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domingo, 30 de abril de 2023

O martírio de Branca Dias em O Santo Inquérito, de Dias Gomes - Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy (Embargos Culturais, Consultor Jurídico)

 Mais um da imperdível série dos Embargos Culturais de Arnaldo Godoy.

EMBARGOS CULTURAIS

O martírio de Branca Dias em O Santo Inquérito, de Dias Gomes

Por 

Em O Santo Inquérito, Dias Gomes (1922-1999) retomou o martírio de Branca Dias (século XVI) para explorar o assustador tema da violência na política. Agências judiciárias são instrumentalizadas para a perseguição e destruição do inimigo político, o que muitos chamam hoje de "lawfare". O tema é recorrente, porque é da essência de uma concepção realista da vida forense. Não há novidades.

Quanto ao enredo, Branca Dias é uma personagem cuja existência suscitaria algumas dúvidas, inclusive se vivia em Pernambuco ou na Paraíba. Há fortes indícios de que vivera em Olinda, onde encontramos uma simpática casa atribuída a essa proto-heroína.

Para José Joffily (político e historiador paraibano que viveu muitos anos no Paraná) Branca Dias nasceu na Paraíba, em 1734, foi condenada pela Inquisição por ser judia, e teria morrido na fogueira em Lisboa, em 1761. Joffily expôs em seu livro (Nos tempos de Branca Dias) uma foto da rua Branca Dias em João Pessoa. Minha mãe, Leila Moraes Godoy, coordenou e revisou o trabalho.

Arnaldo Nisker, da Academia Brasileira de Letras, também tratou do assunto em Branca Dias, Martírio, em livro muito bem pesquisado, sob uma perspectiva da perseguição ao judaísmo, realisticamente observando que o martírio de Branca Dias, real ou imaginário, marca fortemente a imaginação popular. Niskier é um especialista em temas conexos, como lemos em Padre Antonio Vieira e os Judeus.

Dias Gomes antepõe à peça um texto de importante valor historiográfico, registrando o que sabia e o que pensava sobre os personagens. Supõe que Branca Dias havia de fato existido, e que fora queimada na fogueira, a exemplo de Joana D'Arc. Admitiu que a história não é precisa e que há muita controvérsia em torno do assunto. A introdução fixa precisamente os limites entre história e ficção. O que aconteceu não importa. O que vale é como o autor se apropriou do enredo e do motivo histórico.

O que também encanta nessa peça de Dias Gomes é a problematização da condição da mulher. A sinceridade de Branca Dias, e até certo ponto sua ingenuidade, possibilitam uma chave interpretativa para a tragédia. O Inquisidor, Padre Bernardo, é um crápula. Implacável, pervertido, maldoso, que invertia o sentido da realidade das coisas, alertando que a acusada fingia que era um anjo de candura, e que os julgadores não eram "bestas sanguinárias". Branca Dias, no entanto, chega a afirmar que o Santo Ofício era misericordioso e justo. Quanta ingenuidade.

Há aqui também um problema historiográfico que pode nos colocar numa cilada. A Inquisição era a forma de adjudicação daquele tempo, naquele contexto, e nesse sentido era a forma como se buscava a verdade. Quem viveu à época não entendia (e nem podia entender) de outra forma. O assunto foi tratado por Michel Foucault em uma série de conferências que proferiu no Rio de Janeiro, em 1973, na então Universidade Católica do Rio de Janeiro. As conferências foram organizadas e coordenadas por Affonso Romano de Sant'Anna.

A busca da verdade por meio da racionalidade não era certamente a fórmula que conduzia os processos no ambiente da Inquisição, como lemos nos grandes estudos sobre o assunto, de Anita Novinsky, Giuseppe Marcocci, José Pedro Paiva, Neusa Fernandes, Francisco Bethencourt, Ronaldo Manoel Silva e Antonio Borges Coelho, entre tantos outros. Indico a leitura imperdível das Confissões da Bahia, organizadas por Ronaldo Vainfas. O assunto (Inquisição) é substancialmente atual, especialmente à luz de delações premiadas, acordos de leniência e de não persecução penal. No núcleo, a disputa em torno do monopólio da verdade. Vale também a leitura de O Queijo e os Vermes, de Carlo Ginsburg.

Na peça, ironicamente, Branca Dias havia salvado a vida do religioso que a acusa, que quase morrera afogado. O padre reconhece que Branca Dias lhe havia estendido a mão uma vez, que lhe salvara a vida, e que agora era sua vez de retribuir com o mesmo gesto. Ela a mandou para a fogueira, na conclusão de um processo que não poderia terminar de outra forma. Retribuiu. Um canalha.

Branca Dias tinha posições firmes. Afirmou (na peça) que "se um texto da Sagrada Escritura pode ter duas interpretações opostas, então o que não estará nesse mundo sujeito a interpretações diferentes?". É essa dúvida (de algum modo cartesiana) que forneceu à Inquisição o material para condenar a ré. A acusação consistia na heresia e na prática de atos contra a moralidade, a exemplo de nadar nua no rio, numa noite de muito calor. Branca Dias não confessou o que não podia confessar, não mentiria, "nem mesmo em troca do sol".

