Acabo de dar uma entrevista, muito curta, de apenas 10 ou 12 minutos, para a Rádio Transmundial, de São Paulo.
Eles queriam saber sobre a Magna Carta, o que foi, o que representou para a época, seus efeitos e o que representa hoje, para o mundo e para o próprio Brasil.
Como eles me mandaram as perguntas ontem, tinha preparado algumas notas, mais ou menos organizadas, em torno dessas perguntas, que transcrevo abaixo.
No meio da entrevista também teve perguntas sobre a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, e sobre direitos humanos, em geral, que não figuram no texto abaixo, pois não fui avisado devidamente.
Nem tudo o que vai escrito abaixo foi lido, obviamente, mas como me perguntaram onde os ouvintes poderiam ter mais informações sobre esse tema, indiquei este blog Diplomatizzando como a fonte desses materiais.
Além deste meu texto, gostaria de indicar esta outra postagem, que fiz no ano passado, como sendo a base do meu conhecimento sobre a Magna Carta:
http://diplomatizzando.blogspot.com/2014/07/magna-carta-800-anos-de-afirmacao-de.html
No começo deste ano de 2015, fui a Washington, especialmente para visitar uma exposição sobre os 800 anos da Magna Carta na Biblioteca do Congresso, a Library of Congress, onde eu gostaria de morar, se fosse possível.
Enquanto isto não é possível, fiquem com este texto.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 29 de maio de 2015
PS.: A entrevista foi gravada para o programa "
Fique Por Dentro", mas o aúdio, que recebi por email, ainda não se encontra disponível no site, que é o seguinte:
http://www.transmundial.org.br/interna/radio/fique-por-dentro
Magna Carta para os nossos
tempos
Paulo
Roberto de Almeida
Notas
para entrevista ao vivo na Rádio TransMundial;
Programa
Fique por Dentro; 29/05/2015; 8h35;
Rádio Trans Mundial:
1) O que é a
Magna Carta?
No dia 15 de junho de 1215, nas planícies de Runymede,
não muito longe de onde se situa o Castelo de Windsor atualmente, uma
assembleia de barões feudais confrontava um soberano despótico, o rei João, que
vivia querendo cobrar mais impostos de seus súditos para financiar a suas
guerras na França. Os barões obrigaram o rei a assinar um documento
reconhecendo os seus direitos, que eram tradicionais na Inglaterra medieval, e
assim nasceu a Magna Carta, um espécie de carta-compromisso, ou um memorando de
entendimento, que depois de assinada pelo rei foi enviada a todos os homens
livres para ser lida e ver consagrados esses direitos.
Essa não foi todavia a versão definitiva da
Magna Carta, mas apenas uma reafirmação do compromisso que tinha sido assumido
pelo pai de João, Henrique II, que havia assegurado que não imporia mais
tributos sobre os nobres sem o consentimento deles. Houve uma segunda versão,
aprovada no dia 19, onde o termo barões foi substituído por “homens livres”,
uma disposição muito importante, que teria consequências, 650 anos mais tarde na
Nova Inglaterra, as colônias americanas que se rebelaram contra os impostos do
rei George, precipitando a independência dos EUA.
O rei João morreu em 1216, e para assegurar o
trono para seu filho de 9 anos, Henrique III, uma nova versão da Magna Carta
foi elaborada, com algumas novas provisões, garantindo os mesmos direitos.
Quando o jovem rei assumiu o controle definitivo do trono, em 1225, uma última
versão da Carta foi produzida, e é essa versão que subsistiu até nossos dias,
incorporada nos princípios constitucionais ingleses e americanos. Esses
princípios foram ainda usados na revolução inglesa do século 17, contra o rei
Jaime I, que acabou sendo decapitado pelo parlamento, uma vez que demonstrava
as mesmas tentações despóticas que seu predecessor do século 13. E foi esse
renascimento da Magna Carta, durante a Revolução Inglesa que inspirou os
colonos americanos a também declararem sua independência da metrópole, como
homens livres. O Bill of Rights, a Declaração de Direitos da Inglaterra, de
1689, derivada da segunda revolução, dita Gloriosa, que derrubou o último rei
Tudor, Jaime II, e que importou uma nova dinastia do continente para governar a
Inglaterra, também influenciou os colonos americanos a exigirem a sua
declaração de direitos um século mais tarde.
2) Qual era o
momento politico que antecedeu à sua criação?
