Temas de relações internacionais, de política externa e de diplomacia brasileira, com ênfase em políticas econômicas, em viagens, livros e cultura em geral. Um quilombo de resistência intelectual em defesa da racionalidade, da inteligência e das liberdades democráticas.
O que é este blog?
Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.
“ Peço desculpas por colocar aqui um texto tão longo, mas postei no face e gostaria de compartilhar com vocês, principalmente pelo que ouvi de uma conceituada médica de Brasília, que me falou sobre a situação do tal prazo para o aborto, nos hospitais, e do que estão fazendo para que ele seja ultrapassado e impeça que as mulheres abortem. Aqui está o que escrevi. Minha indignação me fez ser um tanto dura. "Há algum tempo ouvi de uma médica o relato sobre muitas mulheres estupradas que vão, DENTRO DO PRAZO LEGAL, aos hospitais para fazer o aborto ao qual elas têm DIREITO e que passam por uma série de exames, aconselhamentos e outros procedimentos ALÉM DOS NECESSÁRIOS e ALÉM DOS QUE ESTÃO DENTRO DA LEI, e que nada mais são do que SUBTERFÚGIOS para que elas PERCAM O REFERIDO PRAZO. Sem falar que aparecem, de repente, "conselheiras" de todos os lados e pessoas que tentam convencê-las a não abortar, também fazendo com que se esgote o prazo (esse é o objetivo). E não se trata da consulta de praxe com psicólogo, é algo orquestrado com uma finalidade deliberada: extrapolar o prazo legal!!!
Entenderam, então, o risco imenso da PL?
A médica que relatou esse fato afirmou que, cada vez mais, os que se dizem religiosos estão OCUPANDO ESPAÇOS DENTRO dos hospitais para IMPEDIR, de maneira não explícita, é claro, que as mulheres e mesmo as meninas (que ainda são crianças, o que ocorre com frequência em casos de estupro), possam fazer o ABORTO LEGAL.
Agora imaginem com a tal lei, será uma tragédia.
Não vou discutir aqui a OPINIÃO de cada um de acordo com a SUA RELIGIÃO. O Brasil é um país LAICO. As leis não podem se fundamentar em religião alguma.
E falando sobre gravidez/aborto em geral e não só sobre casos de estupro, cabe lembrar que essas mesmas pessoas que querem impedir abortos, costumam ser igualmente contra educação sexual nas escolas e contra os alertas que devem ser feitos para o uso de meios eficazes de controle de natalidade, alertas aos jovens que se iniciam cedo no sexo, SIM.
Enquanto isso, sabemos bem que prosperam as clínicas CLANDESTINAS de aborto, que cobram bem CARO pelo procedimento e que são "utilizadas" por pessoas que têm dinheiro para tal. Gostaria muito de perguntar aos senhores parlamentares, muitos deles sabidamente verdadeiros cafajestes, quantas vezes já terão "bancado" discretamente abortos de suas amantes. É isso mesmo!!! Ou vocês acham que tais clínicas existiriam se não fossem usadas? E as mulheres pobres ou de classe média sem muitas posses, recorrem a abortos de altíssimo risco.
O caso das mulheres estupradas é o mais revoltante e essa PL é um HORROR, uma TRAGÉDIA. Nada é suficiente para descrever a sua BARBÁRIE. Mas a questão dos abortos tem que ser encarada de frente em todo o seu conjunto, já que é, sem a menor dúvida, algo que está agora correndo risco de grandes retrocessos.
E que fique claro, não vamos ser desonestos e ignorar o seguinte: ABORTO SEGURO é ABORTO PARA MULHERES RICAS ou MULHERES BANCADAS POR HOMENS RICOS. É bem evidente, não?"”
Comércio, Desarmamento, Direitos Humanos: reflexões sobre uma experiência diplomática
São Paulo: Paz e Terra, 1999.
Desde o final dos anos 60, quando publicou um artigo pioneiro nesta mesma revista (“Uma interpretação do sistema das relações internacionais do Brasil”, RBPI, Rio de Janeiro: ano 10, n. 39/40, 1967, pp. 81-100), o professor e empresário Celso Lafer tem sido uma das presenças mais constantes, se não a mais frequente, na bibliografia brasileira de relações internacionais. Gerações de estudantes das universidades e da academia diplomática (o Instituto Rio Branco do MRE) debruçaram-se sobre seus artigos e livros, dali retirando reflexões inovadoras sobre o papel do realismo e do idealismo na política internacional, lições enriquecedoras sobre as desigualdades intrínsecas entre as nações na ordem política e na economia internacional, sobre a situação do Brasil no comércio internacional, bem como contribuições de alto sentido filosófico e moral sobre a defesa dos direitos humanos e das causas humanitárias num mundo em mudança. Mas Celso Lafer não apenas desempenhou-se como intelectual de grande brilho nas lides acadêmicas; ele também exerceu seu talento na gestão prática das relações internacionais e na política exterior do Brasil, retomando com isso uma herança familiar, pois que é sobrinho do falecido político Horácio Lafer, que foi ministro da Fazenda do segundo governo Vargas e Chanceler de Juscelino Kubitschek.
O livro aqui resenhado combina um pouco de todas essas aquisições intelectuais ao longo de uma vida dedicada ao estudo e ao trabalho em suas diferentes vertentes práticas de defesa dos interesses nacionais do Brasil no plano externo, pois que reunindo o que o autor chamou de “reflexões sobre uma experiência diplomática”. Ele já tinha tido a oportunidade de demonstrar suas qualidades à frente da chancelaria brasileira, num curto, porém profícuo período do início dos anos 90. Os textos coletados neste livro remetem à sua estada em Genebra, como representante brasileiro junto à OMC (que recuperou e desenvolveu o legado institucional do antigo GATT) e os demais organismos internacionais ali sediados, com destaque para a Conferência do Desarmamento e a Comissão dos Direitos Humanos (conformando as três seções em que se divide o livro).
Em Genebra, Celso Lafer não foi, porém, um simples representante “burocrático” dos interesses brasileiros nesses órgãos cruciais para nosso desenvolvimento econômico e nossa imagem externa, mas atuou propriamente no sentido de elevar o status do País no diálogo que ali se trava sobre temas comerciais, estratégicos e humanitários. Seus “relatórios” de gestão sobre os mecanismos de revisão de políticas comerciais ou sobre o órgão de solução de controvérsias, por exemplo, ou suas considerações sobre o “prosaico” regime de origem são invariavelmente recheados de argumentos de ordem geral, retirando ensinamentos sobre as formas de melhor inserir o Brasil no plano econômico mundial. Um dos melhores textos do volume é, precisamente, o que apresenta suas reflexões sobre os 50 anos do sistema internacional de comércio, do qual o Brasil é um dos founding fathers, tendo estado presente na criação do GATT em 1947-48. Essa primeira parte do livro de certo modo retoma e completa sua contribuição anterior oferecida em A OMC e a regulamentação do comércio internacional: uma visão brasileira (Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998).
No plano estratégico, igualmente, as conhecidas lições do intelectual dos anos 70 e 80 – sobre a conhecida disjunção entre ordem e poder no plano mundial ‑ são retomadas em seus argumentos sobre o novo quadro estratégico surgido com o final da Guerra Fria e a perspectiva concreta de um processo realista de desarmamento nuclear. Suas reflexões sobre as nova dimensões do desarmamento incorporam aliás a primeira “racionalização” de amplo escopo sobre a política externa brasileira depois da decisão corajosamente assumida pelo Presidente Fernando Henrique Cardoso em 1997 de fazer o Brasil aderir ao Tratado de Não-Proliferação Nuclear – durante anos denunciado pela diplomacia brasileira como discriminatório e ineficaz – e de inserir o País nos mais importantes esquemas de controle de armas de destruição em massa e seus vetores (Nuclear Suppliers Group, Regime de Controle de Tecnologias de Mísseis, CTBT, etc.). Esse mesmo texto, preparado originalmente para seminário organizado pela Fundação Alexandre de Gusmão e pelo IEA-USP, encontra-se aliás reproduzido em outro volume recentemente publicado, digno de registro: O Brasil e as novas dimensões da segurança internacional, organizado por Gilberto Dupas e Tullo Vigevani (São Paulo: Alfa-Ômega, 1999). Num outro artigo dessa mesma seção, sobre os chamados “dividendos da paz”, Celso Lafer lembra que já em 1960 o Chanceler Horácio Lafer propunha que se criasse um fundo internacional para o desenvolvimento, com recursos da corrida armamentista, que tinha de ser detida.
No plano da defesa dos direitos humanos, finalmente, não é preciso relembrar o papel de intelectual engajado e de promotor ativo desses direitos que Lafer exerceu durante toda a sua vida, aspecto já refletido, aliás, em muitos de seus trabalhos anteriores. Junto com Antônio Augusto Cançado Trindade, Lafer forma no batalhão de frente da proteção dos direitos humanos no plano interno brasileiro, tendo patrocinado a incorporação vários instrumentos que se encontravam numa espécie de “limbo” diplomático ou legal. A comemoração dos 50 anos da Carta da ONU e, logo em seguida, os da Declaração Universal de 1948 oferecem-lhe oportunidade para ressaltar o papel da organização na defesa desses direitos, no qual se destacam as atividades da CDH, criada já em 1946.
No conjunto, os textos coletados oferecem mais do que simples “reflexões sobre uma experiência diplomática”, de fato várias, pois que eles consolidam também os ensinamentos de sua gestão anterior como Chanceler à época da Conferência do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (1992). Eles conseguem realizar, na verdade, a virtude rara de combinar o insight diplomático com a sistematização teórica de quem, tendo começado sua carreira numa perspectiva quase que “kantiana” de observações e comentários gerais sobre a natureza do poder, teve em seguida a oportunidade de exercer seus talentos na vida prática de negociador internacional engajado na defesa dos interesses do País.
Ao longo do tempo o termo república assumiu vários significados designando de maneira genérica uma forma de relacionamento entre governantes e governados ou servindo para designar certos Estados tais como Roma, depois da queda da monarquia, e Siena, dos fins da Idade Média. No Brasil, o entendimento mais corrente está muito próximo daquele utilizado por Maquiavel, que inicia O Príncipe afirmando que “todos os Estados ... foram e são, ou repúblicas ou principados”, ou seja, uma forma de governo como alternativa à monarquia. Assim, no dia 15 de novembro é celebrado o dia em que a forma republicana de governo foi adotada no Brasil em substituição à monarquia. Com o passar dos anos a data passou a ter um caráter comemorativo tornando-se um costume fazer dela uma ocasião para discursos e outras manifestações laudatórias das virtudes e das vantagens da forma republicana de governo. Este breve ensaio, no entanto, pensando no que poderia haver de relevante para a compreensão da política brasileira, propõe uma reflexão em outra direção.
