Dívida Externa: uma velha história
Paulo Roberto de Almeida
Revista Brasileira de Política
Internacional
(Rio de Janeiro: Ano XXIX, 1986/2, nº
115-116, pp. 127-130)
FERNANDES, Santiago:
A
Ilegitimidade da Dívida Externa do Brasil e do III Mundo
(Rio de Janeiro: Nórdica, 1985)
Ao se perguntarem como foi
possível que o Brasil atingisse o nível de endívidamento externo a que chegou,
sem que mecanismos de controle fossem acionados, os parlamentares responsáveis
pela CPI da Dívida Externa e dos Acordos Brasil-FMI levantaram a questão da
ilegalidade dos empréstimos contratados. Com efeito, argumentaram eles, em
nenhum momento os instrumentos contratuais da dívida foram submetidos à
processualística constitucional da apreciação legislativa, nem poderia o Banco
Central renunciar à imunidade jurisdicional e aceitar foro judicial nos países
credores (Nova York e Londres) para julgamento de pendências e eventual
decretação de penhora dos bens mantidos no exterior. Constatada a ilegalidade
dos contratos de empréstimo, não apenas se deveria decretar sua nulidade por
inconstitucionalidade, mas igualmente declarar a responsabilização criminal dos
responsáveis pela enorme dívida e pelas escandalosas cartas de intenção
assinadas com o FMI. Como se sabe, nada disso aconteceu.
Ao tratar da mesma
problemática em seu curioso e instigante livro, o economista Santiago Fernandes
prefere analisar a questão do ponto de vista da ilegitimidade da dívida externa
do Brasil e dos países do Terceiro Mundo. A ilegitimidade decorreria, segundo
ele, da ação conjugada de três processos descapitalizadores: a) a secular
deterioração dos termos de intercâmbio, drenando recursos das nações pobres
para os países ricos; b) a penetração financeira do Terceiro Mundo por
instituições e agências bancárias dos países centrais, que passam a operar com
recursos locais e muitas vezes a remeter divisas obtidas com manipulações
cambiais; c) a evasão de capitais, oficial e criminosa, propiciada pela
singular e perniciosa situação de privilégio de que goza o dólar, como moeda de
reserva internacional. Constatada a ilegitimidade das dívidas do Terceiro
Mundo, não apenas se deveria decretar o seu repúdio, puro e simples, mas
igualmennte encetar a reorganização do sistema monetário e financeiro
internacional, desmonetizando o ouro e transformando o FMI numa Câmara
Internacional de Compensação. Como se sabe, nada disso aconteceu tampouco.
Os banqueiros
internacionais receberiam com céticos sorrisos propostas de renegociação que
utilizassem os argumentos da legalidade ou da legitimidade das dívidas
contraídas pelos países em desenvolvimento. A História parece lhes dar razão:
na longa experiência de renegociação das dívidas de Estados temporariamente
insolventes, o repúdio completo foi comparativamente raro, ocorrendo em alguns
casos uma redução temporária, mas não uma cessação completa do serviço da
dívida.
Na época em que a Europa
atuava sozinha como world’s banker, ocorreram pelo menos dois períodos de
insolvências generalizadas: ao final das independências latino-americanas, na
terceira década do século XIX, e nos anos setenta desse século, envolvendo
novamente países latino-americanos e alguns médio-orientais (Turquia, Egito). A
Grã-Bretanha foi evidentemente o primeiro país a sentir necessidade de proteger
seus interesses e, mesmo na ausência de qualquer apoio governamental, os grupos
privados organizaram, desde 1868, uma Corporation of Foreign Bondholders. Os
resultados parecem ter sido animadores, pois já em princípios dos anos 80, o
economista britânico R.L. Nash informava que “the losses caused through defaults
were, in the long run almost insignificant compared with the large gains
derived by British investors over the whole field of foreign and colonial
securities” (A Short Inquiry into the Profitable Nature of Our Investments;
London: Wilson, 1881, p. 9).
Em raras ocasiões – como
nos casos históricos do México (1861) e da Venezuela (1902) – os governos
detentores de títulos de dívida pública chegaram a fazer apelo à ação armada
para o ressarcimento dos débitos, provocando, no campo jurídico-conceitual, a primeira
contestação à até então dominante “teoria dos credores”. Esta, como se sabe,
afirma que a obrigação do devedor é controlada pelo Direito privado dos
contratos e que as relações entre as partes estão reguladas por instrumentos
vinculativos: quando um Estado contrata um empréstimo ele tacitamente abdicaria
de seu caráter soberano e se submeteria voluntariamente às regras do Direito
privado.
Para contrapor-se a essa
doutrina, o então Ministro argentino das Relações Exteriores, Luis Drago,
formulou uma “teoria dos devedores”, colocando ênfase no caráter soberano do
Estado devedor, na impossibilidade de se perseguir judicialmente o Estado e na
definição da dívida como uma simples “questão de honra”. Para conciliar essas
posições antitéticas, surgiu, posteriormente, uma terceira doutrina, a “teoria
do contrato sui generis”, que via as transações de empréstimos como contratos
de Direito público.