Na sentença, o tribunal concluiu: "Procedemos a um longo e minucioso inquérito, em que todas as acusações foram examinadas à luz da verdade, da justiça e do direito canônico. À acusada foram oferecidas todas as oportunidades de defesa e arrependimento. Dia após dia, noite após noite, estivemos aqui lutando para arrancar essa pobre alma às garras do Demônio. Mas fomos derrotados. Desgraçadamente". Na execução (fogueira) o padre, o canalha a que me referi acima, "a vê, angustiado, contorcer-se entre as chamas (...) contorce-se também, como se sentisse na própria carne".

A Inquisição queimava os corpos para salvar as almas.


 é advogado em Brasília (Hage e Navarro), professor livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC-SP, professor titular mestrado-doutorado na Uniceub (Brasília) e professor visitante (Boston, Nova Déli, Berkeley, Frankfurt e Málaga).

Revista Consultor Jurídico, 30 de abril de 2023, 8h00

quarta-feira, 3 de março de 2021

A involução (na verdade retrocesso) nos DH no Brasil - Gustavo Ferreira Santos, Luis Emmanuel Cunha, Manoel Severino Moraes de Almeida (Conjur)

 O Programa Nacional de Direitos Humanos 3 está em risco

Revista Consultor Jurídico, 2 de março de 2021, 10h47

, Luis Emmanuel Cunha, Manoel Severino Moraes de Almeida

Revista Consultor Jurídico, 2 de março de 2021, 10h47

Conjur | 2/3/2021, 10h47

Foi publicada no Diário Oficial do último dia 11 uma portaria do Ministério, daMulher, da Família e dos Direitos Humanos (Portaria nº 457 de 10 de fevereiro de 2021) criando um grupo de trabalho para realização de análise ex ante da Política Nacional de Direitos Humanos. Um primeiro olhar pode achar que se trata de um ato rotineiro da Administração, visando a estudar a aplicação do Programa Nacional de Direitos Humanos 3. Um olhar mais aprofundado identifica um conjunto de riscos à continuidade da aplicação do referido programa, que já havia sido seriamente atacado, no primeiro ano do governo Bolsonaro, pela extinção do seu Comitê de Acompanhamento e Monitoramento, pelo Decreto nº 7.037, de 21 de dezembro de 2019.

O Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH) 3 é tributário de uma das mais bem-sucedidas políticas públicas brasileiras, gestada e desenvolvida na Nova República. Na transição da Ditadura Militar (1964-1985) para a democracia dos governos civis, o Estado brasileiro começou a atuar mais incisivamente e menos teatralmente no cenário internacional dos direitos humanos, seja a nível global (das Nações Unidas), seja a nível regional (interamericano).

A primeira medida, para tanto, foi ratificar os vários tratados internacionais em direitos humanos, pendentes de comprometimento pelo Estado brasileiro. Isso aconteceu principalmente (mas não exclusivamente) entre 1989 e 1996. A segunda medida foi a aceitação da atuação de mecanismos de efetivação, desde o reconhecimento de jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos em 1998 até a atuação em casos individuais pelos comitês de tratado das Nações Unidas. Isso aconteceu principalmente (mas não exclusivamente) entre 1998 e 2002.

A partir de então, a atuação internacional brasileira sempre foi ativa e exemplar através do Itamaraty e da Secretaria Especial de Direitos Humanos, ainda que o déficit interno de respeito, promoção e proteção aos direitos humanos permanecesse (como ainda permanece) muito constrangedoramente alto, com grande diversidade de violações em direitos humanos, com destaque para a impunidade e para criminalidade contra a pessoa e contra as defensoras e defensores de direitos humanos.

Na atuação ativa junto ao sistema global de direitos humanos, o Brasil praticou importante ato de transparência internacional ao manter convite permanente (2001) para as relatoria especiais das Nações Unidas visitarem o território nacional e monitorarem as nossas práticas frente aos compromissos em matéria de direitos humanos. O texto final da Conferência Mundial sobre Direitos Humanos, em Viena, 1993, da qual o Brasil participou, inclusive, do comitê de redação, estabeleceu os programas nacionais como estratégicos na implementação dos direitos humanos. Também perante o então recém-criado Conselho de Direitos Humanos (2006), o Brasil fez compromissos, dentre eles: atuação próxima à sociedade civil na promoção e proteção aos direitos humanos (2016). Nesse ponto, a política dos Programas Nacionais de Direitos Humanos se destaca.

O Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH 3) é um documento complexo, que dá base à atuação do Estado orientada por direitos humanos e, para isso, que define um conjunto de diretrizes, em diferentes aspectos da atuação do poder público, chamados "eixos temáticos". Além disso, estabelece, em cada diretriz, "objetivos estratégicos" e, neles, "ações programáticas", com os respectivos órgãos responsáveis.