A observação dos acontecimentos na esfera política leva a crer que o sentido mais precioso do termo República não é o de forma de governo que substitui a Monarquia, mas sim o de res publica, isto é o do entendimento das instituições do Estado como coisa pública. Com efeito, olhando-se o Brasil de hoje, conclui-se que o advento da república não significou, após cinco gerações, uma forma mais avançada ou mais eficaz de organizar as instituições políticas. Na verdade, o que se observa nas nações consideradas mais avançadas do mundo é que não há diferença entre regimes republicanos e monárquicos, ao menos no que se refere à idéia de democracia representativa e quanto à capacidade de o Estado cumprir seu papel, como eixo da ordem política e econômica voltado para a promoção da prosperidade. Nesse sentido, a presente análise sugere que seria mais apropriado, a cada dia 15 de novembro, simplesmente examinar a trajetória das instituições políticas do País e, de forma sensata e ponderada, procurar identificar aquilo que poderia ou deveria ser feito para defender e aperfeiçoar a democracia e as instituições que governam o País para que sejam, efetivamente, republicanas.
REPÚBLICA, DEMOCRACIA E PROSPERIDADE
Em primeiro lugar vale insistir no fato de que uma escolha entre a forma republicana ou monárquica de governo não corresponde, na realidade, a uma opção a respeito do que pode haver de mais essencial na relação entre governantes e governados: liberdade, respeito às leis e direito de escolha. Há muito tempo, a república deixou de ser uma alternativa à tirania de príncipes autocráticos. O sentido essencial da república como expressão da vontade dos governados pode estar perfeitamente presente tanto nas monarquias quanto nos regimes chamados de republicanos. Parafraseando Maquiavel, pode-se dizer que “as grandes e modernas democracias de hoje ou são repúblicas ou monarquias constitucionais ...”. Em outras palavras, não se pode dizer que o apreço pela democracia e o apego ao processo de legitimação do poder político pela vontade dos governados, esteja menos presente na Dinamarca, no Reino Unido ou nos Países Baixos, que permanecem monarquias, do que nos Estados Unidos ou na França, que adotaram a forma republicana de governo. Esse fato sugere também que um conceito como democracia, entendido como princípio orientador da organização do Estado, pode se projetar em instituições muito variadas, não sendo possível, por exemplo, dizer que um sistema bicameral seja superior ou mais eficaz do que um parlamento unicameral, ou que o presidencialismo americano seja melhor do que o parlamentarismo britânico. As instituições resultam de processos históricos vividos de maneira individual e particular pelas nações, refletindo a combinação de uma variada gama de aspectos peculiares aos países que, dessa forma, ao longo do tempo e à sua própria maneira, vão construindo individualmente as instituições políticas que melhor lhes convém.
Mesmo do ponto de vista econômico, onde os dados quantitativos são abundantes, chama a atenção o fato de que não é possível estabelecer correlação entre formas democráticas de governo e formas de interação, entre Estado e economia, capazes de tornar a nação mais próspera. Ao longo da história, nações prosperaram dentro de um ambiente democrático e republicano, mas também prosperaram sob regimes autoritários e, em tempos mais recentes, casos como o da China e de outros países da Ásia lembram uma espécie de versão contemporânea do conceito de “absolutismo esclarecido”, que tanto entusiasmou muitos filósofos nos primórdios do Estado moderno. São governos bastante fortes que, de maneira autoritária, estabelecem padrões e normas de comportamento para os atores econômicos, tornando-os competitivos e gerando riqueza e abundância para suas sociedades. Pode-se argumentar que, no longo prazo, regimes autoritários acabam por tornar-se incompatíveis com o dinamismo exigido pelos negócios e pela inovação tecnológica que sustentam o progresso econômico. Por ora, no entanto, não há dados para confirmar essa hipótese e o analista pode apenas procurar sinais de que regimes políticos autoritários tornam-se, gradativamente, menos centralizadores e menos propensos à interferência na economia, à medida que a sociedade prospera e que, inevitavelmente, vai se tornando mais integrada à ordem econômica internacional.
Por outro lado, nas grandes democracias ocidentais, a interferência na economia se faz menos por meio de medidas políticas de governantes, que estão sujeitos a leis, e mais por meio das ações do Estado como ator econômico capaz de influenciar e mesmo orientar o ambiente econômico. Todavia, nesse domínio, a participação do Estado na economia varia muito, havendo países, como os Estados Unidos, onde o Estado representa aproximadamente 1/3 do PIB e nações como a maioria dos países mais prósperos na Europa onde o Estado ultrapassa a metade do PIB, sem que se possa dizer que tenham deixado de proteger e valorizar a livre iniciativa e a liberdade econômica, de uma forma mais ampla e que as economias desses países tenham deixado de ser competitivas nos mercados internacionais. Do mesmo modo, não é possível identificar qualquer correlação entre os níveis de participação e interferência do Estado na economia, com a forma republicana ou monárquica de suas instituições políticas. No Japão, que é uma monarquia, o Estado representa uma parcela da economia semelhante à dos Estados Unidos, enquanto na França republicana o Estado é, proporcionalmente, tão grande quanto em outros países europeus, que são monarquias e igualmente prósperas. Nenhum analista e nenhum grande partido político na Europa ou nos Estados Unidos associa eventuais dificuldades econômicas, enfrentadas por qualquer uma dessas economias, às respectivas formas de governo, mas tão somente a ocasionais equívocos na política econômica ou simplesmente às variações cíclicas da economia.
O ADVENTO DA REPÚBLICA NO BRASIL
Possivelmente, esses fatos ajudam a explicar porque o advento da forma republicana de governo no Brasil não ocorreu dentro de um ambiente político de intensos debates sobre idéias e de disputas dramáticas de poder entre monarquistas e republicanos. A abolição da escravidão, a questão militar, a ascensão de uma classe média e outros eventos considerados pelos historiadores como importantes para o advento da república, eram questões que poderiam ter sido manejadas dentro do regime vigente, uma vez que não há como afirmar que tivessem por origem qualquer incompatibilidade substantiva com o regime e, além disso, nações como o Reino Unido, os Países Baixos ou a Noruega, ao longo do tempo, realizaram seguidas mudanças nas suas instituições políticas, adequando-as às seguidas transformações, por vezes dramáticas, vividas pelas respectivas sociedades no decurso do último século e meio. Em 1889, a monarquia brasileira já era um governo do tipo representativo perfeitamente compatível com os padrões vigentes no mundo, em matéria de instituições que procuravam acomodar as principais forças políticas da nação. Além disso, D. Pedro II estava longe de ser um governante autoritário e centralizador. Alguns historiadores mencionam as disputas entre a Coroa e a Igreja Católica como um desses eventos importantes que teriam desencadeado a queda da monarquia, por ter contribuído para solapar a base política do Imperador. Entre as novidades advindas com a proclamação da república, uma delas foi a separação entre o Estado e a Igreja, mas esse processo ocorreu, de uma maneira ou de outra, em todas as monarquias que se modernizaram. A questão federativa, que aparece em destaque no Manifesto Republicano de 1870, a abolição da escravidão, as dificuldades econômicas ou ainda as inquietações no exército, na realidade constituíam parte de um processo de transformação mais ampla e profunda da sociedade brasileira, diante de um mundo que também se transformava. Na realidade, em toda parte, as instituições políticas sofriam mudanças e se acomodavam às novas circunstâncias sem, contudo, associar esse processo a escolhas entre republicanismo e monarquia. Em resumo, o regime monárquico não constituía empecilho real para as demandas sociais ou para uma eventual revisão nos padrões de participação política das forças econômicas emergentes da nação.
Talvez o melhor retrato do ambiente em que foi implantada a forma republicana de governo tenha sido dada por Raul Pompéia que, em crônica publicada anonimamente, relata a melancólica partida do Rio de Janeiro de D. Pedro II e da família imperial, logo após o decreto de expulsão promulgado pelo Governo Provisório. No meio da madrugada – diz a crônica – sem manifestações de qualquer tipo, a família imperial partiu para o exílio sem deixar no Brasil nem sentimentos de ódio e nem partidários dispostos a iniciar uma luta política para promover seu retorno. Aliomar Baleeiro, logo na introdução de seu ensaio sobre a Constituição de 1891, também faz uma apreciação na mesma direção: “o povo brasileiro cansara-se da monarquia, cuja modéstia espartana não incutia nos espíritos a mística e o esplendor dos tronos europeus. O Imperador vestia trajes civis, pretos, como qualquer sujeito respeitável da época, sem fardas de dourados ... Conta-se que a Princesa Imperial trazia consigo, no decote, fósforos para acender, ela mesma, as velas à boca da noite.”
A res publica NO BRASIL DE HOJE
Em nossos dias, de tempos em tempos, a República tem sido abalada por escândalos e a ineficiência crônica do Estado aparece nos mais diferentes domínios das instituições encarregadas do provimento de bens como justiça, segurança dos cidadãos e os inúmeros serviços públicos essenciais, que os Estados modernos prestam hoje às suas populações. Convém refletir sobre o fato de que esses escândalos, assim como a crônica ineficiência do Estado brasileiro, não são produtos da forma de governo, mas da incapacidade de construir e de manter instituições que tornem o Estado brasileiro tão eficaz quanto tem sido em muitos outros países republicanos ou monárquicos. Por exemplo, em países onde a justiça – talvez a componente mais essencial do Estado no que diz respeito à proteção dos direitos individuais e coletivos – se mostra razoavelmente operante, uma lei como a da chamada “ficha limpa” seria completamente inócua e desnecessária, uma vez que, se a justiça funcionasse razoavelmente no Brasil, os políticos indiciados como passíveis de serem enquadrados nessa lei já teriam sido, há muito tempo, devidamente condenados ou absolvidos. Há políticos que tomam posse de cargos executivos ou legislativos apesar de condenados e de procurados pela justiça por terem cometido crimes comuns, e cujo processo judicial tivera seu início bem antes da formalização até mesmo de sua candidatura. Há os tribunais eleitorais ou trabalhistas cuja existência é totalmente dispensável, uma vez que qualquer ação julgada por essas instâncias pode ser levada ou contestada em outras instâncias judiciárias. A menos que o poder dessas instâncias seja efetivamente reconhecido nas matérias de que tratam, a manutenção dessas cortes representa apenas um ônus para o Estado e, principalmente, um custo às vezes impagável para os cidadãos que buscam a justiça para proteger seus direitos.