Seja como for, a
Corporation britânica parece ter servido de modelo para diversos outros grupos
organizados na França, na Bélgica, na Alemanha e na Holanda, bem como para o
American Foreign Bondholders Protective Council, organizado diretamente pelo
Departamento de Estado norte-americano em 1932, como consequência do terceiro
grande período de insolvências generalizadas, provocado pelo bank crash de
1929-1931, que trouxe consigo uma serie de inadimplências na Europa e na
América Latina. Os ingleses, que asseguraram sozinhos o funding loan brasileiro
de 1898, tiveram, em 1934, de ceder terreno aos norte-americanos, como observa
o historiador econômico Edwin Borchard (State Insolvency and Foreign
Bondholders; New Haven: Yale, 1951, p. 343).
A estrutura da comunidade
financeira internacional alterou-se substancialmente no 2° pós-guerra, com a
emergência do FMI e do Banco Mundial, mas sobretudo com o desenvolvimento
extraordinário do setor bancário privado. Assim, as renegociações provocadas
pelo quarto grande período de defaults, inaugurado em princípios da década de
80, são normalmente conduzidas pelos Advisory Banking Committees, criados pela
comunidade bancária privada, e supervisionadas pelo Clube de Paris e pelo FMI.
O cartel dos credores tem portanto uma longa história atrás de si, e uma das
mais dignificantes: se as incursões armadas, os bloqueios de portos e as intervenções
diretas nas finanças dos devedores parecem ter hoje saído de moda, ficou a
truculência dos banqueiros atuais que, mesmo resguardada pelos salões
acarpetados dos grandes hotéis, nada fica a dever à ética enviesada de seus
predecessores.
0s devedores, por sua vez,
parecem ter estacionado nas banalidades conceituais da Doutrina Drago, uma vez
que o chamado Consenso de Cartagena nada mais fez, até agora, do que reconhecer
o óbvio: a carga financeira é insuportável, os programas de reajuste são inadequados,
mas continua-se a drenar recursos líquidos para o exterior a título do serviço
da dívida. Se não parece tão simples proclamar a ilegalidade jurídica dos
contratos de empréstimo, alguns Governos tem procurado avançar a tese da
ilegitimidade de fato das dívidas atuais, sem muitos resultados tangíveis ate
aqui.
O livro de Santiago
Fernandes procura justamente fornecer argumentos econômicos para sustentar esta
última posição e é com base nessa pretensão que ele deve ser julgado. Os três
mecanismos de descapitalização por ele mencionados – resumindo: desequilíbrio
nas relações de troca, manipulações de bancos estrangeiros e fuga de capitais –
podem realmente ser responsabilizados pela acumulação do enorme passivo
financeiro que caracteriza hoje grande parte do Terceiro Mundo ?
A ilegitimidade da dívida
externa brasileira e de diversos outros países em desenvolvimento só poderá ser
comprovada na prática se estabelecermos um vínculo estrutural, isto é uma
relação causal, entre os fatores acima citados e o processo de formação das
obrigações financeiras externas desses países. Uma análise isenta das relações
econômicas internacionais dos países em desenvolvimento constataria,
efetivamente, que os três fatores selecionados atuaram de forma negativa,
muitas vezes de maneira contundente, sobre as contas nacionais desses países,
agravando os desequilíbrios externos e ampliando indiretamente a dimensão do
endívidamento externo.
Os dados não são porém
conclusivos quanto à transformação daqueles elementos contingentes em fatores
estruturais do endívidamento externo dos países em desenvolvimento, no sentido
em que eles passariam de necessários a suficientes. Não cabe, nos limites desta
resenha, uma análise detalhada de cada um daqueles fatores considerados como
dotados de relevância causal no processo de endívidamento externo, mas não se
pode deixar de notar que, no plano das variáveis explicativas, nem sempre é
facil ou possível converter a realidade empírica em paradigma interpretativo.
Em outros termos, o
possível histórico não pode ser automaticamente convertido em lógico
necessário: ainda que aqueles mecanismos tenham efetivamente atuado como
processos defraudadores de nosso equilíbrio externo, não existe um nexo
diretamente causal que os ligue ao passivo financeiro acumulado ao longo dos
últimos anos. A descapitalização pode efetivamente ter resultado daqueles
processos defraudadores de nossas riquezas, mas o endividamento não foi
provocado, do ponto de vista formal, por lesivos contratos de empréstimo feitos
pelas elites do Terceiro Mundo e nos quais tivessem sido expressamente
consignados o intercâmbio desigual, a manipulação bancária e a fuga de
capitais.
O endívidamento atual
deriva de causas essencialmente financeiras, ligadas à forma de funcionamento
do mercado de capitais de empréstimo e que incidem prioritariamente sobre o
serviço do principal em regime de taxas de juros flutuantes. Do ponto de vista
estritamente econômico, a ilegalidade de alguns contratos de empréstimo e de
determinadas práticas bancárias, bem como a injustiça e a irracionalidade da
transferência de recursos operada apenas para servir a dívida não são
suficientes para caracterizar uma situação de ilegitimidade da dívida externa.