O primeiro Programa Nacional de Direitos Humanos foi concluído e publicado em 1996, via Decreto nº 1.904/1996. Nessa primeira edição, a segurança das pessoas foi ponto de destaque, colocando-se em debate a violência policial e a impunidade dos crimes cometidos no Brasil. Temas como trabalho forçado, refúgio e advocacy em direitos humanos tomaram espaço de destaque. De outro lado, o abuso na penalização também apareceu de forma a se evitar o "aprisionamento de esquecimento" das pessoas nos estabelecimentos prisionais. Do ponto de vista de grupos socialmente vulnerabilizados, mulheres, crianças e adolescentes, sociedades indígenas, terceira idade e pessoas com deficiência se destacaram.

Já o segundo Programa Nacional de Direitos Humanos foi concluído e publicado em 2002, através do Decreto nº 4.229/2002. Novamente a violência policial, tortura e execuções sumárias aparecem com destaque, seja a violência policial nos estabelecimentos prisionais, "caso Carandiru", seja a violência policial contra campesinos, pessoas sem terra, "caso Eldorado dos Carajás". Por conta disso, aparecem medidas propostas, tais como: o Plano Nacional de Segurança Pública e reforço na atuação do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Nacional do Ministério Público. Por outro lado, inova-se ao tratar das pessoas desaparecidas por questão de opinião política com o reconhecimento civil de morte presumida. Aqui aparecem as bases do programa para o debate sobre Justiça de Transição. Temas como educação, saúde, trabalho e previdência social tomam espaço de destaque. Do ponto de vista de grupos socialmente vulnerabilizados, mulheres, crianças e adolescentes, povos indígenas (não mais sociedades indígenas), idosos (não mais terceira idade), gays, lésbicas, travestis, transexuais e bissexuais (GLTTB) e pessoas com deficiência se destacaram.

O atual Programa Nacional de Direitos Humanos 3 foi firmado no final de 2009 e início de 2010, com a edição do Decreto nº 7.037/2009 e do Decreto nº 7.177/2010, que o atualizou, e foi construído em um processo que é um exemplo no que se refere à participação social. Aproximadamente 14 mil pessoas estiveram envolvidas nos debates e na construção do texto final do PNDH III durante a 11ª Conferência Nacional em Direitos Humanos e todas as conferências estaduais e municipais associadas. Isso colocou o Brasil como exemplo de boa prática internacional em relação aos programas nacionais sobre direitos humanos.

O PNDH III tem seis eixos temáticos orientadores: Eixo Orientador 1: Interação democrática entre Estado e sociedade civil; Eixo Orientador 2: Desenvolvimento e Direitos Humanos; Eixo Orientador 3: Universalizar Direitos em um Contexto de Desigualdades; Eixo Orientador 4: Segurança Pública, Acesso à Justiça e Combate à Violência; Eixo Orientador 5: Educação e Cultura em Direitos Humanos; Eixo Orientador 6: Direito à Memória e à Verdade. Essa estrutura permitiu que temas como participação democrática, indivisibilidade dos direitos humanos, controle de ações da polícia, impunidade, acesso à Justiça, acesso à terra, formação e educação em direitos humanos fossem tratados a partir do olhar de grupos socialmente vulnerabilizados. Assuntos polêmicos, até então mal resolvidos na sociedade brasileira, tomaram corpo e mostraram a possibilidade de saírem do papel:, como a Comissão Nacional da Verdade sobre as atrocidades praticadas durante a ditadura militar.

Em 2019, o monitoramento de implementação do PNDH III coletou diversas informações sobre os eixos temáticos e fez o Conselho Nacional de Direitos Humanos recomendar adequação urgente e imediata do governo federal aos ditames do PNDH III em vista dos desvios praticados pelas autoridades do Executivo federal. Entre as recomendações, destacam-se as seguinte: 1) adequar-se imediatamente ao PNDH 3 em suas atividades, práticas administravas e declarações públicas, que, eventualmente, sejam monitoradas e classificadas como violadoras do PNDH 3; 2) a recriação de Comitê de Acompanhamento e Monitoramento do PNDH 3 mediante revogação do Decreto nº 10.087/2019 na parte que extingue o comitê.

Há diversos riscos que decorrem de uma possível mudança unilateral do programa, pensada e executada nas entranhas da Administração, a partir do trabalho da comissão recém constituída.

A desestruturação do programa pode denotar, para a comunidade internacional, uma resistência do Brasil em se submeter aos compromissos internacionais já assumidos. O país precisa sinalizar em sentido oposto, já que, na atualidade, a sua imagem internacional sofre abalos decorrentes de um conjunto de declarações de agentes públicos e de medidas concretas em temas como segurança pública, respeito a liberdade de expressão e meio ambiente.

