relativas à segurança dos Estados Membros, aplicáveis dentro ou fora da área específica coberta por esse último Tratado. Não parece, assim, haver necessidade de uma organização de defesa específica para garantir a segurança do Atlântico Sul, do ponto de vista da América Latina. Qualquer tentativa nesse sentido, aliás, daria à totalidade dos Estados participantes a mera função de coadjuvantes menores em face do grande irmão do Norte, aproximando portanto a organização proposta mais do modelo do Pacto de Varsóvia do que do da OTAN. Em todo caso, nada há que impeça a continuidade de empreendimentos bilaterais de cooperação naval – como as operações Unitas – ou mesmo projetos multilaterais fora do marco de um tratado específico como ocorreu com a “Ocean Venture 81”. Qualquer esquema de cooperação entre os países ribeirinhos do Atlântico Sul e os parceiros do Norte – os EUA ou a OTAN – só poderia concretizar-se adequadamente a partir do reconhecimento dos interesses específicos dos países da área e considerando seus ob;etivos nacionais em primeiro lugar; em uma palavra, cabe aos interesses do Atlântico Norte coordenar-se com os do Atlântico Sul e não o contrário.
A questão essencial para os países do Atlântico Sul é a do estabelecimento de uma presença própria, autônoma e independente na região, exatamente para atingir aos objetivos do desenvolvimento e da cooperação regional. Não pode haver qualquer incompatibilidade entre esses objetivos e o interesse ocidental na região e é com base neles, portanto, que se deve buscar as formas de cooperação mais adequadas entre os países do Norte e os do Sul. Em síntese, as possibilidades de cooperação devem estar subordinadas, como não poderia deixar de ser, aos interesses políticos, econômicos e estratégicos próprios e permenentes dos países do Atlântico Sul. À estratégia geopolítica da dissuasão, o Atlântico Sul deve opor a estratégia política da cooperação e do desenvolvimento.

Notas e Referências Bibliográficas:

1. Paul H. Nitze, Leonard Sullivan, Jr., and the Atlantic Council Working Group on Securing the Seas: Securing the Seas: the Soviet Naval Challenge and Western Alliance Options (Boulder, Co.: Westview Press, 1979).
2. Hervé Couteau-Bégarie: Géostratégie de l’Atlantique Sud (Paris: Presses Universitaires de France, 1985); dividido em quatro grandes partes, dedicadas respectivamente ao “quadro geoestratégico do Atlântico Sul”, à “penetração soviética” nessa região, à “desintegração da defesa ocidental” e aos esforços tendentes à integração das defesas navais na área, e, finalmente, aos “antagonismos geopolíticos na América Latina”, o estudo de Couteau-Bégarie representa o ensaio mais bem sucedido, até agora, de apresentar a visão “norte-atlântica” sobre os problemas da segurança estratégica do Atlântico Sul. Sem deixar de reconhecer os méritos próprios dessa obra é preciso desde logo apontar seu comprometimento com o pensamento típico da OTAN sobre essa problemática.
3. Ver a esse propósito Alain Rouquie: L’Etat Militaire en Amérique Latine (Paris: Seuil, 1982), que parece ser a única fonte de referência de Couteau-Bégarie sobre a questão militar na América Latina.
4. Cf Couteau-Bégarie, Géostratégie de l’Atlantique Sud, op. cit., pp. 13-14.
5. Sobre o trabalho pioneiro de Mahan sobre o poder naval, consultar o excelente artigo de Joao Carlos G. Caminha: “Mahan: Sua Época e suas Ideias”, Política e Estratégia (vol IV, n° 1, Jan-Mar 1986, 54-103); para a referência ao livro de Haushofer ver o artigo de Lewis Tambs: “A Influência da Geopolítica na Formação da Politica Internacional e da Estratégia das Grandes Potências”, Política e Estratégia (vol I, n° 1, Out-Dez 1983, 73-104), p. 90.
6. Carlos J. Moneta y otros: Geopolitica y Politica del Poder en Atlantico Sur (Buenos Aires: Pleamar, 1983).
7. Hervé Couteau-Bégarie: La Puissance Maritime Soviétique (Paris: Economica/Institut Français des Relations Internationales, 1983).
8. Cf Géostratégie de l’Atlantique Sud, p. 15. Para evitar o apelo frequente às notas de rodape, as referências ao livro de Couteau-Bégarie, extensivamente citadas neste artigo, serão a partir de agora colocadas entre parênteses ao final de cada transcrição.
9. Alvaro Vasconcelos: “Os Desafios do Sul e a Segurança Regional”, Estratégia, Revista de Estudos Internacionais (n° 1, Primavera 1986, 147-170), p. 149. A multipolaridade – política, econômica e militar – é com efeito o traço mais saliente de nossa época, a despeito mesmo das tentativas de verticalização operadas por um ou outro dos dois grandes poderes em suas respectivas áreas de influência.
10. Wolfram Eberhard: Conquerors and Rulers: Social Forces in Medieval China (Leyden: E.J. Brill, 1965), vide “Introduction”, transcrita em Reinhard Bendix (ed): State and Society: a reader in comparative political sociology (Berkeley: University of California Press, 1973), pp. 16-28.
11. Cf Committee on Defence Questions and Armaments of the Assembly of the Western European Union: European Security and the South Atlantic (WEU, 26 October 1981).
12. Bruce Russett: “Dimensions of Resource Dependence: some elements of rigor in concept and policy analysis”, International Organization (Vol 38, n° 3, Summer 1984, 481-499).
13. Michael Shafer: “Mineral Myths”, Foreign Policy (n° 47, Summer 1982, 154-171), p. 155.
14. Idem, p. 161.
15. Idem, p. 165.
16. Idem, p. 168.
17. Ver Peter Wiles: The New Communist Third World (London: Croom Helm, 1982).
18. Cf Francis Fukuyama: “Gorbachev and the Third World”, Foreign Affairs (vol 64, n° 4, Spring 1986, 715-731), p. 715.
19. Idem, pp. 715-6.
20. Ver “The Secret Dream of a Soviet tomorrow”, The Guardian (August 3, 1986), p. 10. O manifesto do “Movimento de Renovação Socialista” foi publicado no Brasil pela Folha de São Paulo (31.08.86).
21. Ver o excelente artigo-resenha de Elizabeth Kridl Valkenier: “Revolutionary Change in the Third World: recent soviet assessments”, World Politics (vol 38, n° 3, April 1986, 415-434).
22. A proposta é de Ray Cline, o conhecido autor de World Power Assessment; cf “Avaliação do Poder Mundial”, Política e Estratégia (vol I, n° 1, Out-Dez 1983, 7-19).

