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quarta-feira, 19 de abril de 2023

Lula abraça visão da esquerda que vê guerra como desafio à hegemonia dos EUA, diz Ricupero - Marcos de Moura e Souza (Valor)

 Lula abraça visão da esquerda que vê guerra como desafio à hegemonia dos EUA, diz Ricupero

Para ex-embaixador, embora não veja risco de retaliações de parceiros aliados aos EUA, o Brasil se enfraquece ao tentar esse caminho

Por Marcos de Moura e Souza

Valor, 18/04/2023

As declarações recentes do presidente Luiz Inácio Lula da Silva sobre a guerra entre Rússia e Ucrânia -- de que os dois têm responsabilidade que precisam parar -- dão vazão a uma interpretação que tem sido feita por partidos e por acadêmicos de esquerda, segundo a qual o que está em curso desde o ano passado é uma espécie de guerra por procuração. 

De um lado, EUA e aliados ocidentais por trás da Ucrânia; de outro, Rússia e China. Um confronto entre a hegemonia americana e seus principais contestadores. É o que, na avaliação do ex-embaixador Rubens Ricupero, parece explicar as posições de Lula, que logo foram rebatidas pela Casa Branca e pela União Europeia. Ricupero diz que não há "justificativa para a invasão e muito menos para colocar em pé de igualdade o agressor e o agredido". Para ele, o Brasil não ganha nada com as palavras do presidente, que coincidem mais com as palavras de Moscou e Pequim do que com as de Washington e Bruxelas. E embora não veja risco de retaliações de parceiros aliados aos EUA, Ricupero avalia que o Brasil se enfraquece ao tentar esse caminho.

Aos 86 anos, Ricupero esteve bastante próximo do ex-chanceler Celso Amorim durante a campanha de Lula em 2022. Apoiou publicamente o petista e diz não se arrepender disso. Mas contesta uma linha que considera ser a do PT puro-sangue nas posições relativas à política externa neste início de terceiro mandato. O resultado é um só, diz ele: "Se você olhar as reações dos últimos dias, Lula está sendo criticado urbi et orbi."

A seguir os principais trechos da entrevista:


Valor: O que a declaração do presidente Lula de que Rússia e Ucrânia têm responsabilidade pela guerra revela sobre a percepção dele em relação à invasão russa e a guerra?

Ricupero: Obviamente é inadequado colocar no mesmo pé o agressor e o agredido. Por que o Lula faz isso? Ele, como muitas outras pessoas, faz isso porque entende que a raiz da guerra é a questão da expansão da Otan até as fronteiras da antiga União Soviética. É um argumento que considera o que seriam os temores da Rússia em relação à entrada da Ucrânia na Otan. Mas ainda que para essas pessoas tenha sido um erro à expansão da Otan -- e para mim não foi um erro -- isso não justifica de forma alguma invasão como a que ocorreu em 24 de fevereiro de 2022. Foi uma invasão premeditada e ilegal. Pela carta das Nações Unidas, só há duas hipóteses em que um país pode recorrer à guerra legalmente pelo direito internacional. Uma é em legítima defesa, o que obviamente não aconteceu; a outra é quando o Conselho de Segurança decide que aquele país é uma ameaça à paz e à segurança mundial. Foi o que aconteceu com Afeganistão em 2001, quando o governo afegão se recusou a pôr fim à proteção que dava a Al-Qaeda e o Conselho de Segurança decidiu que era justificável uma operação contra o Afeganistão. Nesse caso da Ucrânia, não existe nem uma hipótese nem outra. Então não é uma justificativa para a invasão e muito menos para colocar em pé de igualdade o agressor e o agredido.


Valor: Essa percepção que o presidente manifesta é uma percepção partilhada, em particular, por partidos e por acadêmicos mais alinhados com uma visão da esquerda?

Ricupero: Nos Estados Unidos há uma tendência entre alguns acadêmicos da chamada escola realista do poder e o mais eminente deles é o professor da universidade de Chicago John Mearsheimer. Antes da guerra e durante a guerra ele escreveu artigos expondo um ponto de vista que foi um erro a expansão da Otan e que os Estados Unidos não deveriam se envolver nesse conflito. A posição dele não é ideológica. Ele considera que a Ucrânia tem um interesse periférico para a segurança americana e que os Estados Unidos só deveriam reagir a interesses vitais do ponto de vista de segurança. E Mearsheimer não tem nada de esquerda.

Agora, existe uma corrente que eu acho que é mais forte fora dos Estados Unidos e que se percebe no Brasil, por exemplo, que vê a situação como Lula colocou na China. Ele disse que gostaria de ajudar a reequilibrar a geopolítica mundial. O que ele quer dizer com isso? Dentro da visão tradicional da esquerda, que no passado era a visão comunista, é a visão segundo a qual a guerra na Ucrânia é, na verdade, uma guerra por procuração. Que atrás da Ucrânia estão os Estados Unidos e do outro lado, Rússia e China.

É a visão de que a guerra é apenas uma manifestação da luta entre o país hegemônico da ordem mundial atual, os Estados Unidos, contra uma aliança da Rússia com a China com alguns outros apoios que querem contestar essa ordem mundial. Essa é, um pouco, a visão da esquerda.


