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terça-feira, 5 de maio de 2015

Dívida Externa, Resenha de Santiago Fernandes - Paulo Roberto de Almeida (1986)


Dívida Externa: uma velha história

Paulo Roberto de Almeida
Revista Brasileira de Política Internacional
(Rio de Janeiro: Ano XXIX, 1986/2, nº 115-116, pp. 127-130)

FERNANDES, Santiago:
A Ilegitimidade da Dívida Externa do Brasil e do III Mundo
(Rio de Janeiro: Nórdica, 1985)

Ao se perguntarem como foi possível que o Brasil atingisse o nível de endívidamento externo a que chegou, sem que mecanismos de controle fossem acionados, os parlamentares responsáveis pela CPI da Dívida Externa e dos Acordos Brasil-FMI levantaram a questão da ilegalidade dos empréstimos contratados. Com efeito, argumentaram eles, em nenhum momento os instrumentos contratuais da dívida foram submetidos à processualística constitucional da apreciação legislativa, nem poderia o Banco Central renunciar à imunidade jurisdicional e aceitar foro judicial nos países credores (Nova York e Londres) para julgamento de pendências e eventual decretação de penhora dos bens mantidos no exterior. Constatada a ilegalidade dos contratos de empréstimo, não apenas se deveria decretar sua nulidade por inconstitucionalidade, mas igualmente declarar a responsabilização criminal dos responsáveis pela enorme dívida e pelas escandalosas cartas de intenção assinadas com o FMI. Como se sabe, nada disso aconteceu.
Ao tratar da mesma problemática em seu curioso e instigante livro, o economista Santiago Fernandes prefere analisar a questão do ponto de vista da ilegitimidade da dívida externa do Brasil e dos países do Terceiro Mundo. A ilegitimidade decorreria, segundo ele, da ação conjugada de três processos descapitalizadores: a) a secular deterioração dos termos de intercâmbio, drenando recursos das nações pobres para os países ricos; b) a penetração financeira do Terceiro Mundo por instituições e agências bancárias dos países centrais, que passam a operar com recursos locais e muitas vezes a remeter divisas obtidas com manipulações cambiais; c) a evasão de capitais, oficial e criminosa, propiciada pela singular e perniciosa situação de privilégio de que goza o dólar, como moeda de reserva internacional. Constatada a ilegitimidade das dívidas do Terceiro Mundo, não apenas se deveria decretar o seu repúdio, puro e simples, mas igualmennte encetar a reorganização do sistema monetário e financeiro internacional, desmonetizando o ouro e transformando o FMI numa Câmara Internacional de Compensação. Como se sabe, nada disso aconteceu tampouco.
Os banqueiros internacionais receberiam com céticos sorrisos propostas de renegociação que utilizassem os argumentos da legalidade ou da legitimidade das dívidas contraídas pelos países em desenvolvimento. A História parece lhes dar razão: na longa experiência de renegociação das dívidas de Estados temporariamente insolventes, o repúdio completo foi comparativamente raro, ocorrendo em alguns casos uma redução temporária, mas não uma cessação completa do serviço da dívida.
Na época em que a Europa atuava sozinha como world’s banker, ocorreram pelo menos dois períodos de insolvências generalizadas: ao final das independências latino-americanas, na terceira década do século XIX, e nos anos setenta desse século, envolvendo novamente países latino-americanos e alguns médio-orientais (Turquia, Egito). A Grã-Bretanha foi evidentemente o primeiro país a sentir necessidade de proteger seus interesses e, mesmo na ausência de qualquer apoio governamental, os grupos privados organizaram, desde 1868, uma Corporation of Foreign Bondholders. Os resultados parecem ter sido animadores, pois já em princípios dos anos 80, o economista britânico R.L. Nash informava que “the losses caused through defaults were, in the long run almost insignificant compared with the large gains derived by British investors over the whole field of foreign and colonial securities” (A Short Inquiry into the Profitable Nature of Our Investments; London: Wilson, 1881, p. 9).
Em raras ocasiões – como nos casos históricos do México (1861) e da Venezuela (1902) – os governos detentores de títulos de dívida pública chegaram a fazer apelo à ação armada para o ressarcimento dos débitos, provocando, no campo jurídico-conceitual, a primeira contestação à até então dominante “teoria dos credores”. Esta, como se sabe, afirma que a obrigação do devedor é controlada pelo Direito privado dos contratos e que as relações entre as partes estão reguladas por instrumentos vinculativos: quando um Estado contrata um empréstimo ele tacitamente abdicaria de seu caráter soberano e se submeteria voluntariamente às regras do Direito privado.
Para contrapor-se a essa doutrina, o então Ministro argentino das Relações Exteriores, Luis Drago, formulou uma “teoria dos devedores”, colocando ênfase no caráter soberano do Estado devedor, na impossibilidade de se perseguir judicialmente o Estado e na definição da dívida como uma simples “questão de honra”. Para conciliar essas posições antitéticas, surgiu, posteriormente, uma terceira doutrina, a “teoria do contrato sui generis”, que via as transações de empréstimos como contratos de Direito público.