[1a: 24-26.09.86]
[2a: 12.01.87]


132. “Geoestratégia do Atlântico Sul: uma Visão do Sul”, Brasília, 24-26 setembro 1986, 13 pp. Ampliação do trabalho anterior em forma de artigo, excluída a segunda parte sobre a política brasileira para a região (Anexo: Esboço de um artigo intitulado: “Da Geopolítica à Cooperação: o Brasil e o Atlântico Sul”). Publicado sob o título “Geopolítica do Atlântico Sul” na Revista Brasileira de Política Internacional (Rio de Janeiro, vol. XXIX, nºs 115-116, 1986/2, pp. 131-138), sob o título “Geoestratégia do Atlântico: uma Visão do Sul” em Estratégia (Lisboa, 3, Primavera 1987, pp. 117-128) e, sob o título “Geoestratégia do Atlântico Sul: uma Visão do Sul”, em Política e Estratégia (São Paulo, vol. V, nº 4, outubro-dezembro 1987, pp. 486-495). Relação de Trabalhos Publicados nºs 031, 036 e 045.

Dívida Externa, Resenha de Santiago Fernandes - Paulo Roberto de Almeida (1986)


Dívida Externa: uma velha história

Paulo Roberto de Almeida
Revista Brasileira de Política Internacional
(Rio de Janeiro: Ano XXIX, 1986/2, nº 115-116, pp. 127-130)

FERNANDES, Santiago:
A Ilegitimidade da Dívida Externa do Brasil e do III Mundo
(Rio de Janeiro: Nórdica, 1985)