Mas as nossas preocupações vão além da necessidade de preservar nossa imagem perante a comunidade internacional. Preocupa-nos a possibilidade de que as possíveis mudanças sejam impregnadas de elementos ideológicos associados a posturas autoritárias.

Como demonstramos, não se trata de uma política pública cerebrina, gestada em gabinetes, por poucos, mas o resultado de um processo fortemente participativo, que incorporou agentes com as mais variadas orientações e experiências. Assistimos nos últimos anos, no país, o fechamento de importantes canais de participação social na Administração, o que ficou evidente com a edição do Decreto nº 10.087, de 5 de novembro de 2019

Trata-se, aqui, de proteger parâmetros que foram estabelecidos pela sociedade para forçar o Estado a respeitar um conjunto de limites e preservar direitos que estão na base do funcionamento de uma sociedade democrática. O Programa Nacional de Direitos Humanos 3 contempla, em seu conteúdo, um amplo espectro de preocupações, orientando os agentes públicos a manterem uma atuação inspirada nos vários compromissos internacionais assumidos pelo Brasil ao longo dos anos.


 é advogado, professor de Direito Constitucional da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap), professor do programa de pós-graduação em Direito da Universidade Católica de Pernambuco, membro do Grupo Recife de Estudos Constitucionais (REC) e pesquisador PQ 2-CNPq.

Luis Emmanuel Cunha é advogado e professor da Faculdade Damas.

Manoel Severino Moraes de Almeida é advogado, professor da Unicap, doutorando do PPGD/Unicap, coordenador da Cátedra Unesco/Unicap Dom Helder Camara de Direitos Humanos e membro do Grupo Recife de Estudos Constitucionais (REC).

Revista Consultor Jurídico, 2 de março de 2021, 10h47

https://www.conjur.com.br/2021-mar-02/opiniao-programa-nacional-direitos-humanos-risco


domingo, 13 de dezembro de 2020

Clarice Lispector: “Feliz [?!?!] Aniversário”?!?! - por Arnaldo Godoy

 Mais uma das crônicas literárias — que o Conjur chama de Embargos Culturais — de Arnaldo Godoy, que por acaso me fez lembrar de uma “comédia-tragédia” familiar italiana, Parente Serpente.

EMBARGOS CULTURAIS

A propósito do centenário do nascimento de Clarice Lispector

Por 

Na última quinta-feira (10/12), lembramos o centenário do nascimento de Clarice Lispector, que faleceu em 1977. Nasceu na Ucrânia. Veio muito nova para o Brasil. Seu nome de batismo é Chaya Pinkhasovna Lispector. À clássica biografia de Nádia Battella Gotlib acrescenta-se o trabalho de Benjamin Moser, na belíssima edição da Companhia das Letras. Os livros de Nádia e de Benjamin são afagos que temperam o Natal de leitores sensíveis. Clarice esteve aqui em Brasília em 1976, ganhando o prêmio da Fundação Cultural. Acabara de se separar do marido, o diplomata Maury Gurgel. Pronunciou uma conferência sobre a literatura de vanguarda no Brasil. Trata-se de um registro da atuação de Clarice, em assunto de teoria literária. A conferência está publicada em "Outros Escritos", da Editora Rocco. 

Tímida e ao mesmo tempo ousada (na percepção dela mesma), Clarice legou-nos passagens que se abrem a intermináveis especulações. Necessária uma escolha (ainda que arbitrária) que me dê mote para texto comemorativo. Em "Feliz Aniversário", Clarice explorou dramas da velhice e desencontros familiares. É essa a narrativa que exponho. A propósito do aniversário de uma anciã, Clarice alcançou o cômico e o trágico, fundindo essas duas instâncias da condição humana. O leitor pode se ver com os olhos da senhora, sofrendo as humilhações que lhe são impostas. A aniversariante (com dificuldade) manifesta vontade que lhe foi retirada. É uma história de assustar. Dá medo de envelhecer. Muito medo. Muito medo mesmo. Parece-me que Clarice também nos adverte em relação ao que podemos esperar de nossos parentes. 

A anciã, na narrativa, completa 89 anos. Era grande, magra, morena, imponente e, ao mesmo tempo, oca. Vivia com uma das filhas. A dona da casa organizou a festa como pôde, arrumando a sala, que encheu de balões. Para ganhar tempo, conta-nos Clarice, a filha vestiu a aniversariante logo depois do almoço. A anciã foi logo sentada na ponta da mesa, aguardando os convidados, todos da família, que chegariam bem mais tarde. Clarice nos dá a impressão de que a protagonista da narrativa era um mero adereço no apartamento. 