Seja como for, a Corporation britânica parece ter servido de modelo para diversos outros grupos organizados na França, na Bélgica, na Alemanha e na Holanda, bem como para o American Foreign Bondholders Protective Council, organizado diretamente pelo Departamento de Estado norte-americano em 1932, como consequência do terceiro grande período de insolvências generalizadas, provocado pelo bank crash de 1929-1931, que trouxe consigo uma serie de inadimplências na Europa e na América Latina. Os ingleses, que asseguraram sozinhos o funding loan brasileiro de 1898, tiveram, em 1934, de ceder terreno aos norte-americanos, como observa o historiador econômico Edwin Borchard (State Insolvency and Foreign Bondholders; New Haven: Yale, 1951, p. 343).
A estrutura da comunidade financeira internacional alterou-se substancialmente no 2° pós-guerra, com a emergência do FMI e do Banco Mundial, mas sobretudo com o desenvolvimento extraordinário do setor bancário privado. Assim, as renegociações provocadas pelo quarto grande período de defaults, inaugurado em princípios da década de 80, são normalmente conduzidas pelos Advisory Banking Committees, criados pela comunidade bancária privada, e supervisionadas pelo Clube de Paris e pelo FMI. O cartel dos credores tem portanto uma longa história atrás de si, e uma das mais dignificantes: se as incursões armadas, os bloqueios de portos e as intervenções diretas nas finanças dos devedores parecem ter hoje saído de moda, ficou a truculência dos banqueiros atuais que, mesmo resguardada pelos salões acarpetados dos grandes hotéis, nada fica a dever à ética enviesada de seus predecessores.
0s devedores, por sua vez, parecem ter estacionado nas banalidades conceituais da Doutrina Drago, uma vez que o chamado Consenso de Cartagena nada mais fez, até agora, do que reconhecer o óbvio: a carga financeira é insuportável, os programas de reajuste são inadequados, mas continua-se a drenar recursos líquidos para o exterior a título do serviço da dívida. Se não parece tão simples proclamar a ilegalidade jurídica dos contratos de empréstimo, alguns Governos tem procurado avançar a tese da ilegitimidade de fato das dívidas atuais, sem muitos resultados tangíveis ate aqui.
O livro de Santiago Fernandes procura justamente fornecer argumentos econômicos para sustentar esta última posição e é com base nessa pretensão que ele deve ser julgado. Os três mecanismos de descapitalização por ele mencionados – resumindo: desequilíbrio nas relações de troca, manipulações de bancos estrangeiros e fuga de capitais – podem realmente ser responsabilizados pela acumulação do enorme passivo financeiro que caracteriza hoje grande parte do Terceiro Mundo ?
A ilegitimidade da dívida externa brasileira e de diversos outros países em desenvolvimento só poderá ser comprovada na prática se estabelecermos um vínculo estrutural, isto é uma relação causal, entre os fatores acima citados e o processo de formação das obrigações financeiras externas desses países. Uma análise isenta das relações econômicas internacionais dos países em desenvolvimento constataria, efetivamente, que os três fatores selecionados atuaram de forma negativa, muitas vezes de maneira contundente, sobre as contas nacionais desses países, agravando os desequilíbrios externos e ampliando indiretamente a dimensão do endívidamento externo.
Os dados não são porém conclusivos quanto à transformação daqueles elementos contingentes em fatores estruturais do endívidamento externo dos países em desenvolvimento, no sentido em que eles passariam de necessários a suficientes. Não cabe, nos limites desta resenha, uma análise detalhada de cada um daqueles fatores considerados como dotados de relevância causal no processo de endívidamento externo, mas não se pode deixar de notar que, no plano das variáveis explicativas, nem sempre é facil ou possível converter a realidade empírica em paradigma interpretativo.
Em outros termos, o possível histórico não pode ser automaticamente convertido em lógico necessário: ainda que aqueles mecanismos tenham efetivamente atuado como processos defraudadores de nosso equilíbrio externo, não existe um nexo diretamente causal que os ligue ao passivo financeiro acumulado ao longo dos últimos anos. A descapitalização pode efetivamente ter resultado daqueles processos defraudadores de nossas riquezas, mas o endividamento não foi provocado, do ponto de vista formal, por lesivos contratos de empréstimo feitos pelas elites do Terceiro Mundo e nos quais tivessem sido expressamente consignados o intercâmbio desigual, a manipulação bancária e a fuga de capitais.
O endívidamento atual deriva de causas essencialmente financeiras, ligadas à forma de funcionamento do mercado de capitais de empréstimo e que incidem prioritariamente sobre o serviço do principal em regime de taxas de juros flutuantes. Do ponto de vista estritamente econômico, a ilegalidade de alguns contratos de empréstimo e de determinadas práticas bancárias, bem como a injustiça e a irracionalidade da transferência de recursos operada apenas para servir a dívida não são suficientes para caracterizar uma situação de ilegitimidade da dívida externa.