Ao se perguntarem como foi possível que o Brasil atingisse o nível de endívidamento externo a que chegou, sem que mecanismos de controle fossem acionados, os parlamentares responsáveis pela CPI da Dívida Externa e dos Acordos Brasil-FMI levantaram a questão da ilegalidade dos empréstimos contratados. Com efeito, argumentaram eles, em nenhum momento os instrumentos contratuais da dívida foram submetidos à processualística constitucional da apreciação legislativa, nem poderia o Banco Central renunciar à imunidade jurisdicional e aceitar foro judicial nos países credores (Nova York e Londres) para julgamento de pendências e eventual decretação de penhora dos bens mantidos no exterior. Constatada a ilegalidade dos contratos de empréstimo, não apenas se deveria decretar sua nulidade por inconstitucionalidade, mas igualmente declarar a responsabilização criminal dos responsáveis pela enorme dívida e pelas escandalosas cartas de intenção assinadas com o FMI. Como se sabe, nada disso aconteceu.
Ao tratar da mesma problemática em seu curioso e instigante livro, o economista Santiago Fernandes prefere analisar a questão do ponto de vista da ilegitimidade da dívida externa do Brasil e dos países do Terceiro Mundo. A ilegitimidade decorreria, segundo ele, da ação conjugada de três processos descapitalizadores: a) a secular deterioração dos termos de intercâmbio, drenando recursos das nações pobres para os países ricos; b) a penetração financeira do Terceiro Mundo por instituições e agências bancárias dos países centrais, que passam a operar com recursos locais e muitas vezes a remeter divisas obtidas com manipulações cambiais; c) a evasão de capitais, oficial e criminosa, propiciada pela singular e perniciosa situação de privilégio de que goza o dólar, como moeda de reserva internacional. Constatada a ilegitimidade das dívidas do Terceiro Mundo, não apenas se deveria decretar o seu repúdio, puro e simples, mas igualmennte encetar a reorganização do sistema monetário e financeiro internacional, desmonetizando o ouro e transformando o FMI numa Câmara Internacional de Compensação. Como se sabe, nada disso aconteceu tampouco.
Os banqueiros internacionais receberiam com céticos sorrisos propostas de renegociação que utilizassem os argumentos da legalidade ou da legitimidade das dívidas contraídas pelos países em desenvolvimento. A História parece lhes dar razão: na longa experiência de renegociação das dívidas de Estados temporariamente insolventes, o repúdio completo foi comparativamente raro, ocorrendo em alguns casos uma redução temporária, mas não uma cessação completa do serviço da dívida.
Na época em que a Europa atuava sozinha como world’s banker, ocorreram pelo menos dois períodos de insolvências generalizadas: ao final das independências latino-americanas, na terceira década do século XIX, e nos anos setenta desse século, envolvendo novamente países latino-americanos e alguns médio-orientais (Turquia, Egito). A Grã-Bretanha foi evidentemente o primeiro país a sentir necessidade de proteger seus interesses e, mesmo na ausência de qualquer apoio governamental, os grupos privados organizaram, desde 1868, uma Corporation of Foreign Bondholders. Os resultados parecem ter sido animadores, pois já em princípios dos anos 80, o economista britânico R.L. Nash informava que “the losses caused through defaults were, in the long run almost insignificant compared with the large gains derived by British investors over the whole field of foreign and colonial securities” (A Short Inquiry into the Profitable Nature of Our Investments; London: Wilson, 1881, p. 9).
Em raras ocasiões – como nos casos históricos do México (1861) e da Venezuela (1902) – os governos detentores de títulos de dívida pública chegaram a fazer apelo à ação armada para o ressarcimento dos débitos, provocando, no campo jurídico-conceitual, a primeira contestação à até então dominante “teoria dos credores”. Esta, como se sabe, afirma que a obrigação do devedor é controlada pelo Direito privado dos contratos e que as relações entre as partes estão reguladas por instrumentos vinculativos: quando um Estado contrata um empréstimo ele tacitamente abdicaria de seu caráter soberano e se submeteria voluntariamente às regras do Direito privado.
Para contrapor-se a essa doutrina, o então Ministro argentino das Relações Exteriores, Luis Drago, formulou uma “teoria dos devedores”, colocando ênfase no caráter soberano do Estado devedor, na impossibilidade de se perseguir judicialmente o Estado e na definição da dívida como uma simples “questão de honra”. Para conciliar essas posições antitéticas, surgiu, posteriormente, uma terceira doutrina, a “teoria do contrato sui generis”, que via as transações de empréstimos como contratos de Direito público.
Seja como for, a Corporation britânica parece ter servido de modelo para diversos outros grupos organizados na França, na Bélgica, na Alemanha e na Holanda, bem como para o American Foreign Bondholders Protective Council, organizado diretamente pelo Departamento de Estado norte-americano em 1932, como consequência do terceiro grande período de insolvências generalizadas, provocado pelo bank crash de 1929-1931, que trouxe consigo uma serie de inadimplências na Europa e na América Latina. Os ingleses, que asseguraram sozinhos o funding loan brasileiro de 1898, tiveram, em 1934, de ceder terreno aos norte-americanos, como observa o historiador econômico Edwin Borchard (State Insolvency and Foreign Bondholders; New Haven: Yale, 1951, p. 343).
A estrutura da comunidade financeira internacional alterou-se substancialmente no 2° pós-guerra, com a emergência do FMI e do Banco Mundial, mas sobretudo com o desenvolvimento extraordinário do setor bancário privado. Assim, as renegociações provocadas pelo quarto grande período de defaults, inaugurado em princípios da década de 80, são normalmente conduzidas pelos Advisory Banking Committees, criados pela comunidade bancária privada, e supervisionadas pelo Clube de Paris e pelo FMI. O cartel dos credores tem portanto uma longa história atrás de si, e uma das mais dignificantes: se as incursões armadas, os bloqueios de portos e as intervenções diretas nas finanças dos devedores parecem ter hoje saído de moda, ficou a truculência dos banqueiros atuais que, mesmo resguardada pelos salões acarpetados dos grandes hotéis, nada fica a dever à ética enviesada de seus predecessores.
0s devedores, por sua vez, parecem ter estacionado nas banalidades conceituais da Doutrina Drago, uma vez que o chamado Consenso de Cartagena nada mais fez, até agora, do que reconhecer o óbvio: a carga financeira é insuportável, os programas de reajuste são inadequados, mas continua-se a drenar recursos líquidos para o exterior a título do serviço da dívida. Se não parece tão simples proclamar a ilegalidade jurídica dos contratos de empréstimo, alguns Governos tem procurado avançar a tese da ilegitimidade de fato das dívidas atuais, sem muitos resultados tangíveis ate aqui.