Um dos filhos não foi à festa. Não queria encontrar os irmãos. Enviou em seu lugar a esposa e os três filhos, ao que consta ainda adolescentes. Era a "turma de Olaria", os suburbanos que se vestiram cuidadosamente porque iriam para Copacabana, onde a festa ocorria. A nora de Olaria deixava claro que não queria ir, e que estava ali obrigada pelo marido ausente. Fazia cara feia. Chega também a nora de Ipanema, esnobe, com dois netos e com uma babá, que Clarice dizia ociosa. O marido chegaria depois. Maridos de madames sempre chegam depois. Têm sempre um compromisso, no escritório, ou na política, ou em qualquer lugar que inventam na hora. As noras não se olhavam, se detestavam. Também veio o filho mais velho, que assumira o lugar de um filho falecido. Compareceu com toda a família. 

Comiam sanduíches de presunto, croquetes, bebiam ponche. Há cheiro de gordura e de fritura no apartamento. Havia na mesa um imenso bolo, com uma vela, junto à qual havia um pedacinho de papel onde se lia: 89. Gritam a idade da avó, cantam parabéns, os netos que estudavam no Colégio Bennet sempre falando em inglês. Conta-nos Clarice que as lembranças e presentes que a aniversariante recebeu de nada serviam. Uma saboneteira, um broche de fantasia, um pequeno vaso de cacto. Nada se aproveitaria. A dona da casa, amargurada, guardava os mimos com certa amargura, nada lhe serviria. Em torno de uma sala apertada circulavam, gritavam, comiam o que havia. O leitor tem a sensação de que os convidados cumpriam ritual, presos em inadiável obrigação. Contavam em ver a velhinha no ano seguinte, quando haveria um outro jantar. O encontro era anual, enquanto a anciã vivesse. 

A anciã olhava. Perplexa. Verdadeiramente desprezava aquelas pessoas. Desprezava os filhos. Carne de seu joelho. Eram seres opacos, com braços moles e rostos ansiosos. As mulheres eram todas de pernas finas, vaidosas. A aniversariante explodiu! Pediu vinho! E não queria pouco. Que vovozinha de nada, gritava! Que o diabo carregasse a todos: maricas, cornos, vagabundas! Cuspiu no chão! A família assustou-se com o destempero da avó. A avó esperava que após o bolo ainda houvesse comida. Hora de ir. Todos se despedem, combinando retomar as festividades no ano seguinte. A anciã comemoraria (sic) 90 anos. 

Clarice Lispector opôs familiares remediados e familiares não remediados; era a turma de Ipanema contra a turma de Olaria, que se encontravam em Copacabana. Fixou o irmão que rejeita toda a família, mas que obriga que a mulher o represente, talvez para que se lembrem de sua bravata. Uma protagonista central é a irmã a quem cabe cuidar da mãezinha, como um subpreço pelo fato de que não constituiu família própria. Todos estão reunidos e, ao mesmo tempo, muito distantes, na celebração de ritual que mais parecia prece de morte.

"Feliz aniversário" é reflexão muito séria sobre a velhice, que nos faz lembrar uma passagem emblemática de um autor romano (Ovídio): "Pensai, desde agora, na velhice que virá; assim o tempo não passará em vão para vós. Diverti-vos, enquanto é possível, enquanto vos encontrais nos verdes anos; os anos passam como a água que escoa: nem a água que corre voltará para trás, nem as horas poderão voltar. O tempo tem de ser aproveitado: ele foge com passo veloz e por melhor que seja não é tão bom como o que o antecedeu". A anciã, cujo nome não se lê no texto, é desprovida de vontade, de vigor, de voz de ordem. Talvez por isso nem mesmo nome tenha. Está ali, mas, ao mesmo tempo, não está. Está viva, mas já não tem mais vida. É um fator residual de união que talvez nunca tenha existido, ou que se desfez ao longo da vida. "Feliz aniversário" é também uma narrativa sobre o tempo, devorador de pessoas e de coisas, que nos faz pensar sobre a eternidade de Clarice, e de seus textos, e do modo como falava com a alma, nos termos em que compartilhei essas reflexões com uma alma gêmea.


domingo, 3 de maio de 2020

Rubens Ricupero: "O cenário da política externa é um cenário de ruínas" - Consultor Jurídico

CENÁRIO DE RUÍNAS

"A 'lava jato' acabou, pertence mais ao domínio da história do que ao da realidade"

