Para muitos analistas, não fica claro se essa decisão foi resultado de uma extraordinária imperícia diplomática ou produto de uma ingenuidade. Ou ambos.
É o que sugere The Economist para tentar explicar por que o recém-começado terceiro governo do líder do PT embarcou nesse conflito, pendendo para a narrativa da Rússia.
A ambição de Lula é devolver o Brasil ao lugar que ocupava na agenda internacional há 20 anos, na época de seus dois primeiros mandatos. Era um mundo diferente, e o brilho saudosista talvez o impeça de detectar os caminhos escabrosos deste presente.
Essa visão é ofuscada ainda mais pelas complicações internas que o governo enfrenta. O petista ganhou de Jair Bolsonaro por uma margem estreita de votos, que se reflete na falta de poder no Congresso e na construção de um gabinete do centro à direita, conectado com o país que ele tem que governar.
Um Brasil com um eleitorado de classe média que o escolheu, em grande parte, para não apoiar a misoginia e o fanatismo iliberal do candidato de extrema-direita. Ou seja, que optou pelo candidato que, na comparação, era mais liberal, não mais esquerdista -conceito que Lula, longe do folclore dos anos 70, talvez tenha enterrado para sempre nesta campanha-.
Esse é um espaço em que o presidente se sente à vontade. Nos seus dois governos anteriores, Lula jogou nas duas pontas do espectro. Promoveu uma política econômica ortodoxa que monitorava rigorosamente os gastos públicos, os lucros empresariais e os superávits gêmeos, ao mesmo tempo em que ele abraçava os Castro cubanos, conversava de igual para igual com Hugo Chávez, com o nicaraguense Ortega e com os Kirchner da Argentina.
Era um atalho para dissolver o risco de conflitos internos. Mas tudo mudou e esses players, os que ainda estão, já não têm o mesmo protagonismo. A guerra pode ter funcionado então como uma tentação para exibir essas rebeldias.
Tudo indica que essa guinada controversa, nos moldes dos parâmetros Leste-Oeste do século passado, foi aconselhada pelo veterano assessor internacional de Lula, Celso Amorim.
Essa visão, comum no chamado progressismo regional, concebe o drama ucraniano como a ponta de lança dos EUA contra a Rússia que, apesar de não ser mais a lendária União Soviética, mantém um enfrentamento com os Estados Unidos, o odiado império da Guerra Fria.
O principal prato chinês Mas não é a Rússia, e sim a China, que atrai especialmente o líder do PT, menos motivado ideologicamente por uma necessidade de crescimento que resolva uma realidade econômica limitada.
As autoridades brasileiras ouvem as críticas dos EUA sobre essas mutações, mas acusam Washington de falar muito e mostrar pouca consistência prática.
A recente viagem de Lula à China resultou em 10 bilhões de dólares em investimentos. Algumas semanas antes, o encontro com Joe Biden na Casa Branca teve como saldo zero compromissos monetários. Pior ainda, há um persistente êxodo de investidores americanos do Brasil.
Um dado paradigmático desse ciclo é a montadora Ford, que saiu do país há dois anos e agora está vendendo sua enorme fábrica na Bahia para a chinesa BYD que, segundo a Bloomberg, a usará para fabricar carros elétricos.
A intenção de Lula e sua equipe, dizem fontes diplomáticas a este cronista, é impulsionar as decisões de investimento com uma multiplicação de fábricas, acordos tecnológicos, negociações nas moedas nacionais e uma aliança econômica quase total com a China.
Esse passo pragmático é fácil de entender. Não assim a derrapagem sobre a Ucrânia. É difícil que tenham pedido a Lula uma contraprestação tão grande. No fim da sua viagem à China, o petista surpreendeu ao insistir em equiparar Kiev a Moscou na responsabilidade pela guerra. Ele confundiu a vítima com o criminoso.
Essa é uma noção grave que Lula já havia ensaiado em uma entrevista em maio do ano passado à revista Time, antes da eleição, na qual afirmou livremente que o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky "queria a guerra. Se ele não quisesse, teria negociado um pouco mais. É isso". Como assim? Negociado?!!