O livro de Santiago Fernandes procura justamente fornecer argumentos econômicos para sustentar esta última posição e é com base nessa pretensão que ele deve ser julgado. Os três mecanismos de descapitalização por ele mencionados – resumindo: desequilíbrio nas relações de troca, manipulações de bancos estrangeiros e fuga de capitais – podem realmente ser responsabilizados pela acumulação do enorme passivo financeiro que caracteriza hoje grande parte do Terceiro Mundo ?
A ilegitimidade da dívida externa brasileira e de diversos outros países em desenvolvimento só poderá ser comprovada na prática se estabelecermos um vínculo estrutural, isto é uma relação causal, entre os fatores acima citados e o processo de formação das obrigações financeiras externas desses países. Uma análise isenta das relações econômicas internacionais dos países em desenvolvimento constataria, efetivamente, que os três fatores selecionados atuaram de forma negativa, muitas vezes de maneira contundente, sobre as contas nacionais desses países, agravando os desequilíbrios externos e ampliando indiretamente a dimensão do endívidamento externo.
Os dados não são porém conclusivos quanto à transformação daqueles elementos contingentes em fatores estruturais do endívidamento externo dos países em desenvolvimento, no sentido em que eles passariam de necessários a suficientes. Não cabe, nos limites desta resenha, uma análise detalhada de cada um daqueles fatores considerados como dotados de relevância causal no processo de endívidamento externo, mas não se pode deixar de notar que, no plano das variáveis explicativas, nem sempre é facil ou possível converter a realidade empírica em paradigma interpretativo.
Em outros termos, o possível histórico não pode ser automaticamente convertido em lógico necessário: ainda que aqueles mecanismos tenham efetivamente atuado como processos defraudadores de nosso equilíbrio externo, não existe um nexo diretamente causal que os ligue ao passivo financeiro acumulado ao longo dos últimos anos. A descapitalização pode efetivamente ter resultado daqueles processos defraudadores de nossas riquezas, mas o endividamento não foi provocado, do ponto de vista formal, por lesivos contratos de empréstimo feitos pelas elites do Terceiro Mundo e nos quais tivessem sido expressamente consignados o intercâmbio desigual, a manipulação bancária e a fuga de capitais.
O endívidamento atual deriva de causas essencialmente financeiras, ligadas à forma de funcionamento do mercado de capitais de empréstimo e que incidem prioritariamente sobre o serviço do principal em regime de taxas de juros flutuantes. Do ponto de vista estritamente econômico, a ilegalidade de alguns contratos de empréstimo e de determinadas práticas bancárias, bem como a injustiça e a irracionalidade da transferência de recursos operada apenas para servir a dívida não são suficientes para caracterizar uma situação de ilegitimidade da dívida externa.
O conceito de (i)legitimidade, segundo Mestre Aurelio, refere-se ao fato de terem sido ou não atendidos os requisitos legais ou a qualidade ou condição de desarrazoado e injusto. É evidente que Santiago Fernandes descarta o entendimento jurídico-legal desse conceito, preferindo encará-lo do ponto de vista da autenticidade ou da adequação aos critérios da razão e da justiça. Ainda que a razão e a justiça pudessem militar em favor da tese da ilegitimidade da dívida externa do Brasil e do Terceiro Mundo, deve-se reconhecer que o sistema econômico internacional está muito longe de fundar-se nesses dois princípios.
As relações de espoliação e de expropriação de recursos, no quadro da interação centro-periferia (que Braudel chama de “economia-mundo” e Wallerstein de “capitalismo histórico”), constituem em ultima instância a base sobre a qual se assentam a desigualdade na distribuição de riquezas e a estrutura iníqua do poder mundial. Uma vez que a organização atual da produção social não foi feita para reparar injustiças ou introduzir a igualdade de chances não há razão de esperar que a ordem internacional venha a ser fundada em imperativos éticos ou critérios morais. A menos de se tomar uma decisão política de cancelar simplesmente o serviço ou o principal da dívida, decisão que só pode resultar de uma nova correlação de forças no plano das relações inter-estatais, os atuais países endívidados continuarão a transferir uma parte de suas riquezas para os cofres dos países credores, independentemente do caráter mais ou menos legítimo (ou ilegítimo, como se queira) dos mecanismos de espoliação.
Os argumentos acima expostos em nada invalidam o valor do livro de Santiago Fernandes no que se refere a uma correta avaliação do funcionamento atual do sistema monetário e financeiro internacional e a urgente necessidade de sua restruturação nas linhas propostas outrora por Lord Keynes, tendentes à constituição da uma International Clearing Union (mas por ele mesmo fraudadas com a criação do FMI em Bretton-Woods. Sem dúvida que a exigência de Fernandes, no sentido do cancelamento da dívida do Terceiro Mundo, será dificilmente cumprida integralmente, mas as regras de funcionamento dessa Câmara mundial de Compensações, relegando o ouro a seu papel de “relíquia bárbara” e introduzindo uma moeda bancária (o “bancor”) para a regulação dos desequilíbrios de balança de pagamentos, devem ser seriamente estudadas por qualquer autoridade monetária tant soit peu honnête e responsável.
Não sejamos muito otimistas porém: a multilateralização dos ajustes de pagamentos, se ocorrer, ficará durante muito tempo restrita às economias desenvolvidas, que precisarão coordenar previamente suas políticas monetárias e fiscais. Pode-se alternativamente pensar em soluções mais modestas, envolvendo projetos de integração regional mobilizando países relativamente homogêneos, como o demonstra a experiência da Comunidade Européia.
Aqui Santiago Fernandes antecipa-se às tendências futuras de desenvolvimento em escala continental, ao propor uma Câmara Regional de Compensação Multilateral para a América Latina e a instituição de uma moeda comum, o “Latinor”, para ajustes comerciais e financeiros que até agora são realizados bilateralmente ou utilizando-se de moedas fortes, no caso o dólar. Os recentes acordos de integração comercial e industrial do Brasil com a Argentina e o Uruguai, lançando as bases de um espaço econômico comum no Cone Sul, e as negociações para a criação de uma nova moeda de câmbio (o “gaúcho”), vêm dar inteiramente razão a Santiago Fernandes.
A ousadia e a originalidade da maior parte das teses do autor tornam sem dúvida alguma deveras atrativa a leitura deste livro, verdadeiro manancial de idéias refrescantes na atual pasmaceira da “ciência econômica”. A razão e o bom senso parecem caracterizar este economista “heterodoxo” – para usar um termo na moda – ainda que não concordemos com todas as suas propostas.
A discordância aliás não está na justeza das medidas propostas, sobretudo aquelas relativas à dívida externa do Terceiro Mundo, mas tão somente num julgamento diverso do funcionamento do sistema internacional e sua eventual adequação aos princípios da razão e da equidade. Santiago Fernandes deve provavelmente estar certo, mas parece avançado demais para sua época. O futuro lhe dará razão, mas, como diria Lord Keynes, no longo prazo estaremos todos mortos.