João, dito João Sem Terras (John LackLand), era
o quarto filho de Henrique II, que não tinha mais terras para dividir entre seus
herdeiros, e acabou passando a João um vago domínio que tinha sobre terras no
atual território francês. Ele passou metade de sua vida adulta tentando
garantir a posse dessas terras, e para isso tinha de mobilizar os barões
ingleses e os seus servos para partirem para custosas guerras na França. Seu
irmão mais velho, Ricardo, dito Coração de Leão, tinha herdado a maior parte de
suas propriedades do país, mas no final do século 12, em 1188, tinha partido
para a Terceira Cruzada, e passou longos anos tentando recuperar Jerusalém de
Saladin, o guerreiro muçulmano que tinha conquistado a cidade santa. Com a
morte de Ricardo, em 1199, João se torna o rei da Inglaterra, até a sua morte,
em 1216, mas como seu irmão, passa grande parte do tempo fora da Inglaterra,
lutando para conquistar ou assegurar suas terras na França. Ele começou a taxar
pesadamente seus súditos, inclusive o próprio clero e a Igreja, o que causou a
revolta geral.
3) E depois? O
que ela ocasionou?
O que
caracteriza a Magna Carta e a distingue como documento historicamente fundador
de todas as democracias modernas? Ela contém muitos dispositivos, mas os
principais são estes.
1) Ninguém está
acima da lei, nem mesmo o rei. Todos devem responder judicialmente por
infrações à lei, independentemente do seu status ou condição social, ou até mesmo
de suas funções governamentais.
2)
Ninguém pode ser processado ou condenado sem o devido processo legal.
3)
O rei não pode tributar os seus súditos sem o consentimento deles.
Em outros termos, trata-se de um compromisso
entre o soberano e seus súditos, para que seu poder seja reconhecido como
legítimo. Ela é a base do constitucionalismo moderno, ainda que anglo-saxão,
que é diferente do nosso tipo de constitucionalismo, de base continental
europeia. Esse tipo de compromisso inglês é muito usado no seu direito
consuetudinário, ou seja, o customs law,
não escrito, o direito tradicional que é ferrenhamente defendido no mundo
anglo-saxão. A Inglaterra é a mais antiga democracia em funcionamento no mundo,
e não tem Constituição escrita. É claro que nem tudo estava na Magna Carta, mas
ela foi a base, também, do Bill of Rights, de 1689, que persiste até hoje, e
que instituiu o princípio de que o rei reina, mas não governa. A governança é
deixada ao Parlamento.
4) Qual a sua
importância e o seu conteúdo?
Sua importância é fundamental, sobretudo para o
mundo anglo-saxônico. Quando falamos de democracia, no Brasil, temos um
entendimento que se poderia chamar de superestrutural, ou seja, a tradicional
repartição de poderes para o funcionamento do Estado. Democracia para os
anglo-saxões é algo muito mais infraestrutural, ou sistêmico, compreendendo
direitos fundamentais para homens livres, e garantindo que o Estado esteja a
seu serviço, não estes a serviço do Estado. Essa diferença é fundamental.
Qual o mais importante direito garantido pelos homens livres contra
o poder arbitrário do rei João? O de que nenhum governante tem o direito de
impor tributos sem o consentimento dos governados, ou seja, daqueles que criam
riquezas e que são justamente taxados em favor desses governantes. Aliás, não
deveria ser assim: impostos devem servir, antes de mais nada, para o
oferecimento de serviços públicos, aqueles mais essenciais: segurança cidadã,
justiça pública, defesa da nação, relações exteriores, educação básica e
algumas obras de infraestrutura (embora estas também possam ser feitas pela
iniciativa privada).
A participação dos cidadãos, por meio de representantes eleitos, na
fixação dos tipos de receitas, na definição dos seus níveis de imposição, ou
alíquotas, bem como na decisão sobre como serão gastas essas receitas, é
absolutamente indispensável, e nenhuma democracia digna desse nome se entende
sem que a criação de riqueza e sua apropriação pelos governantes escape ao
exame dos cidadãos. No Brasil, parece que essa característica fundamental da
arte de governar ainda não se encontra bem assente, ou é simplesmente ignorada;
aqui se costuma criar contribuições, aumentar impostos, corrigir para cima
alíquotas, tarifas e todos os tipos de taxas sem sequer se dignar a fornecer
explicações aos governados, os criadores de riqueza e pagadores de impostos.
Não é por outro motivo que os países anglo-saxões – ou seja, a Grã-Bretanha, ou
Reino Unido, em primeiro lugar, os Estados Unidos, em segundo e mais importante
lugar, mas também países como o Canadá, a Austrália, a Nova Zelândia – são as
democracias mais antigas e mais sólidas do mundo, e estão também entre os
países mais prósperos, mais inovadores, onde o meio ambiente para negócios é o
mais acolhedor em todo o mundo. A Índia atual é inconcebível sem algumas das
tradições inglesas mais relevantes, entre elas o governo parlamentar, a justiça
independente e a propensão à criação de riqueza.