Em 2004, quando deixou sua carreira diplomática, Rubens Ricupero —ministro da Fazenda quando da implantação do Plano Real — tinha se acostumado com a posição de prestígio alcançada pela diplomacia brasileira. Historiador e formado em Direito pela USP, ele deu entrevista à ConJur, por telefone, analisando a política externa atual e o legado da "lava jato".
Desde a redemocratização, em 1985, o modo que o país encontrou para se projetar internacionalmente foi regido pelo mesmo princípio: diplomacia é a busca da autonomia por meio da participação. 
O conceito, segundo o diplomata, começou a cair por terra quando Jair Bolsonaro assumiu a presidência. De lá para cá, diz, a política externa se tornou cada vez mais alinhada ao governo de Donald Trump e contrária a Pequim.
Mas política externa, antes de vir ao mundo, é gestada intestinamente. Em 2016, Ricupero afirmou que existia à época um "partido togado", que podia interromper o jogo político a qualquer momento — em referência à força das autodenominadas "operações" que se arvoraram como combatentes da corrupção. 
Revisitando o assunto, diz que a "lava jato" perdeu força no decorrer dos anos e dá seus últimos suspiros. "Aqueles filhotes da 'lava jato' que tinham sido criados nas justiças federais de diversos estados continuam existindo, mas em fogo brando. Como fenômeno político-judiciário, a 'lava jato' hoje pertence mais ao domínio da história do que ao da realidade", afirma. A conversa ocorreu antes de Sergio Moro deixar o Ministério da Justiça. 
Se a "lava jato" é passado, o "partido da toga" legou ao país um novo presidente — e sua nova política externa, conduzida por agentes que negam o isolamento social como saída para enfrentamento da epidemia de Covid-19, mas que aceleram o isolamento do país no mundo.
"O saldo líquido das decisões brasileiras é nos levar ao isolamento — em todos os sentidos do termo — e a uma perda extraordinária do poder brando que o país tinha acumulado. Hoje, sem nenhum exagero, o Brasil é o país cujo governante figura entre os mais menosprezados e mais detestados do mundo. O cenário da política externa é um cenário de ruínas", afirma.
A entrevista foi feita antes de Sergio Moro ter se demitido do Ministério da Justiça e Segurança Pública.
Confira a entrevista na íntegra: 
ConJur — Em entrevista concedida ao El País, o senhor afirmou que havia dois teatros durante a ditadura: o da vida política e o dos bastidores. Os fardados podiam intervir, interrompendo a peça a qualquer momento. De lá para cá, referindo-se à "lava jato" em Curitiba, disse que o partido fardado deu espaço ao partido togado. Ainda vê essa força toda emanando da "lava jato"?
Rubens Ricupero —
 Vejo uma espécie de esgotamento natural da operação, em parte por mudanças políticas — a eleição do Bolsonaro, a decisão de Moro aceitar ser ministro da Justiça, as revelações [do site] Intercept e toda a desmoralização que veio disso. A "lava jato" acabou. Ela continua existindo em tese, porque há condenações pendentes, assim como os recursos relativos ao Lula. Muito está por resolver, mas a "lava jato" acabou, assim como a "mãos limpas" acabou na Itália. O juiz que substituiu Moro não tem, nem de longe, aquele tipo de ativismo jurídico que o Moro tinha, ou aquele entendimento com os procuradores. Houve também uma certa aversão do STF e de outras instâncias. Aqueles filhotes da "lava jato" que tinham sido criados nas justiças federais de diversos estados continuam existindo, mas em fogo brando. Como fenômeno político-judiciário, a "lava jato" hoje pertence mais ao domínio da história do que ao da realidade. 
ConJur — O senhor já afirmou em algumas ocasiões que o confronto inicial gerado pela "lava jato" teve importância e gerou consequências positivas. Hoje, com tudo que se sabe sobre a atuação do ex-juiz Sergio Moro e dos procuradores, mantém essa opinião?
Rubens Ricupero —
 Como consequência política, a "lava jato" teve um impacto enorme na história brasileira. É responsável por boa parte do que aconteceu nos últimos anos. Basta ver que os escândalos de corrupção colocaram fim ao período de hegemonia do PT. Até hoje o PT não se reergueu do golpe que levou. Por outro lado, sempre tive dúvidas sobre a duração da "lava jato", que parecia exagerada enquanto operação judiciária. Além desse aspecto, a operação, em essência, pela própria natureza do Judiciário, continha uma limitação que, cedo ou tarde, acabaria por comprometê-la: operações policiais e judiciárias podem ser importantes para trazer luz sobre esquemas de corrupção, mas não conseguem por fim a eles. Isso acontece porque as soluções só podem ocorrer por meio de mudanças legislativas, algumas até de ordem constitucional, já que o que existia na raiz da corrupção eram problemas que apontavam para as imperfeições das instituições, para os defeitos que vão desde a politização das estatais até a ineficácia dos mecanismos de fiscalização. 