Ficha do Trabalho:
126. “Dívida Externa”, Brasília, 31 agosto 1986, 5 pp.
Resenha-crítica ao livro de Santiago FERNANDES, A Ilegitimidade da Dívida Externa do Brasil e do III Mundo (Rio de Janeiro, Nórdica, 1985)
Publicada na Revista Brasileira de Política Internacional (Rio de Janeiro: Ano XXIX, 1986/2, nº 115-116, pp. 127-130) e na Seção “Crítica” de Humanidades (Brasília, Ano III, nº 11, novembro 1986-janeiro 1987, pp. 14-115).
Relação de Trabalhos Publicados nº 030 e 033.
Anexo: Reação de Santiago Fernandes à minha resenha: “Controvérsia sobre a legitimidade da dívida”, publicada no Jornal do Commércio (Rio de Janeiro: 20 março 1987, p. 4).

domingo, 1 de março de 2015

Percival Farquhar: um barao ladrao, mas que investia no Brasil, diferente dos ladroes atuais

Percorrendo velhos papeis de trabalho, numa pesquisa para buscar referências de livros que já li, anotei, resenhei e que agora estou usando para mais um trabalho de história econômica, encontrei esta antiga resenha de um livro publicado no Brasil quase dez anos atrás, e que eu já tinha lido na edição original americana.

Percival Farquhar, para quem não sabe, foi o "investidor imperialista" que construiu a Madeira-Mamoré -- e está retratado num romance semi-histórico de Márcio de Souza, Mad Maria, que também serviu de base para uma famosa telehistória da Globo, que nunca vi -- e também dezenas de outras obras que ainda estão por ai. Quem acha, por exemplo, que a Vale do Rio Doce era uma empresa genuinamente nacional até ser privatizada por FHC (sempre ele, mas no caso o processo começou com Collor e continuou sob Itamar), não deve saber que ela era do Percival Farquhar, sob o nome de Itabira Iron Ore Company, até ser expropriada por Vargas em 1942.
Pois é, nacionalistas, vocês precisam estudar mais a história do Brasil.
Em todo caso, fiquem com a resenha...
Paulo Roberto de Almeida


O imperador americano das PPPs
Charles A. Gauld:
Farquhar, o último titã: um empreendedor americano na América Latina
São Paulo: Editora de Cultura, 2006, 520 p.; tradução de Eliana Nogueira do Vale.

Quem imagina que as PPPs sejam uma moderna contribuição do governo petista para reagir a uma suposta “privataria da era neoliberal”, faria bem em revisar sua lição de história. Elas começaram mais de um século atrás, em pleno império, como solução à crônica falta de capitais, no Brasil, para obras de grande porte. A monarquia e a velha república viveram de PPPs por décadas, em modalidades não muito diversas das que hoje são mobilizadas para assegurar um retorno adequado ao investimento privado: à época, os investidores estrangeiros (na maior parte ingleses) tinham direito à famosa “garantia de juros”, tipicamente de 6% ao ano.
Percival Farquhar foi, segundo Gauld, o “maior vulto americano da história do Brasil”, demonizado pelos nacionalistas, incompreendido pelos políticos, hostilizado pelos xenófobos e nada conhecido pelos atuais promotores das PPPs “republicanas”. Nos países vizinhos ele seria chamado de gringo explorador, o típico ianque imperialista que todos adorariam odiar. No Brasil, foi respeitado no início de seus muitos investimentos em obras públicas e empreendimentos extrativistas, passou a ser temido quando adquiriu as dimensões de um Mauá estrangeiro e foi impiedosamente expropriado ao longo da era Vargas. Poucos sabem que a Vale do Rio Doce começou pelas suas mãos: a Itabira Iron Ore Company, que, aliás, já existia antes dele adquiri-la, em 1919. A Vale, a Acesita, a Ports of Pará – construída para exportar a borracha da Amazônia e que começou a funcionar no momento mesmo da crise trazida pela concorrência da Malásia, em 1913 – e várias outras companhias fundadas por Farquhar foram nacionalizadas no decorrer da dura batalha que ele travou contra os demolidores do formidável império econômico que foi construindo a partir de 1904.
A despeito do tom encomiástico, Gauld reconstrói, além do itinerário desse imperialista exemplar, vários capítulos de nossa história econômica: quase não há setores – que os militares chamariam de “estratégicos” – em que ele não tenha colocado os capitais de seus associados estrangeiros: bondes, ferrovias, navegação, portos, hidrelétricas, pecuária, processamento de carne, agricultura e silvicultura, extração mineral, indústrias de papel e siderurgia. Como Mauá, ele enfrentou inúmeros problemas, a maior parte vinda do próprio Estado brasileiro, mesmo se ele praticou a arte (não inusitada) de “comprar” deputados e jornalistas para defender os seus interesses. Imperialista bizarro, Farquhar apreciava mais o risco do investimento do que a cor do dinheiro; foi um verdadeiro pioneiro, como seus ancestrais quackers, podendo até ser equiparado, sem nenhum exagero, aos nossos bandeirantes.
“Os brasileiros”, disse uma vez Farquhar, “chamaram minha atenção pela rapidez de raciocínio, embora estejam igualmente prontos a chegar a conclusões apressadas”. Em 1906 ele já se queixava da “constante flutuação da taxa de câmbio” e, no final da vida, em 1952, registrava a “vã manifestação de esperança”, mantida durante meio século, de que algum dirigente corrigisse a “instável economia do Brasil, em perpétua inflação”. A obra reflete o momento em que foi escrita (1962), quando os EUA consideravam que o Brasil corria o risco de tornar-se uma “grande Cuba”. Gauld não esconde uma incontida admiração pelo seu herói e certa impaciência com os nacionalistas brasileiros. Os editores e a tradutora estão de parabéns pela corajosa iniciativa de publicar esta obra esquecida sobre o mais poderoso capitalista estrangeiro da história do Brasil, cujos historiadores parecem querer continuar mantendo no anonimato.
Candidatos a uma boa dissertação doutoral estão convidados a reescrever, de maneira não apologética, sua fabulosa história de vida, que se confunde com meio século de história econômica brasileira, mas os próprios editores brasileiros desconhecem que os papéis de Farquhar e os manuscritos de Gauld estão depositados na biblioteca da universidade de Yale. Ao garimpo, historiadores...