Essa visão polêmica ignora o fato de que não se trata de um conflito clássico com exércitos lutando nas fronteiras. A Rússia invadiu a Ucrânia e há um ano vem demolindo o país, massacrando civis, casas, hospitais e escolas para demonstrar um suposto direito do Kremlin de mandar em todo o território que fazia parte da URSS. Não é só a Ucrânia.
É por isso que o mundo assiste a esse cenário com horror, repudiando Moscou e se solidarizando com Kiev. Vale lembrar que a Ucrânia não é o Vietnã nem a Coreia.
Lula entrou nesse drama com o pé esquerdo, desgastando desnecessariamente a imagem do Brasil como defensor dos direitos humanos e afugentando o público europeu que o tinha recebido com aplausos.
Um ciclo maior dessa deterioração foi a crítica do brasileiro aos EUA e à Europa por fornecerem ajuda militar à Ucrânia e sancionarem a Rússia. Mas Lula sabe que, sem essas duas ferramentas, Putin teria vencido a guerra imediatamente.
Há alguns dias, Amorim conversou pelo telefone com o assessor de segurança nacional dos Estados Unidos, Jake Sullivan, para esclarecer o que chamou de mal-entendidos e afirmar que o Brasil não apoia a visão chinesa da guerra e muito menos a da Rússia. Mas essas palavras se chocam com os gestos.
É interessante lembrar que o líder do PT chegou à presidência do Brasil com grande entusiasmo da Casa Branca, incomodada com Bolsonaro e com sua relação estreita com Putin, que o então presidente visitou dias antes do início desta guerra que nunca condenou.
Joe Biden foi um dos primeiros a parabenizar Lula após a vitória, desfazendo assim as acusações de fraude eleitoral que Bolsonaro lançava.
Após esse sinal, uma delegação chefiada por Sullivan viajou imediatamente a Brasília para convidar o presidente eleito para uma reunião em Washington. Esse encontro ocorreu neste ano, após a posse de Lula, e nele os dois presidentes condenaram a guerra e Moscou.
Naquela época nasceu um acordo entre as duas maiores economias do hemisfério, que compartilham a preocupação com a crise de representação que está dilacerando a região. Além disso, existe o interesse evidente dos EUA em construir uma aliança que modere o firme avanço da China e, em menor escala, da Rússia na América Central e do Sul. Essa parceria de confiança foi quebrada. É claro que, se houve ingenuidade, não foi apenas de Lula.
Submarinos e centrais atômicas Os laços do Brasil com a China são imparáveis. Até a tecnologia da China, o 5G da Huawei em vigor aqui desde 2021, visa inundar a estrutura de comunicações e os rudimentos da Internet das Coisas do gigante sul-americano.
A Huawei já tem duas fábricas de equipamentos de telecomunicações em São Paulo. Uma delas é uma fábrica inteligente inaugurada em março de 2022.
Do lado russo, há outros aspectos pouco abordados pela mídia que prometem um embate ainda mais acentuado com Washington. Lula, alinhado nesse aspecto com as negociações de Bolsonaro com Moscou, busca o apoio do setor de energia atômica russo para o fornecimento de combustível para o reator do submarino de propulsão nuclear brasileiro, que entrará em operação na próxima década.
Conforme lembrou a Folha de S.Paulo, o presidente quer manter contato com a Rosatom, estatal russa que lidera o mercado mundial de reatores, para a retomada da construção da central nuclear Angra 3, a maior das três de mesmo nome. Angra 1 e Angra 2 já estão em funcionamento.
A empresa russa já apresentou uma proposta com algumas garantias para esse projeto, concorrendo com a americana Westinghouse, a chinesa CNNC e a francesa EDF. As obras da central nuclear estão paralisadas desde 2015 devido a denúncias de corrupção na estatal brasileira Eletronuclear durante o fracassado governo petista de Dilma Rousseff, na época da Lava Jato.
Essas questões, e não apenas o destino da guerra na Ucrânia, foram tratadas na reunião do dia 17 deste mês, em Brasília, entre o chanceler russo, Sergei Lavrov, seu par brasileiro, Mauro Vieira, e o próprio presidente Lula.
Visita que ocorreu em meio ao repúdio internacional a essa presença, recebida com honras pelo governo brasileiro e que proclamou sua satisfação pelos múltiplos interesses comuns que unem os dois países.
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