O saldo da "lava jato" é que algumas pessoas foram punidas, com grau maior ou menor de adequação, mas as raízes do problema não foram removidas. Esse problema permanece, tanto que uma das suas consequências foi a de dar ao presidente Jair Bolsonaro a justificativa de não tentar fazer um presidencialismo de coalizão, negociando com os partidos políticos ministérios, verbas e cargos de estatais. Por outro lado, isso cria um conflito maior com o Congresso, o que, novamente, demonstra o quanto as instituições são defeituosas. Em resumo, vejo a "lava jato" como uma tentativa de atacar os sintomas, não as causas da doença. Talvez tenha conseguido inibir os sintomas por um tempo, mas não removeu as causas profundas e não fez isso porque não podia fazer. A operação teve um papel histórico, mas, por todos os defeitos práticos, e em certos momentos deixando visível um ativismo jurídico muito grande, a "lava jato" deixou de existir.
ConJur — Falando agora de política externa: é possível resumir a diplomacia brasileira, a partir da redemocratização, como a busca da autonomia por meio da participação. Com essa atuação, o país conquistou prestígio. Agora, a marca definidora da política externa é o alinhamento com os Estados Unidos. Quais os impactos disso?
Rubens Ricupero —
 É mais do que isso. Não é um alinhamento com os EUA, mas com o governo de Donald Trump, que, por sua vez, conduz uma campanha sistemática contra todas as instituições do sistema internacional criado no pós-guerra — o multilateralismo, um sistema que funciona na base de normas, de leis, não da força. Ao se alinhar com esse governo, o Brasil trabalha contra o seu próprio interesse, pois os EUA têm muito poder. Já o Brasil é um país com pouco poder, que pode se tornar vítima da força alheia. Nosso país não é uma potência econômica e militar. Mas tem poder brando, que é a diplomacia do convencimento, da persuasão, da negociação. Ao se alinhar com os EUA, abrimos mão disso e nos subordinamos a um país que, esse sim, tem poder e que pode utilizá-lo de maneira deflagradora, sem nenhum limite. 
O saldo líquido das decisões brasileiras é nos levar ao isolamento — em todos os sentidos do termo — e a uma perda extraordinária do poder brando que o país tinha acumulado. Hoje, sem nenhum exagero, o Brasil é o país cujo governante figura entre os mais menosprezados e mais detestados do mundo. O cenário da política externa é um cenário de ruínas.
ConJur — Outra consequência apontada é o esgarçamento da relação com a China. Essas relações podem se desgastar ainda mais?
Rubens Ricupero —
 Essa deterioração é, em grande parte, culpa daquele núcleo mais ideológico, mais fanatizado do governo brasileiro. Mas, para além disso, há uma competição estratégica entre EUA e China, em todos os sentidos — militar, econômico, político etc. Quando o Brasil se alinha a Trump, ele está comprando a agenda norte-americana, que vem com todas as inimizades que os Estados Unidos têm: contra a China, Rússia, Irã, Cuba, e assim por diante.
Portanto, sem nenhuma justificativa para isso, o Brasil está no momento em posição antagônica a todos esses países que constituem grandes mercados para as nossas exportações. É claro que de imediato a China não vai, por exemplo, deixar de comprar soja do Brasil, pois não há uma alternativa fácil para nos substituir como fornecedores de alguns produtos. Mas, no médio e longo prazo, as relações comerciais ser tornarão cada vez mais difíceis. O Brasil está jogando todas as suas esperanças em um país [EUA] do qual ele não pode esperar nada. Nem mercado, nem investimento. 
ConJur — Se não há justificativas, essa postura brasileira com relação à China ocorre por uma questão meramente ideológica?
Rubens Ricupero —
 Puramente ideológica. É o equívoco de uma maneira de ver o mundo. O Brasil vê o mundo com os olhos da guerra fria. É uma visão completamente fora do tempo histórico, anacrônica, porque o país se comporta hoje em relação à China como o governo militar do Castelo Branco em 1964 se comportava em relação à União Soviética. O Brasil vê a China como o centro do comunismo mundial, uma espécie de "origem do mal", quando nada disso corresponde à realidade internacional. 
ConJur — O senhor disse que os EUA — e agora o Brasil — se portam de modo contrário ao sistema criado no pós-guerra, indo no caminho do anti-multilateralismo. Agora o mundo passa por uma pandemia. O coronavírus matou o multilateralismo?
Rubens Ricupero —
 O que está acontecendo com a pandemia é que quase todas as reações têm sido majoritariamente de tipo nacional, infelizmente. Em um primeiro momento, é até compreensível que seja assim, porque diante de uma emergência cada nação reage da forma mais rápida que pode e isso quase sempre é mais fácil no plano nacional. Mas deveríamos rapidamente passar a uma fase de coordenação internacional, tanto para combater a doença quanto para combater as consequências econômicas dela. Há algum esboço para utilizar o Grupo dos Vinte [G20, formado pelos ministros de finanças e chefes dos bancos centrais das maiores economias do mundo] para sustentar a dívida dos países mais pobres durante um ano. Mas são reações fracas.