O conceito de
(i)legitimidade, segundo Mestre Aurelio, refere-se ao fato de terem sido ou não
atendidos os requisitos legais ou a qualidade ou condição de desarrazoado e
injusto. É evidente que Santiago Fernandes descarta o entendimento
jurídico-legal desse conceito, preferindo encará-lo do ponto de vista da
autenticidade ou da adequação aos critérios da razão e da justiça. Ainda que a
razão e a justiça pudessem militar em favor da tese da ilegitimidade da dívida
externa do Brasil e do Terceiro Mundo, deve-se reconhecer que o sistema
econômico internacional está muito longe de fundar-se nesses dois princípios.
As relações de espoliação e
de expropriação de recursos, no quadro da interação centro-periferia (que
Braudel chama de “economia-mundo” e Wallerstein de “capitalismo histórico”),
constituem em ultima instância a base sobre a qual se assentam a desigualdade
na distribuição de riquezas e a estrutura iníqua do poder mundial. Uma vez que
a organização atual da produção social não foi feita para reparar injustiças ou
introduzir a igualdade de chances não há razão de esperar que a ordem
internacional venha a ser fundada em imperativos éticos ou critérios morais. A
menos de se tomar uma decisão política de cancelar simplesmente o serviço ou o
principal da dívida, decisão que só pode resultar de uma nova correlação de forças
no plano das relações inter-estatais, os atuais países endívidados continuarão
a transferir uma parte de suas riquezas para os cofres dos países credores,
independentemente do caráter mais ou menos legítimo (ou ilegítimo, como se
queira) dos mecanismos de espoliação.
Os argumentos acima
expostos em nada invalidam o valor do livro de Santiago Fernandes no que se
refere a uma correta avaliação do funcionamento atual do sistema monetário e
financeiro internacional e a urgente necessidade de sua restruturação nas
linhas propostas outrora por Lord Keynes, tendentes à constituição da uma
International Clearing Union (mas por ele mesmo fraudadas com a criação do FMI
em Bretton-Woods. Sem dúvida que a exigência de Fernandes, no sentido do
cancelamento da dívida do Terceiro Mundo, será dificilmente cumprida
integralmente, mas as regras de funcionamento dessa Câmara mundial de
Compensações, relegando o ouro a seu papel de “relíquia bárbara” e introduzindo
uma moeda bancária (o “bancor”) para a regulação dos desequilíbrios de balança
de pagamentos, devem ser seriamente estudadas por qualquer autoridade monetária
tant soit peu honnête e responsável.
Não sejamos muito otimistas
porém: a multilateralização dos ajustes de pagamentos, se ocorrer, ficará
durante muito tempo restrita às economias desenvolvidas, que precisarão
coordenar previamente suas políticas monetárias e fiscais. Pode-se
alternativamente pensar em soluções mais modestas, envolvendo projetos de
integração regional mobilizando países relativamente homogêneos, como o
demonstra a experiência da Comunidade Européia.
Aqui Santiago Fernandes
antecipa-se às tendências futuras de desenvolvimento em escala continental, ao
propor uma Câmara Regional de Compensação Multilateral para a América Latina e
a instituição de uma moeda comum, o “Latinor”, para ajustes comerciais e
financeiros que até agora são realizados bilateralmente ou utilizando-se de
moedas fortes, no caso o dólar. Os recentes acordos de integração comercial e
industrial do Brasil com a Argentina e o Uruguai, lançando as bases de um
espaço econômico comum no Cone Sul, e as negociações para a criação de uma nova
moeda de câmbio (o “gaúcho”), vêm dar inteiramente razão a Santiago Fernandes.
A ousadia e a originalidade
da maior parte das teses do autor tornam sem dúvida alguma deveras atrativa a
leitura deste livro, verdadeiro manancial de idéias refrescantes na atual
pasmaceira da “ciência econômica”. A razão e o bom senso parecem caracterizar
este economista “heterodoxo” – para usar um termo na moda – ainda que não
concordemos com todas as suas propostas.
A discordância aliás não
está na justeza das medidas propostas, sobretudo aquelas relativas à dívida
externa do Terceiro Mundo, mas tão somente num julgamento diverso do
funcionamento do sistema internacional e sua eventual adequação aos princípios
da razão e da equidade. Santiago Fernandes deve provavelmente estar certo, mas
parece avançado demais para sua época. O futuro lhe dará razão, mas, como diria
Lord Keynes, no longo prazo estaremos todos mortos.
Ficha
do Trabalho:
126.
“Dívida Externa”, Brasília, 31 agosto 1986, 5 pp.
Resenha-crítica
ao livro de Santiago FERNANDES, A Ilegitimidade da Dívida Externa do Brasil e
do III Mundo (Rio de Janeiro, Nórdica, 1985)
Relação
de Trabalhos Publicados nº 030 e 033.
Anexo:
Reação de Santiago Fernandes à minha resenha: “Controvérsia sobre a
legitimidade da dívida”, publicada no Jornal do Commércio (Rio de Janeiro: 20
março 1987, p. 4).
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