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domingo, 23 de abril de 2023

O PT não fez sua conversão à economia de mercado - Maílson da Nóbrega (FSP)

 O PT não fez sua conversão à economia de mercado

Maílson da Nóbrega

Ex-ministro da Fazenda (1988-1990, governo Sarney) e sócio da Tendências Consultoria

[RESUMO] O PT, que desde a sua fundação se orienta pela defesa da democracia representativa e do Estado de bem-estar social, não foi capaz de abandonar ideias econômicas ultrapassadas, como o apego a empresas estatais e a rejeição da independência formal do Banco Central, afirma autor. Em sua avaliação, a ênfase nesse programa e a perspectiva de baixo crescimento nos próximos anos tornam provável uma derrota eleitoral, que poderia ser uma oportunidade para o partido modernizar suas orientações no campo da economia, o que traria grandes benefícios ao país.

Folha de S.Paulo, 23/04/2023

O PT (Partido dos Trabalhadores) foi fundado em 1980, quando a grande maioria dos partidos de esquerda da Europa havia abandonado ideias marxistas como a ditadura do proletariado e a propriedade estatal dos meios de produção. A democracia representativa passou a fazer parte de seu ideário, assim como a economia de mercado, associada a um Estado de bem-estar social.

Sob a liderança de Luiz Inácio Lula da Silva, o PT se firmou como única agremiação de esquerda brasileira capaz de ganhar eleições presidenciais. No campo político, tal qual seus congêneres europeus, adotou a democracia representativa como meio de alcançar o poder, em vez da revolução.

Não deu, contudo, o passo seguinte: a aceitação plena da economia de mercado. O PT continuou aferrado ao intervencionismo na economia, ao protecionismo industrial, ao apego a empresas estatais, ao gasto público como alavanca da prosperidade e à rejeição da ideia de independência formal do Banco Central, consagrada no mundo há pelo menos 50 anos.

No campo social, mais que qualquer outro partido, o PT comprometeu-se com os ideais da redução das desigualdades sociais, do combate à pobreza e da fé na democracia. Apesar da admiração a Fidel Castro, Cuba nunca foi o modelo que inspiraria a ação do partido.Segundo o sociólogo Celso Rocha de Barros, autor do excelente "PT, Uma História" , suas ideias receberam influência da esquerda católica adepta da Teologia da Libertação. Para ele, "tanto o catolicismo de esquerda quanto os sobreviventes da luta armada produziram quadros e ideias para o Partido dos Trabalhadores. Mas, dos dois, só o catolicismo social produziu movimentos" (grifo do original).

Ao contrário de partidos europeus, caso do Partido Socialista Operário Espanhol, o PT nunca inscreveu em seus estatutos o objetivo de controle estatal dos meios de produção nem da abolição da propriedade privada.

José Dirceu, que se tornaria um dos principais quadros do PT, foi um dos fundadores da Articulação, corrente que viria a ser a mais importante fonte de moderação e de caminhada rumo à social-democracia. Segundo Rocha de Barros, a corrente "consolidou a influência de Lula e do setor sindical da legenda". Apesar do apoio a líderes autoritários de Cuba, Venezuela e Nicarágua, Lula e outros dirigentes do PT inscreveram a democracia nos princípios fundamentais do partido.

Em questões econômicas, todavia, as ideias ultrapassadas do PT resistem ao tempo. Não se percebe que empresas estatais são um fenômeno do século 19, justificado pela ausência de capacidade gerencial e financeira do setor privado para operar setores essenciais ao desenvolvimento, como o financeiro e os de infraestrutura de transporte, energia e comunicações.

À medida que o setor privado e os mercados de capitais se fortalecem, como tem sido o caso no Brasil, desaparece a justificativa de manutenção de tais empresas. O Japão privatizou a maioria de suas estatais no fim do século 19, e a Europa, nos anos 1980 e 1990.

O preconceito contra credores externos —outra das características originais do partido— levou o PT a aliar-se à proposta de auditoria da dívida externa apresentada pela CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), que promoveu um "plebiscito" em setembro de 2000 para questionar empréstimos concedidos por países, organizações multilaterais e bancos estrangeiros. Na ocasião, se votaria também sobre o descumprimento do acordo então vigente com o FMI. O pagamento da dívida somente poderia ser admitido depois de uma auditoria.