O conceito de (i)legitimidade, segundo Mestre Aurelio, refere-se ao fato de terem sido ou não atendidos os requisitos legais ou a qualidade ou condição de desarrazoado e injusto. É evidente que Santiago Fernandes descarta o entendimento jurídico-legal desse conceito, preferindo encará-lo do ponto de vista da autenticidade ou da adequação aos critérios da razão e da justiça. Ainda que a razão e a justiça pudessem militar em favor da tese da ilegitimidade da dívida externa do Brasil e do Terceiro Mundo, deve-se reconhecer que o sistema econômico internacional está muito longe de fundar-se nesses dois princípios.
As relações de espoliação e de expropriação de recursos, no quadro da interação centro-periferia (que Braudel chama de “economia-mundo” e Wallerstein de “capitalismo histórico”), constituem em ultima instância a base sobre a qual se assentam a desigualdade na distribuição de riquezas e a estrutura iníqua do poder mundial. Uma vez que a organização atual da produção social não foi feita para reparar injustiças ou introduzir a igualdade de chances não há razão de esperar que a ordem internacional venha a ser fundada em imperativos éticos ou critérios morais. A menos de se tomar uma decisão política de cancelar simplesmente o serviço ou o principal da dívida, decisão que só pode resultar de uma nova correlação de forças no plano das relações inter-estatais, os atuais países endívidados continuarão a transferir uma parte de suas riquezas para os cofres dos países credores, independentemente do caráter mais ou menos legítimo (ou ilegítimo, como se queira) dos mecanismos de espoliação.
Os argumentos acima expostos em nada invalidam o valor do livro de Santiago Fernandes no que se refere a uma correta avaliação do funcionamento atual do sistema monetário e financeiro internacional e a urgente necessidade de sua restruturação nas linhas propostas outrora por Lord Keynes, tendentes à constituição da uma International Clearing Union (mas por ele mesmo fraudadas com a criação do FMI em Bretton-Woods. Sem dúvida que a exigência de Fernandes, no sentido do cancelamento da dívida do Terceiro Mundo, será dificilmente cumprida integralmente, mas as regras de funcionamento dessa Câmara mundial de Compensações, relegando o ouro a seu papel de “relíquia bárbara” e introduzindo uma moeda bancária (o “bancor”) para a regulação dos desequilíbrios de balança de pagamentos, devem ser seriamente estudadas por qualquer autoridade monetária tant soit peu honnête e responsável.
Não sejamos muito otimistas porém: a multilateralização dos ajustes de pagamentos, se ocorrer, ficará durante muito tempo restrita às economias desenvolvidas, que precisarão coordenar previamente suas políticas monetárias e fiscais. Pode-se alternativamente pensar em soluções mais modestas, envolvendo projetos de integração regional mobilizando países relativamente homogêneos, como o demonstra a experiência da Comunidade Européia.
Aqui Santiago Fernandes antecipa-se às tendências futuras de desenvolvimento em escala continental, ao propor uma Câmara Regional de Compensação Multilateral para a América Latina e a instituição de uma moeda comum, o “Latinor”, para ajustes comerciais e financeiros que até agora são realizados bilateralmente ou utilizando-se de moedas fortes, no caso o dólar. Os recentes acordos de integração comercial e industrial do Brasil com a Argentina e o Uruguai, lançando as bases de um espaço econômico comum no Cone Sul, e as negociações para a criação de uma nova moeda de câmbio (o “gaúcho”), vêm dar inteiramente razão a Santiago Fernandes.
A ousadia e a originalidade da maior parte das teses do autor tornam sem dúvida alguma deveras atrativa a leitura deste livro, verdadeiro manancial de idéias refrescantes na atual pasmaceira da “ciência econômica”. A razão e o bom senso parecem caracterizar este economista “heterodoxo” – para usar um termo na moda – ainda que não concordemos com todas as suas propostas.
A discordância aliás não está na justeza das medidas propostas, sobretudo aquelas relativas à dívida externa do Terceiro Mundo, mas tão somente num julgamento diverso do funcionamento do sistema internacional e sua eventual adequação aos princípios da razão e da equidade. Santiago Fernandes deve provavelmente estar certo, mas parece avançado demais para sua época. O futuro lhe dará razão, mas, como diria Lord Keynes, no longo prazo estaremos todos mortos.

Ficha do Trabalho:
126. “Dívida Externa”, Brasília, 31 agosto 1986, 5 pp.
Resenha-crítica ao livro de Santiago FERNANDES, A Ilegitimidade da Dívida Externa do Brasil e do III Mundo (Rio de Janeiro, Nórdica, 1985)
Publicada na Revista Brasileira de Política Internacional (Rio de Janeiro: Ano XXIX, 1986/2, nº 115-116, pp. 127-130) e na Seção “Crítica” de Humanidades (Brasília, Ano III, nº 11, novembro 1986-janeiro 1987, pp. 14-115).
Relação de Trabalhos Publicados nº 030 e 033.
Anexo: Reação de Santiago Fernandes à minha resenha: “Controvérsia sobre a legitimidade da dívida”, publicada no Jornal do Commércio (Rio de Janeiro: 20 março 1987, p. 4).

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