Paulo Roberto de Almeida
[Brasília, 20 setembro 2006, 2 p.]
Publicada em formato resumido e revisto na
revista Desafios do Desenvolvimento
(ano 3, nº 27, outubro 2006)

domingo, 15 de fevereiro de 2015

A Arte da Resenha (para amantes de livros) - Paulo Roberto de Almeida (2006)

Revisando listas antigas, para fins de pura contabilidade, encontrei este trabalho, jamais publicado em alguma revista, e provavelmente apenas divulgado por este meio. Acredito que várias de suas considerações ainda permaneçam válidas, razão pela qual o divulgo novamente...
Paulo Roberto de Almeida


A arte da resenha
(para uso de aprendizes, neófitos e outros amantes de livros)

Paulo Roberto de Almeida
(um book-addicted e dependente livresco terminal...)

Não conheço as regras, se existem, que eventualmente se aplicariam à prática das resenhas literárias e confesso que nunca vi nenhum “manual do resenhista profissional” (creio que isso não existe, ainda que possa haver mercado para algum tipo de “How to do a perfect review” ou então “An Idiot’s Guide for Reviewing Books”). Em todo caso, não pretendo, no presente texto, ou em qualquer outro contexto, preencher essas lacunas ou responder a questões do tipo “tudo o que você sempre quis saber a respeito das resenhas de livros e nunca teve a quem perguntar”.
Meu propósito é mais modesto e totalmente autoexplicativo. Pretendo, apenas, delinear alguns princípios constitutivos do que poderia ser considerado uma resenha em moldes “normais”, uma vez que este gênero, em especial no Brasil, parece ter derivado para o equivalente das modernas guerras de religião, com trucidamentos impiedosos de um lado e excessos encomiásticos de outro. Sem pretender fazer um “Book review for beginners”, vejamos o que poderia ser dito de razoável neste campo da leitura crítica.

Como sou um book-lover irrecuperável, um leitor compulsivo e um anotador doentio – tendo já preenchido, desde a adolescência, vários cadernos de leituras, antes de passar às notas de computador –, pratico, desde o início desse meu não tão secreto vício da leitura contínua, o hábito dos resumos e das resenhas críticas. Faço-o por absoluto gosto da leitura anotada, e do debate crítico, ainda que unilateral e à distância, com o autor de cada um dos livros que leio. Antes – e durante certo tempo – tinha por hábito anotar à margem dos livros, o que só podia fazer, evidentemente, com aqueles que me pertenciam, sendo escusado fazê-lo, por respeito aos demais leitores e ao patrimônio bibliotecário, naqueles livros tomados de empréstimo, outro hábito secular meu, se ouso dizer, desde tempos imemoriais. Em todo caso, eu já freqüentava bibliotecas antes de aprender a ler, na “tardia” idade de sete anos. Creio que meu primeiro trabalho publicado, já na adolescência, foi uma resenha de um livro de Erich From – acho que foi Medo à Liberdade, versão brasileira, pela Zahar, de Escape From Freedom (1941) –, impresso em mimeógrafo a álcool num jornalzinho do grêmio acadêmico do colegial e que caberia algum dia recuperar.
Essas anotações à margem – que aumentam o valor dos livros usados quando seu autor é algum personagem famoso, cuja biblioteca foi reciclada ou doada por herdeiros “desprezíveis” – são incômodas, posto que “telegráficas” e incompreensíveis, ademais de incompletas, fora do contexto em que foram feitas. Daí minha inclinação, desde muito cedo, pela anotação crítica dos pontos relevantes de cada obra e uma avaliação final sobre a contribuição daquele livro para o conhecimento de algum campo especializado. Sim, devo confessar também que, salvo em raras ocasiões, minhas resenhas críticas sempre se dirigiram a obras de não ficção, uma vez que me confesso, não um “objeccionista” de obras puramente literárias, mas um leitor relativamente incapaz de realizar análises de obras de literatura stricto sensu. Meu “pecado original” sempre foi, e permanecerá sendo, a resenha de obras de não ficção, em especial no campo das humanidades, o que inclui também a economia e algumas vertentes das ciências “duras”.