A distância entre a noção de res publica e as instituições do Estado brasileiro, que parece aumentar continuamente, assume a feição de um patrimonialismo político, cuja capacidade de adaptação se revela ilimitado. Falava-se de uma política “café com leite” referindo-se à República Velha, quando o poder se alternava entre os produtores de café de São Paulo e os proprietários de terras e criadores de gado de Minas Gerais. Hoje, após a eleição presidencial, Ministérios e agências da administração do Estado são disputados como se fossem espólios ou butins a serem conquistados. As manifestações a respeito de “direitos” a cargos e postos na administração pública ocorrem de forma aberta e sem qualquer pejo ou referência a qualquer propósito de servir à coletividade, que justificaria a existência de um Ministério ou agência governamental. Nos fins da Idade Média, após a tomada de uma cidadela sitiada, os vencedores disputavam entre si os espólios dos vencidos. Essa disputa se afigurava tão natural quanto o é hoje a disputa por cargos e indicações após uma vitória eleitoral. D. Quixote, personagem criado por Cervantes, com toda a sua ingênua pureza, prometia ao seu amigo e escudeiro Sancho Pança uma ilha que seria conquistada com o valor de seu braço. No caso do Brasil, trata-se de um espólio de proporções imensas. Conforme dados de 2009, disponíveis na página do Fundo Monetário Internacional, o Brasil era a oitava economia do mundo e o orçamento do Estado brasileiro, de quase US$ 600 bilhões, seria maior do que o PIB de países como Suíça (US$ 491 bilhões), Suécia (US$ 406 bilhões), Dinamarca ou Argentina (ambos com um PIB de cerca de US$ 310 bilhões). Na verdade, o Estado brasileiro equivalia, em 2009, à posição de 18ª. economia do mundo. Nesse quadro, a pergunta essencial é: para onde vai essa enorme soma de recursos? Além do sistema de arrecadação de taxas e impostos, existe alguma instituição do Estado que efetivamente funcione satisfatoriamente? Existe alguma instituição do Estado que possa ser qualificada como verdadeira res publica, isto é, serve unicamente ao interesse público? Por que as pessoas que possuem meios não procuram a saúde pública, não se utilizam dos transportes públicos, não confiam suas crianças à educação pública? Por que se permite que milhares de pessoas vivam em favelas degradantes à condição humana? Por que todas as organizações e indivíduos que possuem meios precisam contratar serviços privados de segurança? Enfim, a lista de perguntas é interminável.
Esses fatos, mencionados a título de exemplo, apontam para o risco sempre presente de repetir o que se fez, em certa medida, nos fins do século XIX quando, ao invés de aperfeiçoar e adequar as instituições acompanhando as inevitáveis mudanças dos tempos, preferiu-se atacar as instituições da monarquia constitucional. O ambiente que tem cercado as últimas eleições e seus desdobramentos na forma de partilha do espólio conquistado, revelam que a ineficiência do Estado em prover bens públicos essenciais deve continuar, independente de quem seja eleito. Os recursos do orçamento público brasileiro são enormes, mas não são ilimitados. Pode haver focos de insatisfação na divisão do butim que podem evoluir para defecções e crises. Corre-se o risco de comprometer até mesmo a democracia sem, contudo, atingir efetivamente os procedimentos e costumes viciados existentes nas várias instâncias do Estado que, assim, continuarão servindo de guarida à ganância dos políticos desonestos. Ernest Hambloch, em 1934, escreveu uma interpretação bastante crítica a respeito dos primeiros anos da república – a República Velha (1889-1930) – na qual lembra um curioso episódio: quando Rojas Paul, presidente da Venezuela, soube da queda da monarquia brasileira, teria exclamado triste e profeticamente: “Este é o fim da única república que jamais existiu na América.” Obviamente, o presidente Rojas Paul empregava o termo república na sua acepção mais desejável: o do governo entendido como res-publica.
BIBLIOGRAFIA
A. BALEEIRO, Constituições Brasileiras, volume II. 1891. Senado Federal, CEE/MCT, ESAF/MF. Brasília, 1999 (p. 13)
E. HAMBLOCH, Sua Majestade o Presidente do Brasil. Senado Federal, Brasília, 2000 (p. 34)
F. M. DA COSTA, Os Melhores Contos que a História Escreveu. Editora Nova Fronteira, R. De Janeiro, 2006 (pp. 461-7)
Con entusiasmo y satisfacción presentamos hoy la primera Edición Especial de la Revista Derechos en Acción (ReDeA) dedicada a una temática central de la realidad económica, social y jurídica de nuestro país, la región y el mundo: Fondo Monetario Internacional y derechos humanos.
El abordaje de la temática es desde una mirada crítica e interdisciplinaria, y comprometida con la efectivización de los derechos humanos de todas las poblaciones de nuestros pueblos tercermundistas, en el contexto especial de una pandemia y recesión sin precedentes.
La propuesta de este formato de número dedicado a la temática surgió de una conversación con Juan Pablo Bohoslavsky, quien sumó en la tarea al economista Francisco Cantamutto. Ambos, reconocidos investigadores, se hicieron cargo de la tarea de llevar el barco a buen puerto, desarrollando con eficiencia la ardua labor de selección y revisión de los trabajos, realización de entrevistas, recopilación de documentos, hilvanando con paciencia, buen criterio y minuciosidad cada parte del ejemplar que hoy sale a la luz como una unidad coherente y articulada. Durante más de seis meses compartimos nuestra casa con ellos, de quienes aprendimos mucho, trabajando colectiva y solidariamente con un objetivo en común. Este número, cuyo impacto en los ámbitos político, social, económico y jurídico damos por hecho, será una marca imborrable en la historia de nuestra revista. Tenemos sólo palabras de gratitud para nuestros editores invitados, así como para la Asociación Civil por la Igualdad y la Justicia (ACIJ) y la Friedrich Ebert Stiftung (FES) por sus apoyos institucionales a nuestro proyecto.
A las lectoras y lectores que se acercan por primera vez a ReDeA les queremos contar la razón por la que encontrarán en nuestra publicación arte y poesía, junto con derecho y ciencias sociales. Cuando pensamos en generar un apartado de arte en la revista, lo hicimos a partir de la idea del poder de la imagen en la construcción de subjetividades, en las reflexiones críticas que repotencian criterios y posturas ante las situaciones más sensibles y diversas de la vida. La poesía también tiene mucho para decir sobre el mundo donde el derecho actúa, lo interpela constantemente. Entendemos que en la praxis artística y poética, que se crea desde la tensión entre el pensar y el hacer, se va definiendo el concepto de realidad. Este concepto, de realidad, se diseña por los elementos desde donde oscilan las percepciones del sujeto. El arte, además, plantea una mirada o una forma de entender el mundo, los artefactos artísticos responden, a su vez, como producciones de una cultura. Entendemos que la articulación interdisciplinaria entre el arte y el derecho traza una construcción de conocimiento colectivo, permitiendo enriquecer y repensar los imaginarios y las significaciones. Por esas mismas razones, también, para el diseño de la tapa convocamos a la talentosa “tapista” Ana Yael, una artista argentina radicada en Barcelona.
Invitamos a adentrarse en este número especial de ReDeA y esperamos contar con ustedes en las próximas ediciones.
Revista Consultor Jurídico, 2 de março de 2021, 10h47
Conjur | 2/3/2021, 10h47
Foi publicada no Diário Oficial do último dia 11 uma portaria do Ministério, daMulher, da Família e dos Direitos Humanos (Portaria nº 457 de 10 de fevereiro de 2021) criando um grupo de trabalho para realização de análise ex ante da Política Nacional de Direitos Humanos. Um primeiro olhar pode achar que se trata de um ato rotineiro da Administração, visando a estudar a aplicação do Programa Nacional de Direitos Humanos 3. Um olhar mais aprofundado identifica um conjunto de riscos à continuidade da aplicação do referido programa, que já havia sido seriamente atacado, no primeiro ano do governo Bolsonaro, pela extinção do seu Comitê de Acompanhamento e Monitoramento, pelo Decreto nº 7.037, de 21 de dezembro de 2019.
O Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH) 3 é tributário de uma das mais bem-sucedidas políticas públicas brasileiras, gestada e desenvolvida na Nova República. Na transição da Ditadura Militar (1964-1985) para a democracia dos governos civis, o Estado brasileiro começou a atuar mais incisivamente e menos teatralmente no cenário internacional dos direitos humanos, seja a nível global (das Nações Unidas), seja a nível regional (interamericano).
A primeira medida, para tanto, foi ratificar os vários tratados internacionais em direitos humanos, pendentes de comprometimento pelo Estado brasileiro. Isso aconteceu principalmente (mas não exclusivamente) entre 1989 e 1996. A segunda medida foi a aceitação da atuação de mecanismos de efetivação, desde o reconhecimento de jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos em 1998 até a atuação em casos individuais pelos comitês de tratado das Nações Unidas. Isso aconteceu principalmente (mas não exclusivamente) entre 1998 e 2002.
A partir de então, a atuação internacional brasileira sempre foi ativa e exemplar através do Itamaraty e da Secretaria Especial de Direitos Humanos, ainda que o déficit interno de respeito, promoção e proteção aos direitos humanos permanecesse (como ainda permanece) muito constrangedoramente alto, com grande diversidade de violações em direitos humanos, com destaque para a impunidade e para criminalidade contra a pessoa e contra as defensoras e defensores de direitos humanos.
Na atuação ativa junto ao sistema global de direitos humanos, o Brasil praticou importante ato de transparência internacional ao manter convite permanente (2001) para as relatoria especiais das Nações Unidas visitarem o território nacional e monitorarem as nossas práticas frente aos compromissos em matéria de direitos humanos. O texto final da Conferência Mundial sobre Direitos Humanos, em Viena, 1993, da qual o Brasil participou, inclusive, do comitê de redação, estabeleceu os programas nacionais como estratégicos na implementação dos direitos humanos. Também perante o então recém-criado Conselho de Direitos Humanos (2006), o Brasil fez compromissos, dentre eles: atuação próxima à sociedade civil na promoção e proteção aos direitos humanos (2016). Nesse ponto, a política dos Programas Nacionais de Direitos Humanos se destaca.
O Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH 3) é um documento complexo, que dá base à atuação do Estado orientada por direitos humanos e, para isso, que define um conjunto de diretrizes, em diferentes aspectos da atuação do poder público, chamados "eixos temáticos". Além disso, estabelece, em cada diretriz, "objetivos estratégicos" e, neles, "ações programáticas", com os respectivos órgãos responsáveis.
O primeiro Programa Nacional de Direitos Humanos foi concluído e publicado em 1996, via Decreto nº 1.904/1996. Nessa primeira edição, a segurança das pessoas foi ponto de destaque, colocando-se em debate a violência policial e a impunidade dos crimes cometidos no Brasil. Temas como trabalho forçado, refúgio e advocacy em direitos humanos tomaram espaço de destaque. De outro lado, o abuso na penalização também apareceu de forma a se evitar o "aprisionamento de esquecimento" das pessoas nos estabelecimentos prisionais. Do ponto de vista de grupos socialmente vulnerabilizados, mulheres, crianças e adolescentes, sociedades indígenas, terceira idade e pessoas com deficiência se destacaram.
Já o segundo Programa Nacional de Direitos Humanos foi concluído e publicado em 2002, através do Decreto nº 4.229/2002. Novamente a violência policial, tortura e execuções sumárias aparecem com destaque, seja a violência policial nos estabelecimentos prisionais, "caso Carandiru", seja a violência policial contra campesinos, pessoas sem terra, "caso Eldorado dos Carajás". Por conta disso, aparecem medidas propostas, tais como: o Plano Nacional de Segurança Pública e reforço na atuação do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Nacional do Ministério Público. Por outro lado, inova-se ao tratar das pessoas desaparecidas por questão de opinião política com o reconhecimento civil de morte presumida. Aqui aparecem as bases do programa para o debate sobre Justiça de Transição. Temas como educação, saúde, trabalho e previdência social tomam espaço de destaque. Do ponto de vista de grupos socialmente vulnerabilizados, mulheres, crianças e adolescentes, povos indígenas (não mais sociedades indígenas), idosos (não mais terceira idade), gays, lésbicas, travestis, transexuais e bissexuais (GLTTB) e pessoas com deficiência se destacaram.
O atual Programa Nacional de Direitos Humanos 3 foi firmado no final de 2009 e início de 2010, com a edição do Decreto nº 7.037/2009 e do Decreto nº 7.177/2010, que o atualizou, e foi construído em um processo que é um exemplo no que se refere à participação social. Aproximadamente 14 mil pessoas estiveram envolvidas nos debates e na construção do texto final do PNDH III durante a 11ª Conferência Nacional em Direitos Humanos e todas as conferências estaduais e municipais associadas. Isso colocou o Brasil como exemplo de boa prática internacional em relação aos programas nacionais sobre direitos humanos.
O PNDH III tem seis eixos temáticos orientadores: Eixo Orientador 1: Interação democrática entre Estado e sociedade civil; Eixo Orientador 2: Desenvolvimento e Direitos Humanos; Eixo Orientador 3: Universalizar Direitos em um Contexto de Desigualdades; Eixo Orientador 4: Segurança Pública, Acesso à Justiça e Combate à Violência; Eixo Orientador 5: Educação e Cultura em Direitos Humanos; Eixo Orientador 6: Direito à Memória e à Verdade. Essa estrutura permitiu que temas como participação democrática, indivisibilidade dos direitos humanos, controle de ações da polícia, impunidade, acesso à Justiça, acesso à terra, formação e educação em direitos humanos fossem tratados a partir do olhar de grupos socialmente vulnerabilizados. Assuntos polêmicos, até então mal resolvidos na sociedade brasileira, tomaram corpo e mostraram a possibilidade de saírem do papel:, como a Comissão Nacional da Verdade sobre as atrocidades praticadas durante a ditadura militar.
Em 2019, o monitoramento de implementação do PNDH III coletou diversas informações sobre os eixos temáticos e fez o Conselho Nacional de Direitos Humanos recomendar adequação urgente e imediata do governo federal aos ditames do PNDH III em vista dos desvios praticados pelas autoridades do Executivo federal. Entre as recomendações, destacam-se as seguinte: 1) adequar-se imediatamente ao PNDH 3 em suas atividades, práticas administravas e declarações públicas, que, eventualmente, sejam monitoradas e classificadas como violadoras do PNDH 3; 2) a recriação de Comitê de Acompanhamento e Monitoramento do PNDH 3 mediante revogação do Decreto nº 10.087/2019 na parte que extingue o comitê.
Há diversos riscos que decorrem de uma possível mudança unilateral do programa, pensada e executada nas entranhas da Administração, a partir do trabalho da comissão recém constituída.
A desestruturação do programa pode denotar, para a comunidade internacional, uma resistência do Brasil em se submeter aos compromissos internacionais já assumidos. O país precisa sinalizar em sentido oposto, já que, na atualidade, a sua imagem internacional sofre abalos decorrentes de um conjunto de declarações de agentes públicos e de medidas concretas em temas como segurança pública, respeito a liberdade de expressão e meio ambiente.
Mas as nossas preocupações vão além da necessidade de preservar nossa imagem perante a comunidade internacional. Preocupa-nos a possibilidade de que as possíveis mudanças sejam impregnadas de elementos ideológicos associados a posturas autoritárias.
Como demonstramos, não se trata de uma política pública cerebrina, gestada em gabinetes, por poucos, mas o resultado de um processo fortemente participativo, que incorporou agentes com as mais variadas orientações e experiências. Assistimos nos últimos anos, no país, o fechamento de importantes canais de participação social na Administração, o que ficou evidente com a edição do Decreto nº 10.087, de 5 de novembro de 2019
Trata-se, aqui, de proteger parâmetros que foram estabelecidos pela sociedade para forçar o Estado a respeitar um conjunto de limites e preservar direitos que estão na base do funcionamento de uma sociedade democrática. O Programa Nacional de Direitos Humanos 3 contempla, em seu conteúdo, um amplo espectro de preocupações, orientando os agentes públicos a manterem uma atuação inspirada nos vários compromissos internacionais assumidos pelo Brasil ao longo dos anos.
Gustavo Ferreira Santos é advogado, professor de Direito Constitucional da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap), professor do programa de pós-graduação em Direito da Universidade Católica de Pernambuco, membro do Grupo Recife de Estudos Constitucionais (REC) e pesquisador PQ 2-CNPq.
Luis Emmanuel Cunha é advogado e professor da Faculdade Damas.
Manoel Severino Moraes de Almeida é advogado, professor da Unicap, doutorando do PPGD/Unicap, coordenador da Cátedra Unesco/Unicap Dom Helder Camara de Direitos Humanos e membro do Grupo Recife de Estudos Constitucionais (REC).
Revista Consultor Jurídico, 2 de março de 2021, 10h47
Importante artigo do embaixador José Augusto Lindgren Alves comentando os muitos equívocos, as impropriedades políticas, os desvarios intelectuais e os absurdos diplomáticos do estarrecedor discurso do chanceler acidental na formatura da turma do Instituto Rio Branco que tinha como patrono o grande poeta João Cabral de Melo Neto.
Paulo Roberto de Almeida
RELIGIÃO E LIBERDADES TRUNCADAS: política externa e direitos humanos refletidos no curioso discurso do chanceler aos formandos do Instituto Rio-Branco
J. A. Lindgren-Alves*
Foi muito comentado o discurso do ministro das relações exteriores na cerimônia de formatura do Instituto Rio-Branco, em 22 de outubro, pela revolta que causou. As críticas, todas pertinentes diante dos absurdos enunciados, foram provocadas sobretudo pelo abuso do nome escolhido pelos formandos como patrono da turma, João Cabral de Melo Neto, assim como pela interpretação positiva do fato de o Brasil se ter tornado um pária na comunidade internacional. A par da falta de autocrítica de um profissional inexpressivo, autor de livro desconhecido, ao se declarar “diplomata e poeta” como João Cabral, o personagem que ocupa a cadeira do Barão de Rio-Branco sem qualquer ponto notável na carreira, declarou não ver problema, mas virtudes, no presente isolamento diplomático do Brasil. Insistindo numa ideia sui generis de liberdade, afirmou que “o Brasil de hoje fala de liberdade através do mundo”, para assinalar que os Presidentes Bolsonaro e Trump haviam sido, talvez, os únicos chefes de Estado a tocarem no assunto na abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas deste ano.
Não vou tratar aqui das referências descabidas a João Cabral de Melo Neto, nem analisar a situação de nosso país no exterior. Tanto o primeiro como o segundo aspectos do discurso foram examinados, com justa indignação, por órgãos de imprensa sérios e personalidades competentes de diversos setores. Atenho-me, pois, à acepção exposta de liberdade e aos efeitos que ela reflete na política externa, com foco na área dos direitos humanos.
O conceito de Liberdade
Para esse estranho titular de uma pasta política laica voltada para a ação no exterior, “liberdade” nada tem a ver com o direito de ser livre em condições normais, de pensar, de se informar, de agir, de viver dignamente, no sentido que todos conhecem. Tampouco são as liberdades fundamentais, definidas com os direitos essenciais de todos os seres humanos, que abarcam o trabalho remunerado, a educação, a saúde, a alimentação, a moradia e a segurança social, pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948. Qualificando esse documento multilateralista basilar de “verdadeiro hino à liberdade”, o orador anti-multilateralista o cita com indicação de artigos escolhidos, que, isolados e simplificados na enunciação, escondem mais que revelam o que ele deseja. Nem mesmo a “liberdade religiosa” expressamente mencionada corresponde à “liberdade de pensamento, consciência e religião”, prevista no Artigo 18 da Declaração Universal, cujo espírito abrange necessariamente o direito de não ter ou não seguir qualquer religião.