Tudo começou bem lá atrás, quando os homens livres impuseram ao
soberano a limitação ao poder de tributar sem o consentimento dos governados. A função essencial de todos
os parlamentos dignos desse nome é justamente esta: discutir e aprovar uma peça
orçamentária, transformá-la em lei e vigiar para que ela seja integralmente
cumprida no seguimento de sua promulgação enquanto lei. Poucos países no mundo
ousariam considerar a lei orçamentária meramente autorizativa. A Magna Carta
foi feita justamente para que o rei não estabelecesse ele mesmo os limites e o
alcance das receitas públicas e decidisse sozinho sobre o seu dispêndio: o
parlamento tem nesse rito seu ato mais relevante entre todas as suas outras
atribuições. Ocorre que no Brasil o próprio parlamento conspurca o sentido do
planejamento orçamentário, ao fazer, a cada ano, estimativas exageradas quanto
às receitas esperadas, apenas para poder introduzir emendas paroquiais nas
previsões de despesa. E, em nenhum lugar do mundo, se constitucionalizou a
obrigação de que essas emendas, feitas ao arrepio da peça orçamentária
original, sejam pagas com precedência sobre todas as demais, ou seja, que elas
escapem do contingenciamento orçamentário, que, em si, já é um absurdo.
5) O que ela
trouxe para os dias atuais?
Depende de que países e de quais contextos
estamos falando. Se formos observar os países anglo-saxões, impossível não
reconhecer que se trata das mais antigas e mais sólidas democracias de todo o
mundo. Se formos atentar, por exemplo, para o princípio fundamental da Magna
Carta, que é o governo pelas leis, não diretamente pelos homens, veremos que se
trata de algo absolutamente revolucionário, para a Idade Média e mesmo para os
dias de hoje. A limitação dos poderes do soberano, ou seja, do Estado, de sua
capacidade de taxar abusivamente, o respeito à lei e ao devido processo legal,
são absolutamente fundamentais para aquilo que os anglo-saxões chamam de
accountability, ou seja, a responsabilização dos governantes em tudo aquilo e
por tudo aquilo que diga respeito ao correto cumprimento da lei e o uso
adequado dos recursos públicos, em absoluta transparência e prestação de contas
para a população e, em primeiro lugar para os seus representantes, ou seja, os
parlamentares.
No caso do Brasil, entretanto, isso ainda parece que não “pegou”,
como se diz, mesmo 800 anos depois da Magna Carta: nossos governantes continuam
a se julgar acima da lei; pior, se permitem fraudar a lei, e em muitos casos
impunemente. Nossa democracia é de baixa qualidade, e falha em critérios
fundamentais da Magna Carta.
O que falta para que o
Brasil entre no espírito da Magna Carta? Falta aquilo que os próprios ingleses
chamam de “accountability”, que é uma palavra que poderia ser funcionalmente
traduzida como sendo “responsabilização”, ou seja, aquele que detém algum
poder, algum mandato, uma responsabilidade sobre uma determinada área de
interesse público, e sobretudo aquele que lida, manipula, intermedeia e define
dotações obtidas com recursos capturados na comunidade de contribuintes
compulsórios, esse alguém deve assumir responsabilidade por todas as operações
efetuadas com esses recursos, que devem receber a maior transparência. Ele deve
responder por tudo isso.
Como sabemos, na verdade, que essas coisas são difíceis de serem
verificadas, a melhor solução, então, seria fazer com que um mínimo de recursos
coletivos passasse pelas mãos do Estado. É uma evidência de senso comum que
Estados muito grandes chamam naturalmente a corrupção, e não adianta introduzir
mecanismos de verificação e de fiscalização, pois os espertos sempre vão
encontrar uma maneira de burlar os controles. Então, quanto menos dinheiro
passar pelas mãos do Estado, melhor. E quanto mais recursos próprios ficarem
com os verdadeiros criadores de riquezas, que somos todos nós, melhor ainda.
Creio que esta é a mensagem da Magna Carta a todos nós, oitocentos
anos depois que ela foi escrita. Claro que seus principais dispositivos têm a
ver com a administração da Justiça, outro ponto extremamente controverso no
Brasil, mas a principal questão, atualmente, é a do funcionamento da economia,
dos impostos, da corrupção e a da má condução da política econômica. Por
coincidência, os países mais prósperos do mundo, e os menos estatizados, são
justamente aqueles que têm a Magna Carta como fonte inspiradora de sua
organização institucional, ou até diretamente, como parte de seu ordenamento
constitucional.
Seria coincidência, ou é mesmo uma das virtudes da Magna Carta a de
prover um saudável equilíbrio entre os poderes dos governos e os deveres e os
direitos dos governados? Creio que a resposta se impõe por si mesma...
Paulo
Roberto de Almeida
Anápolis,
2826: 20 maio 2015, 3 p.; Brasília, 29 de maio de 2015, 5 p.
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Fonte
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