Dito isto, vejamos agora o que eu considero que deva ser, ou constituir, uma resenha. Talvez fosse o caso de começar por dizer o que NÃO deve ser uma resenha.
Seria preciso, em primeiro lugar, que haja um mínimo de empatia entre o autor e o objeto em questão, ou seja, algum vínculo de interesse mais forte entre o resenhista e a obra examinada. Ainda que se possa conceber um exercício de crítica implacável, ou a condenação sem apelo de uma obra resenhada, não conviria que o animus examinandi do resenhista fosse totalmente negativo em relação ao autor do livro ou a temática do próprio. Resenhas sob encomenda, ou como obrigação profissional, podem correr esse risco, ainda que seja concebível a existência – aliás reconhecida – de resenhistas profissionais, pagos pelos órgãos da imprensa, para fazer exatamente esse tipo de trabalho. Mas, seria importante que o resenhista disponha de certa liberdade na escolha dos livros a serem examinados, como forma de garantir a já referida empatia.
Em segundo lugar, uma resenha tampouco deveria tentar descobrir supostas motivações pessoais do autor do livro sob exame, idéias que não estão explícitas, de forma transparente, na obra em questão. O único critério válido é o exame da obra em si, seus argumentos intrínsecos e explícitos, não o que possa pensar o autor sobre assuntos da vida civil ou suas opiniões expressas em outras circunstâncias e ocasiões, a propósito de outros temas. O que autor pensa deve se esconder atrás da obra, cujo conteúdo deve permanecer como critério único e exclusivo da atenção do resenhista.
Uma resenha também NÃO deve servir como meio de vingança por querelas passadas ou diferenças políticas e ideológicas que possam até dividir os “interlocutores” na vida civil. Trata-se de prática bastante comum nos meios de comunicação fortemente partidarizados ou dominados por alguma personalidade identificada com determinadas causas políticas e sociais. Não se pode excluir, é verdade, a exposição e o exame das posições políticas do autor da obra, mas o próprio resenhista deveria tentar separar esse aspecto da avaliação da obra, a não ser que esse aspecto seja inerente à temática exposta.

Vejamos, agora, o que pode ser uma resenha. Ela pode, obviamente, ser muitas coisas, ao mesmo tempo ou alternativamente, mas tudo depende da finalidade ou destinação da resenha em causa. Não estou considerando aqui “press releases” das próprias editoras ou notas factuais com finalidades puramente comerciais ou de simples informação e registro. Uma resenha deve conter uma exposição do conteúdo do livro, uma observação sobre o eventual ineditismo ou caráter original das informações ou dados nele contidos e alguma apreciação crítica sobre seu valor enquanto obra literária (ou científica, no sentido amplo).
Quanto à forma das resenhas, não existem propriamente padrões fixos. Os modelos consagrados são os mais variados possíveis, indo das pequenas notas às resenhas quilométricas. Essas variedades tendem a distribuir-se segundo os meios de divulgação. Jornais e revistas de informação geral parecem reservar espaço para apenas dois tipos de “resenhas”: curtas notas de registro sobre a publicação das obras correntes, isto é, a produção comercial das editoras, e resenhas stricto sensu que informam sobre o conteúdo e discutem as principais idéias ou argumentos do autor. Já os veículos especialmente consagrados à discussão da produção literária – periódicos especializados e suplementos literários dos próprios jornais – costumam abrigar resenhas lato sensu, que soem ser de maior amplitude.
Confesso minha preferência pelos artigos-resenhas – ao estilo dos review-articles do quinzenal literário The New York Review of Books (não confundir com The New York Times Book Review, o suplemento literário dominical desse jornal) – pois neles é possível discutir um grande problema mediante a apresentação de um ou mais livros que tratem do assunto em pauta. Trata-se de um gênero de resenhas muito pouco cultivado no Brasil, praticamente sem espaço em nossa imprensa, pois mesmo as revistas que agora surgiram para tratar de livros – como a Entrelivros, por exemplo – não ostentam, a propriamente falar, essas resenhas-artigos que fazem a fama da NYRB (a Entrelivros, aliás, publica resenhas do NYTBR). Nem sempre se trata de livros – pode ser uma exposição, ou um filme –, mas sempre é uma peça literária no mais alto sentido intelectual da palavra.