Nas palavras do ministro:
“A liberdade do ser humano reside na sua espiritualidade. Sem ela o homem é escravo do ciclo inútil do viver e do morrer. Sem ela o intelecto torna-se puramente calculador desprovido de poesia e criatividade. Sem a espiritualidade o homem perde o bom-senso e a capacidade de navegar num mundo de difíceis julgamentos morais, caindo em um dos extremos: ou a permissividade absoluta ou esse estranho hiper moralismo da atualidade, muito mais restritivo que o da era vitoriana.”[1]
Por mais que eu próprio critique os paradoxos da cultura contemporânea, de um lado libertária e provocativa, de outro intolerante e castradora, denunciando exageros contraproducentes com o objetivo de garantir o desenvolvimento dos direitos[2], não sei bem a que se refere o hermético pregador como “hiper moralismo muito mais restritivo do que o da era vitoriana”. Quanto a sua obsessão transcendental, ela se encontra mais explicada alhures, em artigo arcano de sua autoria intitulado “Liberdade Religiosa, Religião Libertadora”, publicado em 2019 em seu pretensioso blog Metapolítica 17:
“No meu caso, já fui ateu: mas quando comecei a ler e estudar sobre religião (inclusive, mas não apenas, a cristã), quando comecei a entender, quando comecei a compreender a profundidade do incompreensível, quando um dia li que os monges do Monte Atos eram capazes de enxergar o brilho da luz incriada, foi aí que voltei a crer.”[3]
Quase “contracultural” no irracionalismo místico, reminiscente dos cultos orientais em moda no Ocidente desde os tempos dos hippies, a teosofia do chanceler, que tem horror à teologia da libertação, enquadra-se na vertente neointegrista atual do catolicismo, diferenciada do integrismo tradicionalista de Bento XVI pela assimilação de posições protestantes em áreas específicas[4]. Carolas que não seguem o Santo Padre, opositores do profundamente humano Papa Francisco, os neointegristas, pelo menos no Brasil, se assemelham e se associam sem pruridos ao neopentecostalismo evangélico para impor “fundamentos” de ambas as fés ao Estado. Para eles, a questão preocupante da liberdade religiosa é menos o problema real das perseguições a cristãos em sociedades de religião diferente do que aquilo que denominam “cristofobia”: aversão patológica a Jesus Cristo como divino redentor. Perante a Assembleia Geral das Nações Unidas, esse “fenômeno psíquico”, mencionado pelo neologismo no discurso do ministro aos formandos, já havia sido abordado um mês antes pelo Presidente da República, que nunca sabe bem o que está falando. Em alocução formal redigida provavelmente pelo próprio chanceler, disse ele:
“Faço um apelo a toda a comunidade internacional pela liberdade religiosa e pelo combate à cristofobia. (…) O Brasil é um país cristão e conservador, e tem na família sua base.”[5]
De que o Brasil seja predominantemente cristão não há dúvida. Horror a Cristo não creio tenha tido em qualquer período da História. Que seja conservador é uma asserção recente, parcial, com generalização forçada. A inclinação pela sensualidade exuberante sempre foi cultivada como característica do povo brasileiro, alegre e desinibido. Os políticos de centro e de esquerda sempre foram eleitos com posições sociais relativamente progressistas. Quanto à família, reconhecida na Declaração Universal dos Direitos Humanos como “núcleo natural e fundamental da sociedade” com direito à proteção pelo Estado, no Brasil como em todo o Ocidente é, há anos, crescentemente unicelular, ou desfeita e recomposta por casamentos sucessivos. Tem sido valorizada também em formas heteróclitas, rejeitadas pelos evangélicos puristas, por católicos no estilo da Opus Dei espanhola e por falsos moralistas de formações variadas, em cuja rejeição agressiva a homossexuais em geral concentram seu excesso freudiano de frustações inseguras.
Embora Bolsonaro tenha lembrado mais tarde a expressão “cristofobia” ao condenar a recente queima de igrejas no Chile e os atentados terroristas na França, “cristófobos” para o chanceler são, em primeiro lugar, os compatriotas que não seguem posições da extrema direita. Considerados comunistas ateus, corruptos e impatrióticos, participantes de uma conspiração demoníaca do “marxismo cultural” para dominar o mundo por meio do “globalismo” sob controle da ONU, esses indivíduos “cristófobos”, responsabilizados pelo secularismo do Estado, seriam inimigos a ser exterminados. Isso se evidencia no discurso do chanceler aos formandos pela condenação insistente do marxismo como ameaça terrível. Curioso é que isso ocorra e seja assimilado com verdade num período histórico em que o projeto emancipatório comunista se apresenta, no máximo, como causa de nostalgia para os seguidores mais próximos de Marx.[6] Pensam e agem da mesma forma que o chanceler a ministra da mulher, família e direitos humanos e todos os atuais ocupantes de funções oficiais brasileiras na cultura, educação e políticas públicas. A eles se acrescem os “bolsominions” das redes sociais e os grupos violentos que se manifestam nas ruas e na internet contra o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal, esteios institucionais necessários da democracia em qualquer parte do mundo.
Paranoia de fazer inveja ao teatro do absurdo, de Ionesco a Becket com toques de Campos de Carvalho, nosso surrealista tropical, essa teoria de conspiração como estratégia propagandística para semear o pânico tem figuras destacadas em pensadores da nova direita euro-americana Alt Right. Entre eles se pretende inserir o brasileiro Olavo de Carvalho, professor de invencionices eruditas pela internet, autor de best sellers demolidores de tudo e de todos, menos dele próprio, com palavrões e um lustro de sapiência cabotina. Entre seus seguidores se filiam o chanceler trumpista e o filho do Presidente quase embaixador em Washington, os quais, juntamente com um assessor presidencial evangélico de política externa, formam o núcleo duro de nossa atual antidiplomacia.
Exercida a contragosto por um Itamaraty em frangalhos, remanejado até no organograma interno para acomodar a ideologia e as características pessoais do profissional titular – mais moço e menos experiente que os chefes de departamentos antes existentes, hierarquicamente superiores, postos à disposição, como nem o regime militar cogitou fazer -, a nova política externa, inteiramente inspirada pela chamada franja lunática da direita norte-americana, reforçada pela arrogância de Donald Trump, absorve postulações de pastores fundamentalistas e católicos integristas, determinados a transformar o Brasil numa nação monolítica orientada pela religião. Tal orientação é implementada sub-repticiamente em inciativas domésticas, como a diretriz de educação em decreto de 27 de outubro sobre Estratégias de Desenvolvimento, que manda ensinar o direito à vida desde a concepção e os “direitos do nascituro”, ou as portarias do ministério da saúde que exigem comunicação constrangedora à polícia para quem precisa recorrer à prática legal de aborto em gravidez por estupro. Na área externa, ademais da participação do Brasil, como ouvinte, em comissão norte-americana criada pelo Secretário de Estado Mike Pompeo sobre “direitos inalienáveis” oriundos da história do país, destaca-se nossa ridícula rejeição a qualquer referência a “gênero” em resoluções sobre saúde ou direitos da mulher. Inflexível a críticas porque convicto – não sem razão – de que a popularidade do presidente se deve em grande parte às posturas agressivas contra o “politicamente correto”, o chanceler faz questão de afirmar, com frequência, ter sido para isso, para o desmonte de nossas posições estabelecidas, que o Governo foi eleito.
Liberdade religiosa como regressão
No esforço para tornar o país uma utópica “cidade de Deus”, fundada na literalidade das Escrituras mais do que na obra de Santo Agostinho, era esperado que as prioridades se dirigissem à “esfera de valores”. Foi com esse objetivo em mente que o Presidente desde quando candidato anunciava uma intenção “revolucionária”, quase “leninista”: primeiro destruir tudo, ou seja, tudo o que foi feito nessa esfera depois do regime militar, para depois construir à sua maneira. Tal esfera, a par da questão do meio ambiente, internacionalmente prioritária por motivos de sobrevivência terráquea, é precisamente a outra em que o Brasil redemocratizado teve papel decisivo na diplomacia multilateral do final do Século XX: a dos direitos humanos. Falo dela, sem ânimo exclusivo, porque a conheço bem, consciente de que colegas coevos da carreira diplomática podem fazer o mesmo sobre as áreas onde atuaram.
Na esfera dos direitos humanos, ao contrário do que antes dizia a esquerda e hoje é dito pela direita, por conta da soberania nacional, temendo ou não intervenções armadas da “ingerência humanitária” que o Brasil sempre combateu, o máximo que se deseja é dispor de referências civilizadoras para todos os países. A responsabilidade por tais direitos foi e continua a ser dos Estados. Estes, quando retrocedem em posições previamente aceitas, fazem-no em desapreço pela credibilidade que tinham. A coerção é moral, não policial, muito menos bélica. A impossibilidade de intervenções externas pela força não elimina, porém, o acompanhamento internacional legítimo, nem a força moral das recomendações acordadas. Tampouco descarta a eventualidade de boicotes unilaterais de potências, ou sanções coletivas, como o embargo de armas, aprovadas pelo Conselho de Segurança.
Fato pouco conhecido numa sociedade auto-despiciente como a brasileira, que atribui tudo de bom ao exterior, sobretudo aos Estados Unidos, foi a ação de nossa diplomacia que salvou a Conferência de Viena sobre direitos humanos, de 1993; que garantiu os estatutos do Tribunal Penal Internacional na Conferência de Roma, de 1998; que propôs na ONU, em 1994, uma conferência contra a discriminação racial na África do Sul, realizada em Durban, em 2001; que conseguiu a aprovação dos documentos finais de Durban, cujo Programa de Ação forneceu as bases da luta antirracista seguida no mundo inteiro até hoje. Foi também a atuação do Brasil que propiciou pontos de entendimento no Cairo, em 1994, sobre direitos reprodutivos e saúde da mulher, na conferência sobre população, assim como em Pequim, em 1995, para o reconhecimento dos direitos da mulher na categoria dos direitos humanos[7]. Tínhamos, portanto, importante soft power. Se os avanços doutrinários desse conjunto de eventos foram desvirtuados depois, e creio ter sido eu dos primeiros a expressar preocupação com isso, os atores principais foram outros, todos contrários ao Iluminismo e ao marxismo, em nome de um progressismo pós-moderno de matriz norte-americana.
Depreciar o que o Brasil soberano fez de positivo e orientar a política externa para destruir aquilo que se conseguiu em favor dos direitos humanos como fator indispensável ao progresso social, somente se pode explicar por um fanatismo semelhante ao que ameaçava as próprias conferências, associado em muitos aspectos às crenças do terror islâmico. Não surpreende, assim, que os aliados atuais desse Brasil dito “conservador” sejam líderes ocidentais de arrogância chocante. Ou Estados de religião historicamente antagônica ao cristianismo, com leis que desprezam a igualdade cristã divulgada pelo apóstolo São Paulo, e práticas cristianofóbicas frequentemente mortíferas. Nesses Estados cuja nacionalidade é construída a partir da religião pré-colonial monoteísta, liberdade religiosa inexiste, nem tem chance de existir. Tanto porque a fé dominante é excludente das outras, como porque os opositores aos governos, vistos como corruptos e vendidos ao Ocidente, são correligionários radicalizados contra tudo que não seja sua facção extremista.