Na campanha presidencial de 2002, que daria a primeira vitória a Lula, o PT emitiu sinais de reversão dessas ideias. A Carta ao Povo Brasileiro, redigida pelos petistas Antonio Palocci e Luiz Gushiken, dois ex-militantes trotskistas, e pelo jornalista Edmundo Machado de Oliveira, sinalizou o abandono de propostas econômicas radicais, visando influenciar positivamente o mercado financeiro.

Era uma posição sensata e corajosa, pois contradizia o programa do partido, que assustava até no título: Uma Ruptura Necessária. A carta defendia o cumprimento de contratos e a responsabilidade fiscal, incluindo a geração de superávits primários "o quanto bastasse". Prometia, implicitamente, pagar a dívida interna e externa.

Lula surpreendeu ao manter a política econômica de FHC, o chamado tripé macroeconômico (metas de inflação, austeridade fiscal e câmbio flutuante). Convidou um presidente de banco estrangeiro, Henrique Meirelles, para comandar o Banco Central. Aprovou os nomes de três economistas liberais (Murilo Portugal, Joaquim Levy e Marcos Lisboa) para assessorar o ministro da Fazenda, Antonio Palocci. O decorrente equilíbrio macroeconômico permitiu que o país e Lula se beneficiassem dos efeitos do ciclo de commodities resultante da entrada da China no comércio global. A isso, se deve grande parte do êxito do primeiro mandato.

A partir do segundo mandato, iniciou-se o retorno gradativo às ideias antigas do PT, indicando que a moderação nas crenças econômicas não estava consolidada. Anunciou-se a criação da Nova Matriz Econômica, que prometia, mediante expansão fiscal e crescente intervenção na economia, preservar o ritmo de crescimento dos tempos do ciclo de commodities, que se havia encerrado.

No governo Dilma Rousseff, a virada da política econômica se acentuou. Buscou-se estimular a atividade econômica por meio do apoio a "campeões nacionais". O Tesouro Nacional transferiu cerca de 10% do PIB ao BNDES para a concessão de crédito subsidiado a empresas com capacidade de acessar os mercados de capitais do Brasil e do exterior. Estudos mostraram o efeito limitado ou nulo desse programa nos investimentos.

A terceira vitória presidencial de Lula ocorreu sob a expectativa de repetição do pragmatismo responsável do primeiro mandato, mas o presidente tem contrariado tal esperança. Já no discurso de posse, sinalizou o retorno do intervencionismo estatal, do protecionismo (substituir importação de aeronaves, microprocessadores e plataformas submarinas) e dos subsídios do BNDES.

O início do mandato se caracterizou também por ações positivas como a reinstituição do programa Bolsa Família e medidas associadas ao meio ambiente. Antes da posse, Lula compareceu à COP27, no Egito, onde pronunciou discurso muito bem-recebido no país e no exterior, em que defendeu ações ambientais avançadas e uma política de desmatamento zero na Amazônia.

A visita a Buenos Aires, na terceira semana do governo, teve grande efeito simbólico. Jair Bolsonaro (PL) não havia comparecido à posse do presidente argentino, Alberto Fernández, gesto indelicado que dedicou a outros presidentes de esquerda latino-americanos. Com essas e outras iniciativas, Lula começou a reconstruir o prestígio do país no exterior. Lembre-se que o ministro de Relações Exteriores de Bolsonaro, Ernesto Araújo, se jactou da posição de pária que então se atribuía ao Brasil.

O retorno a ideias antiquadas se expressou no questionamento do teto de gastos ("uma ideia estúpida"), no ataque à independência formal do Banco Central ("uma bobagem"), na sugestão de elevar a meta de inflação ("como nos 4,5% do nosso tempo") e na condenação da taxa Selic de 13,75% ("sem qualquer justificativa"). Prometeu avaliar a lei de independência do Banco Central tão logo expirasse o mandato de Roberto Campos Neto em 2024.

A presidente nacional do PT, Gleisi Hoffmann, tornou-se crítica ácida e frequente de Campos, considerando-o uma presença bolsonarista que conspira contra o êxito do governo. O líder do PT na Câmara, José Guimarães, disse que "as autoridades monetárias também têm que contribuir com aquilo que saiu das urnas", como se o BC fosse um órgão de governo que devesse atrelar a política monetária aos programas eleitorais dos vencedores.

Na economia, dificilmente Lula cumprirá a promessa de retorno a taxas altas de crescimento, que tem reiterado desde que tomou posse do cargo. Vários estudos mostram que o potencial de crescimento do PIB pode ficar abaixo de 2% durante seu governo. Isso pode afetar sua popularidade e inibir a competitividade do PT nas eleições presidenciais de 2026.

