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domingo, 30 de abril de 2023

O martírio de Branca Dias em O Santo Inquérito, de Dias Gomes - Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy (Embargos Culturais, Consultor Jurídico)

 Mais um da imperdível série dos Embargos Culturais de Arnaldo Godoy.

EMBARGOS CULTURAIS

O martírio de Branca Dias em O Santo Inquérito, de Dias Gomes

Por 

Em O Santo Inquérito, Dias Gomes (1922-1999) retomou o martírio de Branca Dias (século XVI) para explorar o assustador tema da violência na política. Agências judiciárias são instrumentalizadas para a perseguição e destruição do inimigo político, o que muitos chamam hoje de "lawfare". O tema é recorrente, porque é da essência de uma concepção realista da vida forense. Não há novidades.

Quanto ao enredo, Branca Dias é uma personagem cuja existência suscitaria algumas dúvidas, inclusive se vivia em Pernambuco ou na Paraíba. Há fortes indícios de que vivera em Olinda, onde encontramos uma simpática casa atribuída a essa proto-heroína.

Para José Joffily (político e historiador paraibano que viveu muitos anos no Paraná) Branca Dias nasceu na Paraíba, em 1734, foi condenada pela Inquisição por ser judia, e teria morrido na fogueira em Lisboa, em 1761. Joffily expôs em seu livro (Nos tempos de Branca Dias) uma foto da rua Branca Dias em João Pessoa. Minha mãe, Leila Moraes Godoy, coordenou e revisou o trabalho.

Arnaldo Nisker, da Academia Brasileira de Letras, também tratou do assunto em Branca Dias, Martírio, em livro muito bem pesquisado, sob uma perspectiva da perseguição ao judaísmo, realisticamente observando que o martírio de Branca Dias, real ou imaginário, marca fortemente a imaginação popular. Niskier é um especialista em temas conexos, como lemos em Padre Antonio Vieira e os Judeus.

Dias Gomes antepõe à peça um texto de importante valor historiográfico, registrando o que sabia e o que pensava sobre os personagens. Supõe que Branca Dias havia de fato existido, e que fora queimada na fogueira, a exemplo de Joana D'Arc. Admitiu que a história não é precisa e que há muita controvérsia em torno do assunto. A introdução fixa precisamente os limites entre história e ficção. O que aconteceu não importa. O que vale é como o autor se apropriou do enredo e do motivo histórico.

O que também encanta nessa peça de Dias Gomes é a problematização da condição da mulher. A sinceridade de Branca Dias, e até certo ponto sua ingenuidade, possibilitam uma chave interpretativa para a tragédia. O Inquisidor, Padre Bernardo, é um crápula. Implacável, pervertido, maldoso, que invertia o sentido da realidade das coisas, alertando que a acusada fingia que era um anjo de candura, e que os julgadores não eram "bestas sanguinárias". Branca Dias, no entanto, chega a afirmar que o Santo Ofício era misericordioso e justo. Quanta ingenuidade.

Há aqui também um problema historiográfico que pode nos colocar numa cilada. A Inquisição era a forma de adjudicação daquele tempo, naquele contexto, e nesse sentido era a forma como se buscava a verdade. Quem viveu à época não entendia (e nem podia entender) de outra forma. O assunto foi tratado por Michel Foucault em uma série de conferências que proferiu no Rio de Janeiro, em 1973, na então Universidade Católica do Rio de Janeiro. As conferências foram organizadas e coordenadas por Affonso Romano de Sant'Anna.

A busca da verdade por meio da racionalidade não era certamente a fórmula que conduzia os processos no ambiente da Inquisição, como lemos nos grandes estudos sobre o assunto, de Anita Novinsky, Giuseppe Marcocci, José Pedro Paiva, Neusa Fernandes, Francisco Bethencourt, Ronaldo Manoel Silva e Antonio Borges Coelho, entre tantos outros. Indico a leitura imperdível das Confissões da Bahia, organizadas por Ronaldo Vainfas. O assunto (Inquisição) é substancialmente atual, especialmente à luz de delações premiadas, acordos de leniência e de não persecução penal. No núcleo, a disputa em torno do monopólio da verdade. Vale também a leitura de O Queijo e os Vermes, de Carlo Ginsburg.

Na peça, ironicamente, Branca Dias havia salvado a vida do religioso que a acusa, que quase morrera afogado. O padre reconhece que Branca Dias lhe havia estendido a mão uma vez, que lhe salvara a vida, e que agora era sua vez de retribuir com o mesmo gesto. Ela a mandou para a fogueira, na conclusão de um processo que não poderia terminar de outra forma. Retribuiu. Um canalha.

Branca Dias tinha posições firmes. Afirmou (na peça) que "se um texto da Sagrada Escritura pode ter duas interpretações opostas, então o que não estará nesse mundo sujeito a interpretações diferentes?". É essa dúvida (de algum modo cartesiana) que forneceu à Inquisição o material para condenar a ré. A acusação consistia na heresia e na prática de atos contra a moralidade, a exemplo de nadar nua no rio, numa noite de muito calor. Branca Dias não confessou o que não podia confessar, não mentiria, "nem mesmo em troca do sol".

Na sentença, o tribunal concluiu: "Procedemos a um longo e minucioso inquérito, em que todas as acusações foram examinadas à luz da verdade, da justiça e do direito canônico. À acusada foram oferecidas todas as oportunidades de defesa e arrependimento. Dia após dia, noite após noite, estivemos aqui lutando para arrancar essa pobre alma às garras do Demônio. Mas fomos derrotados. Desgraçadamente". Na execução (fogueira) o padre, o canalha a que me referi acima, "a vê, angustiado, contorcer-se entre as chamas (...) contorce-se também, como se sentisse na própria carne".

A Inquisição queimava os corpos para salvar as almas.


 é advogado em Brasília (Hage e Navarro), professor livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC-SP, professor titular mestrado-doutorado na Uniceub (Brasília) e professor visitante (Boston, Nova Déli, Berkeley, Frankfurt e Málaga).

Revista Consultor Jurídico, 30 de abril de 2023, 8h00

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