Mesmo na União Europeia, os países mais afetados pelo coronavírus, como a Itália e a Espanha, não receberam uma ajuda significativa da comunidade europeia. A Itália recebeu mais ajuda da China do que dos seus vizinhos no começo. Agora a União Europeia começa a reagir, mas o panorama é de sombras e luzes — mais de sombras. Existe algum grau de cooperação, mas é pequeno. E existe muitos, infelizmente muitos exemplos de egoísmo nacional, inclusive esses que afetaram o Brasil, de países que se atravessaram para comprar equipamentos que já tinham sido negociados. Então, sem dúvidas, o multilateralismo está em crise. Mas não desespero dele, porque acho que existem inúmeras perspectivas de que isso melhore. Por exemplo, ainda é incerto o que vai acontecer na eleição dos EUA. É possível que, devido a tudo isso, as eleições acabem enfraquecendo o atual presidente e ele não consiga se reeleger. Se ele não se reeleger, teremos condições de recuperar muito do que se perdeu em matéria de multilateralismo, porque 90% ou mais do que está acontecendo é praticamente resultado da ação do governo Trump. 
ConJur — Dentro desse cenário de pandemia, o senhor vislumbra a possibilidade de que surja uma nova ordem econômica e jurídica?
Rubens Ricupero —
 Sobre isso eu tenho dúvidas. Pandemias e epidemias, mesmo as muito mais graves que essa, em geral nunca mudaram o sistema econômico-político. Quando elas foram muito fortes, elas afetaram tendências que já existiam. Mas mesmo a peste negra, a peste bubônica, assim como as pestes que se seguiram, nunca afetaram o sistema político das monarquias da época. As tendências, as rivalidades que existiam, assim como os sistemas econômicos de troca, permaneceram iguais. Os sistemas econômicos, políticos e jurídicos obedecem à ação de forças profundas.
O que podem ocorrer são mudanças de curto prazo, que às vezes se seguem quando há acontecimentos suficientemente poderosos. Eu não ficaria surpreso, por exemplo se, passada essa crise, os países buscarem adquirir uma certa autonomia, uma certa autossuficiência em matéria de produtos farmacêuticos e médico-hospitalares. As nações podem buscar reduzir a dependência sobre esses produtos que existe com relação à China e outros países asiáticos. Isso pode acontecer, mas não vejo a possibilidade de uma reforma profunda na estrutura do capitalismo ou do sistema político que temos hoje. 
ConJur — Com o avanço do novo coronavírus, aliás, foram adotadas algumas medidas emergenciais. O Senado aprovou, por exemplo, o PL 1.179/20, que, entre outras coisas, flexibiliza dispositivos do Código Civil. O que acha de medidas como essa?
Rubens Ricupero —
 A ideia básica de tentar encontrar uma solução para o momento é correta. Há um abalo muito grande até no sistema normal de pagamentos. Muitas empresas e indivíduos não são capazes de cumprir suas obrigações. Em certos casos, as regras precisam ser suspensas, da mesma forma como está se fazendo com regras de contrato de trabalho, flexibilização que busca manter a existência do emprego. Portanto, acredito que essas iniciativas são necessárias. Não me refiro especificamente ao PL citado, mas à tentativa de dar uma resposta ao que está acontecendo. Os contratos são vigentes enquanto mantidas as condições em que eles foram celebrados. Quando as condições se alteram de modo muito radical, muitas vezes não há a possibilidade de manter os termos tal como foram acordados. 
ConJur — Nos últimos anos, uma série de conflitos entre Legislativo e Executivo acabaram sendo resolvidos pelo Judiciário. O que pensa a respeito dessa judicialização?
Rubens Ricupero —
 Eu tenho a impressão de que esse fenômeno coincide com o agravamento da crise institucional. Vivemos uma crise prolongada, que começa no primeiro governo da Dilma Rousseff e que se prolonga até hoje. O impeachment não resolveu a crise e em cada governo surgem problemas novos. No fundo, o quadro é de mau funcionamento das instituições. O sistema presidencialista tem uma rigidez que não permite a solução de problemas quando há impasse entre Executivo e Legislativo — e a tendência é a de que esses poderes entrem cada vez mais em conflito.
Um exemplo que vem logo à mente é a incapacidade que o Legislativo tem de resolver problemas com conteúdos ligados à questões de tipo moral: moral familiar, moral sexual, aborto, casamento entre homossexuais etc. O Legislativo fica paralisado diante dessas questões porque há uma representação grande de grupos religiosos. Então, embora sejam claramente do âmbito do Legislativo, esses temas acabam indo ao Judiciário. Quase todas as grandes decisões envolvendo temas como esses — o aborto no caso de fetos anencéfalos, casamento homoafetivo — foram talhadas pelo Judiciário. Creio que isso continuará acontecendo, porque a solução definitiva é fazer uma reforma profunda do sistema político, o que não parece estar no horizonte. Assim, as pautas continuarão indo ao Judiciário. 
ConJur — Em casos como esses, em que o Legislativo deixa um vácuo ao não tratar de certas questões, é justificável a atuação do Judiciário?
Rubens Ricupero —
 Existe a necessidade colocada pelo próprio sistema político. Não se pode conviver com o vácuo de poder. Há decisões que precisam ser tomadas. Se não forem pelas instâncias que normalmente deveriam resolver o problema, acabam indo aos tribunais. Nesse sentido, a necessidade justifica as decisões judiciais. Não é o ideal, mas não vejo outra saída. 
 é repórter da revista Consultor Jurídico.
 é correspondente da revista Consultor Jurídico em Brasília.