Caso derrotado, o PT deixará de contar, nos pleitos seguintes, com um candidato com o carisma e o poder eleitoral de Lula, sem paralelo na história do país.

Dois cenários para o futuro do PT podem ocorrer caso o partido fique por muito tempo ausente do poder. No primeiro cenário, seus líderes não perceberiam que o fracasso eleitoral teria a ver com os efeitos negativos da adoção de ideias econômicas ultrapassadas.

O PT seguiria o destino do PCF (Partido Comunista da França), que quase ganhou as eleições gerais logo após o fim da Segunda Guerra, mas não se renovou. Continuou leal a Stálin e apoiou a invasão da Hungria e da Tchecoslováquia por tropas soviéticas. O PCF perdeu apoio popular e, hoje, elege apenas 1% a 2% dos membros do Parlamento francês.

A meu ver, essa não seria a hipótese mais provável. O PT goza de solidez sem igual no sistema político. Dispõe de amplo apoio social e de numerosa militância, principalmente dos sindicatos de trabalhadores. Dificilmente minguaria.

No segundo cenário, para mim o mais provável, as derrotas eleitorais exerceriam efeito didático que induziria os líderes do partido a promover corajosa reflexão interna, cujo desfecho seria o abandono de ideias econômicas fora do lugar. O PT repetiria a modernização dos trabalhistas britânicos, influenciados pelos seguidos fracassos eleitorais nas disputas contra os conservadores, que começaram com a vitória acachapante de Margaret Thatcher em 1979.

Sob a liderança de Tony Blair, o ideário econômico do partido foi revisto com o objetivo de conquistar o eleitor cansado de políticas estatizantes. Mudou-se o artigo 4º dos estatutos, visto como compromisso com o controle estatal dos meios de produção. Com votação expressiva, os trabalhistas venceram as eleições gerais de 1997.

Como primeiro-ministro, Blair deu continuidade à política econômica dos conservadores —incluindo a privatização de empresas estatais— e a medidas liberalizantes. Uma de suas primeiras ações foi a concessão de independência formal ao Banco da Inglaterra, o Banco Central do país. O Partido Trabalhista ficou à frente do governo por 13 anos.

Mais recentemente, o Reino Unido assistiu a uma desastrosa escolha de um político de extrema esquerda, Jeremy Corbyn, para liderar o Partido Trabalhista, mas ele acabou sendo destituído. Hoje, o país vive um grande consenso político entre conservadores e trabalhistas, que abarca a imigração, a política externa e o futuro do país.

O atual ministro da Fazenda, Jeremy Hunt, e a parlamentar trabalhista Rachel Reeves, a ministra "sombra" do mesmo cargo, professam visões semelhantes sobre o tamanho do Estado. Para a revista The Economist, em texto de 2013, "os parâmetros do debate político estão firmemente estabelecidos". "O que parecem diferenças em políticas públicas são frequentemente mera questão de ênfase."

Caso o PT passe por semelhante transformação, os benefícios para o partido, para a economia e para a sociedade seriam imensos. Nesse segundo cenário, o partido não conseguiria superar o desafio da ausência de Lula nas eleições, direta ou indiretamente. Depois de longo período fora do poder, o PT modernizaria suas ideias e renovaria sua liderança, provavelmente após uma mudança geracional.

Se assim for, o partido recuperaria a competividade eleitoral e reassumiria o comando do país. Em uma visão otimista, estariam dadas as condições para que o Brasil retomasse a trajetória que poderia levá-lo a fazer parte das nações desenvolvidas.

Viveríamos, desse modo, uma das características básicas dos países bem-sucedidos. Neles, segundo o economista britânico Stefan Dercon, um elemento crucial do processo de desenvolvimento é a continuidade das políticas públicas básicas quando há mudança de governo.

Um bom exemplo atual é o da Alemanha. O atual chanceler, Olaf Scholz, é filiado a uma agremiação de esquerda, o Partido Social-Democrata (SPD, na sigla alemã), mas os pilares básicos, como o equilíbrio macroeconômico, continuam os mesmos do governo anterior liderado pela conservadora Angela Merkel. Poderíamos ter situação parecida no Brasil.

Este artigo se baseou em ensaio publicado pela Tendências Consultoria.

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2023/04/pt-resiste-a-abracar-economia-de-mercado.shtml

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