Na medida em que os extremismos opostos se assemelham, as teocracias islâmicas mais medievalistas podem até servir de modelo aos ocidentais da extrema direita. Para o chanceler brasileiro, inimigo do Iluminismo desde Voltaire e do multilateralismo da ONU, nada parece melhor que a Idade das Trevas. Em sua linguagem labiríntica, supostamente translúcida, com citações em grego de fácil entendimento para o “povo que escandaliza os intelectuais prudentes e sofisticados”, brasileiros “severinos” que ele diz homenagear com o termo adjetivado de João Cabral, os formandos do Instituto Rio-Branco este ano não estariam entrando numa carreira, que ele chama de “burocracia”. Estariam ingressando numa cruzada, “numa grande demanda, no sentido medieval (sic), numa aventura nacional e mundial de proporções históricas” pela essência do Homem, da Pátria e da Civilização. Os “djihadistas” islâmicos, que derrubaram o World Trade Center, escravizam e estupram mulheres yazidis e esfaqueiam fiéis em igrejas da França, pensam da mesma forma. Com a diferença de que os “djihadistas” se consideram combatentes numa guerra cósmica. Nosso ministro é modesto. Fala apenas numa “batalha de gigantes” (sic).
O preço que pagamos
Na política externa brasileira quase tudo retrocedeu. Da independência mantida patrioticamente por várias décadas à submissão completa e voluntária, não aos Estados Unidos como potência, mas ao Governo de Donald Trump, passou-se num piscar de olhos. Na área dos direitos humanos, somos agora contrários aos direitos reprodutivos, rejeitamos a igualdade de gênero, demonstramos tamanha ojeriza pela possibilidade de aborto que tratamos como suspeitos os casos previstos em lei. Fazemos até vista grossa à mutilação genital feminina, quando a oposição a ela se insere em propostas de políticas que insinuem a prática disseminada do aborto como questão de saúde pública. Usamos os direitos civis para condenar a Venezuela de Maduro, mas não apoiamos monitoramento das Filipinas de Duterte. Ignoramos direitos de povos indígenas. Desconsideramos recomendações da Organização Mundial da Saúde sobre a pandemia, que minimizamos como “gripezinha” enquanto os contágios prosseguem. Rejeitamos preocupações da Alta Comissária da ONU com os direitos humanos no Brasil, e defendemos o regime instalado pelo golpe de 64 como movimento patriota, de salvação do país. Resta saber o que mais faremos. Já copatrocinamos com os Estados Unidos de Trump uma “Declaração do Consenso de Genebra”, formalizada em 22 de outubro com assinaturas de trinta e um Estados, entre os quais Arábia Saudita e Sudão do Sul, repressores aos direitos da mulher, um compromisso de atuação conjunta contra o aborto. Continuaremos seguindo a comissão dos direitos inalienáveis inventada pelo Secretário Mike Pompeo? Será que descartaremos a Declaração Universal laica de 1948 para abraçarmos uma eventual declaração religiosa de extrema direita? Imitaremos os Estados Unidos com seus habituais dois pesos e duas medidas na área dos direitos humanos e liberdades fundamentais, protegendo aliados violadores e condenando adversários? Continuaremos a funcionar como seus procuradores em Genebra desde que Trump decidiu, em 2019, retirá-los do Conselho de Direitos Humanos?
O preço dessas reviravoltas, sem falar nas mudanças em outras áreas cruciais, foi o abandono da imagem do Brasil como país confiável, cumpridor das obrigações assumidas. O custo complementar deve parecer pequeno: o sacrifício de uma das instituições nacionais antes mais respeitadas, inclusive pelas Forças Armadas, e um enorme desgosto, que a maioria dos diplomatas brasileiros na ativa têm dificuldade de engolir. Numa carreira de Estado necessariamente hierárquica, sem órgão classista e com um único chefe poderoso, pensar em resistência sem punição arrasadora é mera ilusão de fora. Embaixadores de volta ao Brasil mais antigos que o ministro de Estado, antes aproveitados em chefias de departamentos importantes, passaram a ficar sem funções, nos corredores ou em casa, sem sequer serem claramente contrários às políticas correntes. Para a maioria dos profissionais em serviço restam o desgosto pessoal e a vergonha perante colegas estrangeiros. Assim como se exaspera o desespero inerme de aposentados que veem seu trabalho destruído.
Para justificar a política externa atual, o discurso do ministro, no dia 28 de outubro, lembrou, com enlevo agradecido, que seu chefe, presidente do Brasil “cristão e conservador”, na noite da vitória, em 2018, havia proclamado: “Vamos libertar o Itamaraty!” Parte dessa libertação escravista, na novilíngua de George Orwell às avessas, ocorreu. Os diplomatas formandos, que tiveram o bom senso de escolher um grande patrono, que se cuidem. O desafio mental e moral nas condições que já enfrentam é imenso. Só há um conselho a dar: resistam no que for possível! Quando o pesadelo passar, o trabalho de reconstrução será deles.
[2] v. meus livros “Os Direitos Humanos na Pós-Modernidade, Os Direitos Humanos na Pós-Modernidade, Cap.6, e É Preciso Salvar os Direitos Humanos, São Paulo, Perspectiva, 2005 e 2018 respectivamente.
[4] Para a definição do neointegrismo, baseio-me em Gabriela Arguedas Ramírez, “Ideologia de gênero, neointegrismo católico e fundamentalismo evangélico: a vocação antidemocrática”, Revista Rosa 2, série 1, São Paulo, 2020.
[6] V. Enzo Traverso, Melancolia de Esquerda: Marxismo, História e Memória, Belo Horizonte, Editora Âiné Aut-aut. Nr. 2., 2018. V. também os encontros, seminários internacionais e esforços pessoais variados de Slavoj Zikek, Alain Badiou e outros para definir o que pode ser comunismo na situação presente.
[7] Para a descrição desses fatos v. J.A. Lindgren-Alves, A Década das Conferências, 2ª Ed. Brasília, FUNAG, 2018. Especificamente sobre Durban, v.Os Direitos Humanos na Pós-Modernidade, Cap.6.
IV Colóquio sobre Fronteiras e Direitos Humanos na União Europeia e no Mercosul (online)
Entre os dias 01 a 03 de dezembro, acontecerá o IV Colóquio sobre Fronteiras e Direitos Humanos na União Europeia e no Mercosul. O evento é uma Cátedra Jean Monnet da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), do Instituto de Desenvolvimento Econômico e Social de Fronteiras (IDESF) e do projeto PROCAD “Defesa Nacional, Fronteiras e Migrações: estudos sobre ajuda humanitária e segurança integrada” (Ministério da Defesa e CAPES).
O objetivo do IV Colóquio é ampliar as discussões sobre integração regional, fronteiras, direitos humanos e as relações entre o Brasil e a União Europeia. Com isso, a organização espera fomentar as pesquisas sobre a União Europeia e o Mercosul, em especial sobre as temáticas ligadas à cooperação internacional, à integração regional, à promoção da democracia e dos direitos humanos. Além de ser um espaço de debate sobre acontecimentos internacionais contemporâneos, o evento tem o propósito de difundir os conhecimentos sobre a União Europeia, fortalecendo assim a rede de cooperação e de governança conjunta entre as instituições participantes e os convidados do projeto.
Essa iniciativa é financiada pela Comissão União Europeia e tem apoio da CAPES, Ministério da Defesa e IDESF.
DIREITOS HUMANOS NA PANDEMIA: IDEOLOGIA, GENOCÍDIO OU LOUCURA?
José Augusto Lindgren Alves
(embaixador aposentado)
Boletim Lua Nova, 8 de julho de 2020
No panorama apavorante em que se encontrava o Brasil desde meados de março, quando autoridades estaduais e municipais começaram a adotar medidas de isolamento social para reduzir a disseminação do coronavírus, indo contra a vontade do Presidente da República, a situação política do país foi-se agravando de tal maneira, junto com a tragédia sanitária, que outras questões graves não tinham condições de se impor na consciência do público. Era o caso das violações de direitos humanos acirradas como efeitos colaterais da pandemia.
Denúncias de abusos e retrocessos feitas pela sociedade civil se haviam intensificado desde a posse do governo e continuavam sem interrupção, mas ecoando pouco no país. As autoridades federais, quando as ouviam, desqualificavam-nas como “comunistas” e atentatórias à soberania nacional. Surpreendentemente, na constrangedora reunião ministerial de 22 de abril, a Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos tomou a palavra para assinalar, com veemência, a massa de queixas diárias de violações que sua pasta estaria recebendo. Em suas palavras:
“Idosos estão sendo algemados e jogados dentro de camburões no Brasil. Mulheres sendo jogadas no chão e algemadas sem terem feito nada. Estamos vendo padres sendo multados em noventa mil reais porque estavam dentro da igreja com dois fiéis.[1] A maior violação de direitos humanos da história do Brasil nos últimos trinta anos está acontecendo neste momento. Mas estamos tomando providências.”
Se a intervenção foi inesperada, as providências aludidas eram chocantes. Nada tinham a ver com a omissão federal no controle do coronavírus, nem com a situação aflitiva dos segmentos populacionais desfavorecidos. Tampouco tinham a ver com o aumento das agressões domésticas a mulheres propiciadas pela quarentena, amplamente divulgado por seu ministério. Na ânsia de reforçar o egocentrismo do Presidente contra todos os discordantes, as providências da ministra, integrante do chamado “grupo ideológico” do Executivo, seriam ações judiciais para punir, não os perpetradores das violações, mas os governadores e prefeitos que haviam imposto o confinamento nas jurisdições respectivas.
Para tentar compreender de maneira racional esse tipo de atitude, absurda para quem a vê de fora, normal para quem a assume, é preciso apreender um pouco da ideologia desse grupo.