Valor: É uma visão que, na sua avaliação, influencia as posições de Lula?

Ricupero: Tenho impressão que sim. Durante a visita à China, ele declarou que quer colaborar para equilibrar a geopolítica e isso só pode ser interpretado que, na visão de Lula, a geopolítica está desequilibrada. E o que se pode entender disso é que na visão dele a hegemonia americana é que desequilibra o mundo. E que Lula afirma querer ajudar a reequilibrar.

Os chineses vêm isso de outra maneira. Recentemente, chineses e russos assinaram um falando em amizade sem limites que expôs bem essa ideia de que a China e a Rússia querem construir uma nova ordem mundial diferente da ordem dominada pelos Estados Unidos e pelos seus aliados.


Valor: Uma nova ordem que pretenderia ir contra o quê?

Ricupero: Você pode encarar essa expressão de duas maneiras. Uma maneira mais formal: a ordem mundial é representada pela Carta das Nações Unidas, pelas organizações criadas quando terminou a Segunda Guerra: ONU, o Banco Mundial, FMI e outros. Uma ordem criada pelos vencedores da guerra e a União Soviética estava entre os vencedores, é bom lembrar.

A segunda acepção de ordem mundial é a que eles [russos e chineses] têm em mente: que é a acepção do poder por trás da Carta da ONU, por trás da ONU, por trás do FMI, por trás do Banco Mundial, por trás da Organização Mundial do Comércio. Um poder hegemônico que são os Estados Unidos com seus aliados na Otan e fora da Otan. É esse poder hegemônico que russos e chineses contestam por considerar que é um poder desequilibrado.


Valor: Um reequilíbrio, ou uma nova ordem com mais peso para Rússia e China, seria um caminho para melhores soluções de problemas de ordem global?

Ricupero: Quando se diz que o mundo precisa de uma nova governança -- que é uma frase muito repetida pelo presidente Lula -- significa que a governança atual não está sendo capaz de encaminhar soluções para os grandes problemas. E o primeiro, a meu ver, é o aquecimento global. Nesse caso, a questão é: é possível contar com a China para lidar com o aquecimento global? A China, o único grande país do mundo que está aumentando o consumo de carvão? A China está entre os maiores violadores do acordo de Paris.

Um segundo problema, a pandemia. A China não colaborou nas investigações para se descobrir as origens da pandemia e adotou uma estratégia [lockdowns prolongados e muito restritivos] que ninguém mais seguiu durante a pandemia. Então, também não seria por aí uma nova ordem capitaneada pela China.


Que outro tema importante? Direitos humanos? Aí é como dizem os espanhois: ni hablar.

Ou seja, numa lista de problemas é difícil encontrar algum problema concreto importante em que se poderia dizer que a ordem americana não é boa e que a ordem chinesa seria melhor.

Eu, pessoalmente, também tenho reservas com a ordem americana, mas o que seria uma ordem chinesa seria pior.

Portanto, o que sobra, na minha opinião, é só uma coisa: China e Rússia têm uma visão contrária aos Estados Unidos e eu acho que essa também é uma visão aqui. Quem é de esquerda e que no passado adotou uma posição de combate ao imperialismo americano tende a achar que o imperialismo americano é a fonte de todos os males.

Eu não estou defendendo uma ordem americana. Eu prefiro uma ordem que seja a ordem da Carta das Nações Unidas. E os Estados Unidos têm muita culpa no cartório. Da mesma forma como a Rússia invadiu a Ucrânia sem permissão do Conselho de Segurança, os americanos fizeram o mesmo com o Iraque, em 2003. Também violaram a Carta da ONU. Ainda assim, eu não acho que a ordem chinesa e russa ofereça vantagens em relação à ordem que conhecemos dominada pelos EUA.


Valor: Declarações recentes de Lula -- sobre a guerra, sobre o uso do remimbi no lugar do dólar nas transações com o Brasil e outras -- dão a entender um interesse em colocar o Brasil mais próximo do que seria essa ordem defendida por russos e chineses?

Ricupero: O que o Lula tem dito, ainda que com a intenção de promover a paz, objetivamente o que ele fez -- para usar uma expressão dos antigos comunistas -- foi colocar água para o moinho da Rússia e da China.

Quando o Lula afirma que os Estados Unidos e Europa não falam de paz e, ao contrário, continuam armando a Ucrânia o que significa isso? Se um país é vítima de agressão e você é contra que outros países forneçam armas para vítima, objetivamente você está apoiando o agressor. Qualquer que seja o seu raciocínio, na prática, você está querendo que aquele que está mais vulnerável continue vulnerável. E quase todas as declarações que Lula tem feito até agora vão nessa direção, o que na prática equivale que Ucrânia teria de cruzar os braços .


Valor: O Brasil tem defendido uma espécie de clube da paz, um grupo de países que possam fazer a mediação entre Rússia e Ucrânia. Esse é um caminho?

Ricupero: A ideia não tem fundamento. Dizer que a melhor abordagem para a paz é a de um grupo de contato formado por vários países não é verdade.