A forma não é, contudo, o coração da resenha, uma vez que ela pode ser tão mutável ou inovadora quanto os gêneros literários. O essencial da resenha está naquilo que é transmitido ao leitor, seu espírito e seu discurso. Uma resenha deve conter, antes de mais nada, um resumo dos argumentos principais do livro sob exame, dispensável, na parte relevante, quando se trata de uma trama policial, quando sequer se sugere o famoso “whodunit”, mas podem ser dadas as circunstâncias do crime. A exposição honesta, concisa e objetiva do teor do livro é um elemento essencial da resenha bem conduzida, sem a qual ficam lacunares tanto a discussão dos argumentos ou idéias do autor do livro quanto a crítica que se pretende fazer deles.
Uma vez apresentado o livro, idealmente no primeiro terço da resenha, caberia ao comentarista agregar outros elementos que permitam situar o livro no seu contexto, um pouco como sua posição no “estado da arte” daquele campo do conhecimento, o que no caso dos romances representaria discutir o que ele traz de novo ou de original em relação ao gênero no qual ele se situa. Essa parte também pode vir ao início, se há espaço suficiente para o resenhista começar o exame de uma obra pela avaliação do campo mais vasto no qual ela se situa.
O terceiro elemento central de uma resenha, obviamente, é a avaliação crítica do resenhista, sua apreciação favorável ou a indicação das limitações da obra em exame. Este ponto é um componente indispensável de toda resenha, ainda que bastante flexível em relação às possibilidades abertas segundo o veículo ao qual a resenha se destina. Uma revista acadêmica tem padrões bastante rígidos para a elaboração desse tipo de nota crítica, ao passo que um pasquim literário oferece latitude para considerações de ordem mais subjetiva. A resenha verdadeira sempre termina por algum julgamento de valor, o que por vezes descamba para alguma condenação sem recurso, segundo as escolas e clãs em que se divide a chamada république des lettres. São raros, contudo, os casos nos quais a resenha nada mais representa do que uma estocada mortal nas pretensões do autor a uma brilhante carreira literária. No mais das vezes, os golpes são superficiais, apenas para não inflar por demais o ego do autor, quando se trata do pura literatura.
Nos campos das ciências humanas e da economia, que constituem meus terrenos de manobras favoritos, a seriedade é de rigor, mas também já assisti a descomposturas em regra, quando não a poderosos tiros de canhão, como acontece nas verdadeiras guerras de religião, que nestes casos separam a esquerda – dominante nos meios da academia – de uma suposta direita, sempre envergonhada e quase inexistente. O que ocorre, geralmente, é que uma ala ignora a outra, sendo que a esquerda faz resenhas favoráveis de sua tribo e os liberais só se interessam pelos livros que eles reputam ter qualidades suficientes para merecer uma avaliação crítica. Não vou listar os veículos preferidos de uma ou outra escola, mas no terreno universitário todas as revistas estabelecidas ostentam, por dever de ofício, seções de resenhas, nas quais os mestrandos e outros candidatos a títulos podem exercer seus talentos até serem chamados a assinar verdadeiros artigos “científicos”.
Resumindo, e dando as “palavras-chave”, eu diria que uma boa resenha deveria ser feita dos seguintes elementos:
(a) Objeto: apresentação resumida do livro, com suas partes ou seções constitutivas e algum destaque para o argumento principal;
(b) Desenvolvimento: discussão das idéias centrais do autor, sua coerência intrínseca, sua validade extrínseca e contexto mais amplo nas quais elas podem ser inseridas;
(c) Avaliação: apreciação crítica, tanto do ponto de vista do conteúdo quanto do método, se for o caso, com balanço da contribuição do autor para a área do conhecimento;
(d) Prolegômenos e derivações: havendo espaço e possibilidade, a resenha pode começar discutindo o próprio campo no qual se situa a obra, fazendo um balanço do “estado da arte” e antecipando seu possível impacto para os estudos futuros naquele campo.

Voilà, creio ter apresentado o meu “manual” da resenha honesta, mas na verdade devo confessar que sou muito pouco sistemático, no sentido dos pontos acima resumidos. O que acaba valendo, para mim, é, finalmente, a empatia para com o livro ou o autor, elementos centrais, senão essenciais, de toda boa resenha. Vale!
Brasília, 24 de janeiro de 2006

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Addendum em 14/02/2015: 
Googlelizando um pouco agora, descobri que existem mais de 900 milhões de artigos indexados sobre a arte de resenhar um livro. Entre as primeiras listadas, figura inclusive um post que eu havia feito em torno de um artigo de George Orwell sobre essa exata questão:


Aproximadamente 916.000.000 resultados (0,44 segundos) 
Resultados da pesquisa
www.writing-world.com/freelance/asenjo.shtml
And even though I knew I didn't, that didn't stop me from firmly inserting my foot in my mouth by agreeing to conduct a book review writing workshop for my local ...
www.wikihow.com › ... › Books
How to Review a Book. Writing a book review is not just about summarizing; it's also an opportunity for you to present a critical discussion of the book.
www.wikihow.com › ... › Book Reviews
How to Write a Book Review. You've been assigned a book review but don't even know what book to pick, let alone how to write the review. Do you go for an ...
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This handout will help you write a book review, a report or essay that offers a critical perspective on a text. It offers a process and suggests some strategies for ...
www.booktrust.org.uk › Books › For teens › Writing tips
·  Other readers will always be interested in your opinion of the books you've read. Whether you've loved the book or not, if you give your honest and detailed ...
guides.library.queensu.ca › Guides - Traduzir esta página
23 de out de 2014 - A book review is both a description and an evaluation of a book. It should focus on the book's purpose, contents, and authority. Scan the Book's ...
www.enotes.com/topics/how-write-book-review
Here's a 10-step process you can use to review any book. 1) Don't read the book. At least, not yet. Instead, start by looking at it. Look for clues to the nature of the ...
en.wikipedia.org/wiki/Book_review
A book review is a form of literary criticism in which a book is analyzed based on content, style, and merit. A book review can be a primary source opinion piece, ...
teacher.scholastic.com/writewit/bookrev/tips.htm
This lesson plan invites students to plan, draft, revise, and publish a book review. Important writing tips and a professional writing model are particularly useful.
leo.stcloudstate.edu/acadwrite/bookrev.html
Steps for Writing a Good Book Review. Introduce the subject, scope, and type of book. Identify the book by author, title, and sometimes publishing information.
https://plus.google.com/.../H1ugAsdEa5H
1 de fev de 2015 - Reflexao da semana: George Orwell on book reviewing. Confessions of a Book Reviewer George Orwell Confessions of a Book Reviewer , 1946 [L.m./F.s.: ...