Curiosamente, “ideologia” era vocábulo usado pelo Presidente exclusivamente para “os outros”, que ele opunha como responsáveis pela implantação de valores degenerados no país, como a chamada “ideologia de gênero”. Embora o comportamento presidencial demonstrasse seu condicionamento ultradireitista em quase tudo, “ideologia” para ele seria sempre de esquerda, socialista ou comunista, hegemônica no Brasil desde o fim do regime militar. A direita não teria ideologia. Por mais que essa seja a ideia que se pretendia fazer passar no mundo globalizado pelo capitalismo neoliberal desde o desmoronamento do comunismo como alternativa, a posição do governo era diferente, voltada inteiramente para a área sociocultural. A postura antiideológica do Presidente, que sempre assinalou nada saber de economia, não dava atenção tampouco aos escritos do funcionário da carreira diplomática escolhido para chanceler, que desde antes de assumir as funções, tentava conferir um lustro intelectual às atitudes arrogantes do Presidente Trump, prosseguindo depois com as da família Bolsonaro. O diplomata, por sua vez, ao mascarar com circunlóquios supostamente eruditos o irracionalismo das atitudes presidenciais, desconsiderava desde então o aspecto mais atraente do populismo do chefe: seu primitivismo antiintelectual, provocado por ignorância e soberba, copiado de maneira feroz por seus seguidores, nas ruas, nas redes sociais, na vida pública, no Ministério da Educação.
Malgrado todos os percalços, uma ideologia sincrética, que escapa a classificações abrangentes, perpassa a atuação do Executivo, com certa coerência. Exige, portanto, atenção de todos os que se lhe opõem, em particular dos que se dedicam à área dos direitos humanos. Ainda que para isso seja necessário coser, como em colcha de retalhos, preconceitos e chavões, com aportes simplificados das ideologias extremistas da direita do Século XX.
Circunstâncias que facilitam sua penetração
Começando pela obsessão militarista, com louvores à repressão e aos abusos nefandos de torcionários conhecidos, é preciso, para obstá-la, ter em mente fatores conjunturais relevantes
A maior parte da população brasileira nasceu muito depois do período militar, iniciado em 1964. Não tem experiência vivida para saber o quanto aquela ditadura multifásica representou na generalização do medo. Não somente por meio de batidas e invasões sinistras, bisbilhotice, detenções abusivas, desaparecimentos e torturas. O receio de delações infundadas, desconfiança de todos e sensação de insegurança permanente abarcava os cidadãos comuns, não envolvidos na luta armada. A maioria atual ignora, sobretudo, que os pavores rotineiros provocados pelas ações do regime não eram sequer compensados por tranquilidade com relação ao crime comum, ou por menor corrupção no país.
Por outro lado, a par desses aspectos empíricos, os jovens idealistas de hoje não parecem haver compreendido adequadamente o quanto os direitos universais, declarados pela ONU em 1948, na Declaração Universal dos Direitos Humanos, foram instrumentos formidáveis nas lutas pela redemocratização do Brasil. Tal como o vinham sendo alhures, para a erradicação de outros regimes opressivos, de direita e de esquerda, constituindo fatores conducentes ao fim da Guerra Fria.
Um pouco em virtude desses dois fatores de natureza distinta, não é de surpreender que uma parte não negligenciável da juventude e mocidade brasileiras tenha sido tão facilmente conquistada pelo populismo de extrema direita, contra a “velha política corrupta”, as instituições da democracia representativa, o Judiciário independente e o discurso dos direitos.
A ideologia do governo e sua retroalimentação
Chamar a ideologia do Executivo atual de “conservadora”, de simples “direita”, ou até mesmo “fascista”, é prestar-lhe uma reverência. A reação de um general no governo contra comparação feita por ministro do Supremo entre a situação do Brasil com a da Alemanha em 1933, num momento de tensão elevada em Brasília, com manifestantes cobrando o fechamento de instituições democráticas, foi positiva, mas de interpretação duvidosa. Não dava para entender se era um desabafo individual patriótico, ou um ultimato ao Supremo para possível intervenção militar. Consta que os militares no governo, apesar de gestos de devoção a seu chefe, não se enquadrem integralmente na ideologia dominante. Talvez. Que esta assume riscos de comparações com o nazismo, assume. Basta notar a semelhança, difícil da não ser percebida, do slogan “Brasil acima de tudo” com o “Alemanha acima de tudo” (Deutschland über Alles), de conhecidos efeitos funestos. O ex secretário de cultura que imitou Goebbels não foi exonerado porque sua fala ia além do programado. Caiu porque a cena hitlerista, com fundo musical wagneriano, ofendeu a comunidade judaica. Esta, por sua vez, é cultivada pelos protestantes fundamentalistas em função de ensinamentos do Velho Testamento, sem qualquer pitada de tolerância humanista. Pode não ser deles a autoria, mas certamente lhes agrada a complementação do slogan com um segundo refrão “Deus acima de todos”.
Variação superficial e racista do velho fascismo italiano, o nazismo místico de Hitler, para ser rejeitado, é dado como ideologia de esquerda, como o comunismo, rotulação considerada infamante para tudo o que não seja de ultradireita. “Neoliberal” no campo econômico é apenas o Ministro da Economia, aliado circunstancial de 2018. De “Estado mínimo” a ideologia presidencial tem pouco. Autoritária e absolutista, tem tudo com a ideia de amor ao líder, pregado por Mussolini. Seu argumento é a confrontação, numa relação polarizada que encara o adversário como inimigo, a ser vencido e eliminado.
Nesse contexto desafiador, a escolha de pessoas contrárias aos objetivos da função para a qual são indicadas não é mera provocação. O objetivo assumido como prioridade, em vídeos do Presidente, consiste em desconstruir tudo o que foi feito pela “ideologia” de esquerda, na imposição de costumes decadentes ao país, a fim de restabelecer crenças e práticas anacrônicas como valores nacionais autênticos. Com eles o Brasil voltaria a ser – se é que algum dia o foi - uma nação homogênea, conservadora, sem diversidades, classes sociais ou fissuras, de religião pentecostal cristã, contrária ao racionalismo científico, ao iluminismo e à liberdade acadêmica. Idealmente, talvez, a exemplo de alguns de seus equivalentes islâmicos, uma “República Evangélica do Brasil”, a perdurar como um segundo império, branco, patriarcal, mercantilista e escravagista.
Tradicionalista radical, a força do bolsonarismo não vem apenas de dentro. É alimentada de fora, pela direita vitoriosa alhures, e retroalimentada pelas posturas contraproducentes de militâncias de esquerda com discurso de direitos humanos. Esse discurso, identitário, dito “progressista”, malgrado contradições intrínsecas e irrealismo circunstancial chocante, prevalecia no Brasil e no exterior, pelo menos até a presente expansão do coronavírus em ameaça planetária.
O Percurso de Duas Vias
Desde o início da campanha eleitoral, os militantes de direitos viam com apreensão o candidato Jair Bolsonaro. O ex capitão do exército fizera toda a carreira de deputado com louvores ao regime militar. Suas atitudes sempre foram contrárias à proteção de minorias, aos movimentos antirracistas, ao feminismo, aos LGBTIs, aos defensores de presidiários, aos povos indígenas, à preservação do meio ambiente, às manifestações de cultura laica, às artes, à academia, aos intelectuais em geral, a tudo que pudesse ser declarado “politicamente correto”. Foi seu discurso agressivo, repetitivo e simplório, que lhe angariou uma massa de seguidores fanáticos, ativíssimos nas redes sociais. Ao comportamento tosco, de efeito populista notável, somaram-se crenças retrógradas de fundamentalistas evangélicos, misturados à paranoia de um guru megalomaníaco desbocado, residente nos Estados Unidos, que, como a extrema direita intelectualizada euro-americana, vê conspirações comunistas em tudo. Culminando essa receita indigesta de como ganhar eleições, há o modelo vivo, egocêntrico e vitorioso do milionário Donald Trump, assumidamente amado e copiado por aprendiz sem recursos.
Enquanto esses elementos se juntam como princípio ativo do lado da emissão, outros fatores influem de parte da recepção. Ao contrário dos anos 90, os direitos humanos perderam popularidade. As razões dessa perda são muitas, e as analisei em outros textos.[2] O que importa no presente ensaio é notar que a maioria dos eleitores, no Brasil e em outros países, perdeu a admiração por eles. Destroçados pela economia neoliberal e confundidos com reivindicações em favor de grupos, parecem provocações perante necessidades imediatas mais amplas. Com base no que ocorre nos Estados Unidos e na Europa, Yascha Mounk explicita que, “...ansiosos com o futuro, os cidadãos passaram a ver a política como um jogo de soma zero – um jogo em que todo ganho para imigrantes ou minorias étnicas será obtido à sua custa”.[3] Embora no Brasil as minorias desse tipo sejam mais integradas, reações assemelhadas se encontram entre as populações afetadas de Roraima, contra venezuelanos, de São Paulo, contra bolivianos, africanos e brasileiros nordestinos.
O discurso dos direitos é omnívoro. Assim como abraça necessidades individuais de todos, reforça postulações difusas (direitos à autodeterminação, ao desenvolvimento, à paz etc.) e serve à construção de categorias normativas para proteger coletividades específicas (povos indígenas, minorias nacionais, religiosas ou linguísticas, populações campesinas, trabalhadores migrantes etc.). Enquanto isso era positivo “como ponto de apoio para as reivindicações jurídicas dos desprivilegiados”, no dizer irretocável de Celso Lafer em tempos mais favoráveis,[4] hoje a situação é distinta e se agrava desde o início do século. Já existem movimentos ativos que, contra a posição racional de juristas, pretendem estender a titularidade dos direitos humanos a animais (movimento “especista”), à natureza (variação do ambientalismo), em breve, provavelmente, a cyborgs e robôs autônomos de inteligência artificial.
Costas Douzinas observa que “(U)ma atração intelectual principal do discurso dos direitos é a sua capacidade de descrever situações sociais e políticas complexas e, especialmente, conflitos, em termos normativos simples. Mas esse também é seu efeito mais grave”.[5] O uso excessivo da expressão “direitos humanos” em reivindicações para os “diferentes” não somente acarreta perda de sentido para ela, como serve de munição aos opostos. É esse o fenômeno que ocorre com a cobrança exagerada de “direitos” para a população carcerária, menores infratores, criminosos armados e casos assemelhados, alimentando sua interpretação como “direitos de bandidos”.[6] O mesmo tipo de reação existe em outras áreas.
A “diferença” é fator protegido pelo princípio da não discriminação. Direitos especiais não se enquadram no espírito da Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada pelas Nações Unidas em 1948. Por se tratar de instrumento que tudo pode digerir, o discurso dos direitos humanos não precisa ser insaciável. O identitarismo sempre foi historicamente de direita, cultivadora demagógica de tradições nacionais tacanhas. Em fase de reversão política conservadora, desprovida de crenças revolucionárias utópicas, a extensão irrealista desse discurso confere aos direitos humanos feições meramente irritantes. É delas o retroalimento que ajuda a eleger a direita.