Normalmente, o país que faz o papel de mediador tem que ter uma vontade unívoca, na mesma direção. O exemplo mais importante que existe foi a mediação feita pelo presidente Ted Roosevelt em 1905 para colocar fim à guerra entre Rússia e Japão. Os russos estavam perdendo. Roosevelt impôs, de certa forma, a mediação. E conseguiu pôr fim à guerra. A mediação é uma atividade que exige vontade única, um processo de paz é muito complicado. Exige cessar-fogo, exige decisões sobre territórios que foram ocupados e exige discussões sobre quem vai pagar a reparação. No caso da Ucrânia, o país foi destruído e quem é que vai pagar? Então existe uma série de problemas e se você tiver 5, 10 ou 20 países envolvidos nessa mediação serão 20 países com 20 abordagens. Pode-se dizer que todos terão a mesma vontade, que é a paz. Mas, na prática, isso não acontece. Cada país que participa da política internacional tem a sua visão própria. Se você tiver 20 países você complica 20 vezes uma atividade de mediação que já é difícil.


Valor: O que o Brasil pode ganhar com aproximação com ponto de vista de Rússia e China?

Ricupero: Se você traduzir isso como dizem os americanos em "dolars and cents", você não vê muito o que o Brasil pode ganhar. O comércio com a China já é muito florescente. O Brasil tem um saldo de US$ 29 bilhões, eu duvido que os chineses vão fazer alguma coisa para aumentar o saldo brasileiro. E o Brasil também já um grande destinatário de investimentos chineses. Com a Rússia o que a Rússia poderia vender? Fertilizante [que já vende]. E a Rússia também tem interesse em vender para a gente. Minha impressão é que o presidente Lula deve achar, como no primeiro mandato, que ele tem uma vocação para grande política mundial. Houve, por exemplo, aquela tentativa de acordo com o Irã [sobre o desenvolvimento iraniano na área nuclear que causava fortes atritos com potências ocidentais] em 2010. Acho que isso [a forma como ele se manifesta sobre Rússia e Ucrânia] está um pouco naquela linha.


Valor: E o que o Brasil pode perder com posições que se assemelham com a da Rússia e da China?

Ricupero: Não vejo que o Brasil vá sofrer qualquer tipo de retaliação, mas o país perde prestígio. O Brasil não tem hard power, não tem bomba atômica, não tem grande Exército. E se uma visão da parte do mundo, que é a parte que tem mais influência na formação da opinião pública, se essa parte do mundo passa a ver o Brasil como parcial, a favor da China e da Rússia, eu acho que o Brasil se enfraquece.


Valor: Esses posicionamentos de Lula indicam que a diplomacia brasileira caminha para um rumo distinto do rumo de sua tradição?

Ricupero: Eu apoiei o Lula desde o primeiro turno. Apoiei não uma pessoa nem um partido, mas uma ideia de frente ampla das forças democráticas para ganhar a eleição e para governar. Essa era a minha ideia. Não me arrependo do meu voto. E faria o mesmo outra vez. Mas eu acho que o atual governo não é uma ampla frente de forças democráticas, embora seja uma coalisão de partidos diferentes. E na área de política externa, eu acho que é PT puro-sangue. O PT critica o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, mas não critica a política externa porque é a política na linha do PT. Não que não seja legítimo do ponto de vista do partido. A questão é que o governo não ouve outras linhas. Se você olhar as reações dos últimos dias, Lula está sendo criticado urbi et orbi. Interna e externamente.

Um comentário adicional. O que, de fato, mudou na política externa brasileira e para melhor é a ênfase no meio ambiente. No governo anterior de Lula, nem ele nem a Dilma eram ambientalistas. Nem Celso Amorim. Agora esse tema se é impôs. Se o Lula transformasse a questão ambiental na base principal da ação externa eu acho que ele ganharia muito prestígio, quem sabe até um Nobel. Mas, curiosamente, embora ele tenha mudado discurso, eu acho que ele não internalizou isso porque ele não dá ao meio ambiente a ênfase que ele está dando à Ucrânia.

E para o mundo, o Brasil não é visto como um potencial mediador da Ucrânia. É visto como o dono da Amazônia. E se o governo tivesse uma atitude mais proativa em relação ao meio ambiente, sua política externa seria de muito mais de êxito.


Um comentário:

Anônimo disse...

Lula tem como mentor de sua política externa, o chanceler Celso Amorim, um anti ocidental e desde a muito, um apoiador da Rússia. Amorim acusa a "expansão da OTAN", sem porém, levar em conta os contextos que levaram outros países a aderirem à aliança. Da mesma forma, ele culpa a vítima (Ucrânia) por estar sendo invadida, como se a Ucrânia, em uma comparação simples, tivesse provocado o segundo exército mais poderoso da Terra. Por outro lado, Amorim tenta justificar a agressão da Rússia sobre a Ucrânia em reação à tal "expansão da OTAN". Como se, na concepção dele, um erro justificasse outro. Nem mesmo Putin, que quer se tornar num novo czar, usa essa retórica.