Isso pode ser evitado, sem prejuízo dos destinatários. Para tanto é necessário que o ativismo tenha consciência prática dos riscos de retração eleitoral que o falso “progressismo” implica. Se progressistas consequentes não tomarem a dianteira na correção de exageros, a direita a tomará para finalidades retrógradas. É o que tem ocorrido com o discurso obsessivo da “igualdade de gênero”, dos direitos sexuais e do multiculturalismo diferencial, exageradamente martelados em oportunidades absurdas.
Direitos na Pandemia
Tendo sido dos primeiros a apontar tais tendências contraproducentes, por mais que eu desconfiasse das motivações do novo governo brasileiro ao substituir a secretaria especial dos direitos humanos por um ministério abrangente, para a Mulher, a Família e os Direitos Humanos, decidi não internalizar de imediato as críticas da sociedade civil. Apesar das declarações bobocas dessa pastora evangélica nomeada para a pasta, optei por esperar para ver o que faria. Pelo que pude acompanhar, embora o governo tivesse ojeriza pelo que ele próprio denomina “ideologia de gênero”, as disposições normativas existentes sobre a mulher, ou a igualdade de direitos civis dos homossexuais, não chegaram a ser revertidas. Problemas houve muitos, em muitas áreas, fora do novo ministério. O vexame da reviravolta de posições externas sobre direitos reprodutivos e sobre a palavra “gênero” ficou, como muitas outras, por conta exclusiva do chanceler, que “ideologizou” totalmente o Itamaraty e nossa política externa.
O discurso da Ministra na primeira sessão do Conselho de Direitos Humanos, em 25 de fevereiro de 2019, não era substancialmente ruim. Prometia continuidade nos compromissos do Brasil, incluindo uma promessa de apresentação dos relatórios atrasados a órgãos de tratado. Ressaltou sua dedicação pessoal aos direitos dos povos indígenas, ilustrando-a com a filha adotiva de origem camaiurá. Referiu-se à Venezuela, expressando preocupação com as violações “cometidas pelo regime ilegítimo do ditador Nicolás Maduro” e apelando à comunidade internacional para reconhecer “o governo legítimo de Guaidó”.[7]O Brasil era, então, candidato a membro do Conselho nas eleições que iriam ocorrer na Assembleia Geral, no final do ano. Malgrado a oposição de ONGs importantes, o país foi eleito. Isso era previsível pelo fato de haver apenas dois Estados postulantes, precisamente Brasil e Venezuela, para as duas vagas disponíveis para a América Latina.
A desativação ou descaracterização de órgãos e comissões importantes na área interna, como a Comissão dos Desaparecidos, decorreu de escolhas presidenciais. Da pasta de direitos humanos, poucas ações se viam. Algumas, pontuais, em defesa de crianças, mulheres em situação difícil, saúde de indígenas, soavam positivas. Na área externa, o Brasil patrocinou resolução do Conselho de Direitos Humanos que determinava o envio de missão de investigação à Venezuela, a ser nomeada pela Alta Comissária, para examinar “execuções extrajudiciais, desaparecimentos forçados, detenções arbitrárias e torturas, desde 2014” (Resolução 42/25, de 27/09/2019). Pouco importava que o Presidente da República tivesse escrito absurdos contra a Alta Comissária, Michelle Bachelet, ex-Presidente do Chile, quando ela, pela primeira vez, em 2019, mostrou preocupação com a situação do Brasil.
Em 2020, o discurso da Ministra no Conselho, em 24 de fevereiro, começou assinalando uma redução de 20% no número de homicídios, resultado de políticas de segurança – aparentemente do então Ministro da Justiça, que seria levado à demissão pouco depois, por outros motivos. Seguiu-se o anúncio de uma nova ouvidoria em seu ministério, cuja central telefônica vinha atendendo 20.000 chamadas por dia. O restante foram referências ao combate à corrupção, a reforço do programa Bolsa Família, a novas leis de proteção às mulheres e crianças, a LGBTs nos presídios, ao fortalecimento do SUS. Reiterou a promessa de atualização de relatórios devidos e voltou a condenar o regime de Maduro na Venezuela.[8] Retirou-se do recinto, mais tarde, em sinal de protesto, quando o chanceler venezuelano subiu ao pódio para fazer seu discurso.
Com base nesses elementos, que não chegaram a representar retrocessos, não poderia ser mais lamentável a intervenção da mesma autoridade na reunião ministerial de 22 de abril. Não porque as denúncias referidas fossem duvidosas. Abusos na aplicação de medidas de prevenção ao coronavírus são reais e frequentes. A par dos perpetradores dos abusos citados, deveriam ser punidos os desviadores de fundos para hospitais públicos, os que praticam superfaturamento de material médico-hospitalar, os 620 mil brasileiros civis e militares com recursos, alguns dos quais empresários afluentes, que se inscreveram, sem direito, para receber o auxílio emergencial de 600 reais do Estado, os celerados que roubam o mesmo auxílio emergencial das contas de pobres, os religiosos que utilizam o medo da pandemia para vender salvações milagrosas, como os pastores que comercializam água imunizadora em garrafas, ou um feijão curativo por 1.000 reais o quilo, com anúncios na televisão. Sem falar no mau exemplo do Presidente, sem máscara, em concentrações de pessoas. Mais grave que tudo isso é, contudo, a rejeição presidencial ferrenha às medidas de prevenção ao contágio. As ações judiciais contempladas pela ministra, mais do que simples desvios, constituem uma fraude, uma falsificação grotesca da ideia dos direitos humanos. Para agradar ao errado, propunham castigar o correto.
Quando as vítimas do Covid 19 haviam ultrapassado um milhão, em meados de junho, essa inversão era a tônica do Executivo federal, sempre negativista da tragédia sanitária e insensível diante da mortandade de seus compatriotas: a culpa pelo aumento de casos seria dos Governadores e Prefeitos.
Genocídio, Eugenia ou Loucura?
A situação que vivia o Brasil em junho soava inacreditável. O cargo de Ministro da Saúde permanecia vago em plena explosão epidêmica. O chefe do Executivo usava os fins de semana em passeios de jet ski, giros de helicóptero e comparecimento a manifestações de apoio que pediam intervenção militar. Numa delas desfilou garbosamente a cavalo, em pose da dar inveja a todos os grandes fascistas. Enquanto a televisão mostrava gente desesperada na porta de hospitais sem leitos, sem respiradores e sem médicos, o Presidente se dedicava a armar a população, a proteger seus parentes de investigações criminais necessárias, a provocar a imprensa, o Congresso, o Supremo Tribunal Federal. Seu esforço contra a pandemia reduziu-se a um jejum dominical com pastores.
Quando advogados aventaram a possibilidade de um processo internacional contra o Presidente pelo crime de genocídio, minha reação foi descrente. Na Convenção de 1948, a tipificação decorre da intencionalidade. Atos de genocídio são aqueles praticados com a “intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso” (Artigo II). Com o passar do tempo, minha reação mudou. Os interessados no reinício imediato das atividades econômicas diziam que, nos segmentos sociais elevados, a curva de expansão da doença já estava em posição descendente. Justificavam assim o fim do isolamento para jovens e adultos ativos. Quarentena seria para idosos e demais pessoas de risco. Epidemiologistas foram então os primeiros a indagar se isso não seria eugenia. Não lembrava a seleção dos mais fortes, praticada na Alemanha nazista? Não vejo circunstâncias idênticas, mas reconheço resultados parecidos. Não em pessoas com recursos, fisicamente mais fracas. Tampouco vejo genocídio contra um grupo racial específico, embora o movimento negro deva pensar ao contrário. Vejo sim um morticínio terrível na classe dos novos proletários, “trabalhadores informais” na logomaquia corrente, sem despertar maiores atenções nas classes favorecidas, exceto, naturalmente, seus velhos. Sem contar o lumpen crescente de excluídos do mercado, cuja constrangedora existência o mundo contemporâneo e as ideologias ignoram.
Em 19 de junho, os casos de coronavírus acumulados no Brasil ultrapassaram um milhão. Dois dias depois, os óbitos passaram de 50.000. Em Ruanda, em 1994, onde o papel da Rádio Mille Collines teve papel semelhante ao das redes sociais aqui no fomento do ódio, o genocídio de tutsis pelos hutus teve um milhão de mortos. Os responsáveis ruandeses foram julgados por tribunal ad hoc da ONU, em Arusha. Na Bósnia, na mesma época, as vítimas mortais das três nacionalidades em luta – bosníacos, sérvios e croatas - nunca chegaram a esse número. Os principais responsáveis pelo morticínio entre as partes cumpriram sentenças na Haia por crimes contra a humanidade, embora somente um episódio, contra os muçulmanos de Srebrenica, fosse considerado genocídio.
No Brasil, afinal, o que ocorre? Um genocídio eugenista? Um crime contra humanidade, que atinge de preferência velhos pobres? Um surto de insanidade mental, que ameaça fisicamente o conjunto? Um caso de necropolítica para o poder soberano?[9] Uma chanchada grosseira que fortalece a pandemia mortífera?
Como a história comprova, no final, tudo será aceitável, menos o esquecimento, que permite repetir a tragédia.
Brasília, 25 de junho de 2020, 100° de confinamento do autor
[1] Num período de lockdown em que, para evitar concentrações de pessoas, os templos religiosos também estavam interditados.
[2] Em especial no livro É Preciso Salvar Os Direitos Humanos! , S.Paulo, Ed. Perspectiva, 2018.
[3] Yascha Mounk, O povo contra a democracia, trad. Cássio de Arantes Leite e Débora Landsberg, S.Paulo, Companhia das Letras, 2018, p.31.
[4] Celso Lafer, A Reconstrução dos Direitos Humanos, S.Paulo, Cia das Letras, 1988, p. 131.
[5] Costas Douzinas, O Fim dos Direitos Humanos, trad. Luzia Araújo, São Leopoldo, Editora UNISINOS, 2009, p.257.
[6] Não são raras as pessoas pobres que, sem condições de sobrevivência decente, realmente veem os direitos de presidiários e suas famílias com inveja e rancor. Acabo de ouvir afirmação nessa linha de assistente social atuante em bairro pobre de Fortaleza.